segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mary Wollstonecraft e suas filhas

segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Mulher ao pôr-do-sol, por Caspar David Friedrich, 1818


Ela era muito pequena para lembrar, mas por algum tempo viveu em uma família realmente feliz. Frances, logo chamada de Fanny, nasceu em 1794, filha de Mary Wollstonecraft (1759-1797) e de Gilbert Imlay (1754-1828). Fanny nasceu no dia 14 de maio, em Paris, em plena Revolução Francesa, nos últimos dias do terror (Robespierre seria guilhotinado em julho). Mary, sua mãe, estava apaixonada – deixara a Inglaterra em busca da Revolução, e Gilbert, americano, era duplamente revolucionário, pois havia participado ativamente da luta pela Independência dos Estados Unidos e agora se apresentava como diplomata dessa nação junto ao Estado revolucionário francês.

Mary Wollstonecraft por John Opie, c. 1797

Mary estava muito feliz com a pequena Fanny e com o companheiro. O mesmo não se pode dizer de Gilbert que, além de revolucionário e representante diplomático dos Estados Unidos na França, era especulador financeiro. Gilbert logo cansou da vida doméstica com Mary, e a abandonou, partindo sozinho para a Inglaterra.
Mary não aceitou nada bem a separação. A pequena Fanny não impediu Mary de se jogar de uma ponte, na tentativa de tirar a própria vida. A autora do livro A vindication of the rights of woman (1790), que incitava as mulheres a não se deixarem tratar como bibelôs, objetos decorativos pelos homens, que propunha, ao invés disso, que se tornassem fortes donas de casa, práticas e racionais, deixou-se levar pela paixão.
Mas os bons ventos voltaram a soprar. O Terror havia passado, Mary teve a sorte de encontrar um grande admirador em William Godwin. E mais uma vez engravida, e mais uma vez passa pelos duros trabalhos de parto. Não sabemos se a pequena Fanny gostou desse momento, pois as menininhas costumam ficar enciumadas com a chegada de novas irmãs. De todo modo, é provável que Fanny então não soubesse o quanto fora afortunada. Viveu três anos com sua querida mãe, e a pequeníssima Mary teria muito menos do que isso, uns míseros dez dias, tempo suficiente para que Mary Wollstonecraft abandonasse as filhas para sempre, dessa vez não arrastada pela paixão, mas pela morte.
Godwin recebe então todas essas heranças junto com a viuvez: duas filhas muito pequenas e o legado intelectual de Wollstonecraft. Do acervo deixado pela mulher Godwin consegue cuidar muito bem; as dificuldades residem é na educação das meninas. A solução que ele encontra é casar-se novamente, dessa vez com Mary Jane Clairmont. Fanny não gosta muito da madrasta, mas ela e Mary ganham uma nova irmã, Clara Mary Jane Clairmont (1788-1879), filha do primeiro relacionamento de Mary Jane.


As irmãs Mary e Claire

Fanny devia imaginar que sua mãe não aprovaria o fato de Mary Jane, sua substituta, mimar e tratar como uma coquette a própria filha e deixar de lado as enteadas. Afinal, não escrevera, em Vindication, que “as mulheres, consideradas não apenas como criaturas racionais mas também morais, devem conseguir adquirir virtudes humanas (ou perfeições) pelos mesmos meios que os homens, ao invés de serem educadas como um gracioso tipo de ser pela metade – uma das quimeras selvagens de Rousseau“.


Se não havia paz doméstica (as dívidas do pai avolumavam-se) nem amor materno, pelo menos Fanny ainda podia contar com sua irmã Mary. Ou era o que pensava. Mary apaixonou-se por um amigo da família, o jovem poeta Percy. Ao que parece Fanny também o amava, mas em segredo. Mary, no entanto, foi mais longe: fugiu com Percy em 1814, e para desespero dos pais, levou consigo uma das irmãs. E não foi Fanny.

