segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Não deixemos Gogol perto do fogo

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Almas Mortas, de Gogol: folha de rosto da primeira edição (1842)

Eu li O Nariz, sem dúvida, e o inusitado da história é tão forte que dificilmente posso esquecer a impressão geral causada pelo texto (um nariz que ganha vida própria na Rússia czarista... Isso é quase tão estranho quanto as palavras congeladas que estouram como castanhas quentes, uma das tantas invenções de Rabelais). Mas quando penso em Gogol, o que me ocorre em primeiro lugar é o conto Avenida Nievski (Nievski Prospekt), escrito entre 1833 e 1834. Achei-o encantador, a começar pelo título, que alude a uma avenida central em São Petersburgo, para onde acorriam os que queriam ver e ser vistos. Não posso deixar de imaginar nessa avenida o flaneur baudelairiano a saltitar para espantar o frio, sem jamais perder a elegância. Pois no conto de Gogol o pintor Piskariov apaixona-se por uma bela moça que encontra na Avenida Nievski. Apaixona-se perdidamente por ela, e em meio a elocubrações e debates com seu amigo Pirogov (que vive uma história paralela: assedia a esposa do ferreiro Schiller), decide segui-la até sua casa. Bate em sua porta e se apresenta. É nesse momento que o narrador prepara, delicadamente, o choque de realidade, o ríspido encontro entre empiria e idealização:

“Ela era muito bonita, de pé diante dele. [...]. Ela estava diante dele sempre muito bela, ainda que seus olhos estivessem sonolentos, ainda que um pouco de palidez marcasse seu rosto, já menos fresco... Sim, ela estava sempre bela, de todo modo” (tradução indireta minha, a partir de uma tradução para o francês de Gustave Aucouturier).

A delicadeza é de súbito substituída por uma ironia nada fina (que nós, hoje, talvez tenhamos dificuldade em apreender, uma vez que não é mais, necessariamente, um problema moral para uma mulher sair à noite, se embriagar e voltar para casa na manhã seguinte):

“’Acabo de acordar; me trouxeram às sete da manhã. Eu estava completamente bêbada’, acrescentou ela, rindo” (tradução minha).

A beleza exterior da moça, visível, para os padrões do século XIX constrastava com seu comportamento desregrado, audível, sintoma de um interior nada puro. Para mim esta é uma das melhores metáforas da crise da beleza no século XIX – tão forte quanto O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, os Olhos dos Pobres, de Baudelaire e O Idiota, de Dostoiévski (exemplos esses que muitas vezes comentei em aula, em especial quando decidi desenvolver, tentativamente, um modelo de tropologia visual junto à turma de Ciências da Arte: Espaço Simbólico, no primeiro semestre de 2009). Essa crise da beleza merece melhor análise no futuro. Por ora, me limito a indicar uma leitura instigante a propósito da crise da beleza na arte moderna: Venus in Exile – The rejection of Beauty in 20th-Century Art (2001), de Wendy Steiner.

Avenida Nievski foi escrito em um dos melhores momentos da carreira de Gogol. Sua carreira como escritor havia iniciado há pouco tempo, em 1831. Quem governava a Rússia, com mão de ferro, era o Czar Nicolau I. Em 1834, Gogol, até então funcionário do Ministério do Interior, torna-se professor de História na Universidade de São Petersburgo. Também se torna discípulo de Pushkin, que o protegia e que incentivava sua carreira literária. A situação crescentemente confortável (os textos que Gogol publicava eram sucesso de público) permite que ele realize uma longa viagem pela Europa, há muito anelada. Assim, em 1836 conhece Alemanha, Suíça e França (Paris). Na Itália permanece por mais tempo: dois anos em Roma. É lá que fica sabendo, em 1837, da morte de Pushkin em um duelo, notícia que muito o abala. Gogol fica sem seu mentor, mas dele herda um tema para romance, que resultará em Almas Mortas. Na verdade Gogol já havia começado a trabalhar no texto, que trata do problema dos servos na Rússia (para termos uma ideia, eles representavam 40% dos 67 milhões de habitantes do país em 1851), em 1835; irá concluí-lo em 1841 e publicá-lo no ano seguinte. O projeto previa três partes para o romance, simulando a conhecida estrutura da Divina Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. A segunda parte Gogol começa a escrever em 1842, mas queima os manuscritos em 1843 (não sei se se arrependeu).

Nicolai Gogol

No ano de 1848 Gogol realiza um sonho: viaja em peregrinação à Terra Santa. Nessa época está novamente às voltas com Almas Mortas, cuja segunda parte conclui. Nos anos seguintes inclui em seu círculo de amigos Matvey Konstantinovsky, um religioso ortodoxo. Gogol está doente em 1852 e lê, como se fazia então, para os amigos, a nova versão da segunda parte de Almas Mortas. Nem todos são receptivos: Konstantinovsky recrimina o poeta e considera pecadora sua obra criativa. Gogol tem, então, em meio ao agravamento de seu estado de saúde, uma crise espiritual, e em uma noite queima todos os seus manuscritos.

Essa parte da história sempre me chocou. Não são apenas papeis: são horas (como calcular quantas?) de investimento, de trabalho, de pensamento, de esforço emocional, físico, intelectual. Queimar manuscritos é um ato de grande violência. O que me comove é saber que Gogol, mesmo tão doente, após esse “surto piromaníaco”, reconheceu a dimensão trágica do que acabara de fazer e ficou arrependido, inconsolável. Viva portanto a imprensa e a sua maravilhosa reprodutibilidade técnica, que protegeu do fogo, da doença e das inquietações espirituais o primeiro volume das Almas Mortas.