sábado, 31 de julho de 2010

Pierre Daunou, um homem bom

sábado, 31 de julho de 2010

Identificar um “homem bom” para mim se tornou um problema teórico da literatura quando observei, em uma aula do mestrado em letras na PUCRS, que vários colegas achavam extremamente aborrecido o personagem Aliosha, o protagonista criado por Dostoievski para Os irmãos Karamazov. “Aborrecido” foi um eufemismo cometido por mim. Uma colega disse, com todas as letras, que para ela Aliosha era um chato. Para mim Aliosha era muito interessante, e a intenção de Dostoiévski era a de que a maioria dos leitores reagisse como eu diante dele. O problema é que eu era minoria naquele dia, na sala de aula, e os leitores como eu também não foram tantos assim na época de Dostoiévski. Passando por essa situação me dei conta do quanto se torna difícil construir uma personagem “boa” verossímil na literatura do século XIX. O assunto me intrigou tanto que se transformou em minha tese de doutorado, Os Idiotas: a representação literária da virtude na era da incerteza (2008).


Em função da tese passei a procurar personagens ficcionais boas por toda a parte: Charles Grandison, de Samuel Richardson, atraiu-me como um imã, e Pamela, do mesmo autor, também. Solidarizei-me com a tão pouco apreciada personagem de Jane Austen, Fanny Price, a inflexivelmente virtuosa heroína de Mansfield Park. De Dostoievski selecionei o romance O Idiota (quem se equipara ao Príncipe Mishkin no papel do homem bom que não é mais publicamente compreendido ou admirado?). Até É difícil encontrar um homem bom, o perturbador conto de Flannery O’Connor, eu comecei a encarar com outros olhos.


O tempo passou, minha coleção de homens bons cresceu na medida em que escrevia o texto, o último ponto foi colocado e a tese, enfim, foi defendida. Por um tempo deixei o assunto de lado, várias outras pesquisas apareceram no meu caminho, não haveria mais tempo, mesmo que eu quisesse, para procurar homens bons no mundo da ficção.
Uma das tarefas que tinha pela frente, no verão de 2009, era a de redigir uma pequena biografia do historiador francês Pierre Daunou (1761-1840), biografia que agora faz parte da obra Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX, organizada por Jurandir Malerba (co-edição da Fundação Getúlio Vargas e da EDIPUCRS). O levantamento de fontes foi exaustivo, até porque Daunou deixou de despertar largo interesse logo após sua morte. Depois de localizar uma série de documentos de época, tive de montar o quebra-cabeça de sua biografia.

Pierre Daunou

Descendente de huguenotes que se converteram ao catolicismo para evitar a perseguição religiosa, Daunou ingressou para a Ordem dos Oratorianos (os Oratoriens), fundada por Felipe Néri em plena Contra-Reforma, e que mais tarde seria simpática às ideias de Rousseau. Isso ajuda a compreender melhor porque os Oratoriens receberam de braços abertos a Revolução Francesa. Até aqui nada me chamou demasiado a atenção em sua trajetória. Como a dele, há a de muitos outros.

Mas eis que a Revolução Francesa se instala. Muitas pessoas diminuem diante de adversidades e situações limite, algumas outras crescem. Daunou, e ao constatar isso comecei a me interessar mais e mais por ele, pertencia a esse último grupo. No momento de decidir o destino de Luís XVI, votou contra sua execução, proferindo um discurso marcante. Tal posicionamento lhe custou quase um ano da prisão, e por pouco escapou da morte. Guilhotinado Robespierre em 1794, Daunou é solto,e pouco depois auxiliou Sophie, a viúva do Marquês de Condorcet, na publicação de sua última obra, o hoje famoso Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano.


Daunou, que se batia pela república e pelas reformas educacionais, teve importante atuação política antes do 18 Brumário, o golpe de Napoleão. O próprio Napoleão tentou cooptá-lo. E aí vemos a tomada de decisões difíceis: Daunou se recusou a ser Conselheiro de Estado no novo regime, e foi rebaixado à posição de garde des archives, função que, diga-se de passagem, desempenhou diligentemente.

Os ventos políticos mudaram ainda algumas vezes (a Restauração, e depois a República de Julho) e Daunou passou a gozar, novamente, de estima pública. Minha pesquisa prosseguia: li depoimentos sobre ele, as impressões de Sainte-Beuve e de outros contemporâneos, os elogios póstumos, li seus próprios textos, e, sobretudo, vi suas ações, nada silenciosas aos bons entendedores. O espaço era curto e eu já havia chegado a 1840, ano em que o velho Girondino falece. Daunou manteve-se, até o fim, fiel a seus princípios, nada interessado em fama mundana ou recompensas materiais. Ele era a encarnação da virtude da prudência, tão louvada por Aristóteles na Ética a Nicômaco. No momento em que conclui essa pequena biografia, percebi que havia encontrado, por acidente, algo que na história é tão raro quanto na ficção: um homem bom.