Percy

Difícil ponderar o que Fanny deve ter sentido ao ser abandonada outra vez. A mãe a trocou pela morte, o pai biológico, por uma amante, o pai adotivo, pela madrasta, as duas irmãs (a biológica e a de criação), pela vida de fugitivas (Claire teria uma filha, Allegra, com Byron), e Percy, o poeta que amava, por Mary – provavelmente o mais fatal de todos esses abandonos. A nota que escreveu em 9 de outubro de 1816 talvez possa nos dar uma ideia:

“Há muito tempo determinei que o melhor que poderia fazer é colocar um fim na existência de uma criatura cujo nascimento foi desafortunado, e cuja vida foi apenas uma série de sofrimentos para aquelas pessoas que prejudicaram a própria saúde ao tentar promover seu bem-estar. Talvez saber de minha morte lhes traga dor, mas eles logo terão a benção de esquecer que tal criatura um dia existiu”.


Talvez o abandono leve ao abandono. Talvez seja um ciclo vicioso. Fanny Imlay abandonou a própria vida no mesmo dia em que escreveu a nota, aos 22 anos. Bastou a dose certa de láudano.Talvez Mary Shelley tenha lembrado de Fanny, sua irmã, quando escreveu, poucos anos depois, no seu célebre romance Frankenstein, o seguinte: “Afasta-te, ou vamos medir nossas forças numa luta em que um de nós deve morrer”.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Não deixemos Gogol perto do fogo

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Almas Mortas, de Gogol: folha de rosto da primeira edição (1842)

Eu li O Nariz, sem dúvida, e o inusitado da história é tão forte que dificilmente posso esquecer a impressão geral causada pelo texto (um nariz que ganha vida própria na Rússia czarista... Isso é quase tão estranho quanto as palavras congeladas que estouram como castanhas quentes, uma das tantas invenções de Rabelais). Mas quando penso em Gogol, o que me ocorre em primeiro lugar é o conto Avenida Nievski (Nievski Prospekt), escrito entre 1833 e 1834. Achei-o encantador, a começar pelo título, que alude a uma avenida central em São Petersburgo, para onde acorriam os que queriam ver e ser vistos. Não posso deixar de imaginar nessa avenida o flaneur baudelairiano a saltitar para espantar o frio, sem jamais perder a elegância. Pois no conto de Gogol o pintor Piskariov apaixona-se por uma bela moça que encontra na Avenida Nievski. Apaixona-se perdidamente por ela, e em meio a elocubrações e debates com seu amigo Pirogov (que vive uma história paralela: assedia a esposa do ferreiro Schiller), decide segui-la até sua casa. Bate em sua porta e se apresenta. É nesse momento que o narrador prepara, delicadamente, o choque de realidade, o ríspido encontro entre empiria e idealização:

“Ela era muito bonita, de pé diante dele. [...]. Ela estava diante dele sempre muito bela, ainda que seus olhos estivessem sonolentos, ainda que um pouco de palidez marcasse seu rosto, já menos fresco... Sim, ela estava sempre bela, de todo modo” (tradução indireta minha, a partir de uma tradução para o francês de Gustave Aucouturier).

A delicadeza é de súbito substituída por uma ironia nada fina (que nós, hoje, talvez tenhamos dificuldade em apreender, uma vez que não é mais, necessariamente, um problema moral para uma mulher sair à noite, se embriagar e voltar para casa na manhã seguinte):

“’Acabo de acordar; me trouxeram às sete da manhã. Eu estava completamente bêbada’, acrescentou ela, rindo” (tradução minha).

A beleza exterior da moça, visível, para os padrões do século XIX constrastava com seu comportamento desregrado, audível, sintoma de um interior nada puro. Para mim esta é uma das melhores metáforas da crise da beleza no século XIX – tão forte quanto O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, os Olhos dos Pobres, de Baudelaire e O Idiota, de Dostoiévski (exemplos esses que muitas vezes comentei em aula, em especial quando decidi desenvolver, tentativamente, um modelo de tropologia visual junto à turma de Ciências da Arte: Espaço Simbólico, no primeiro semestre de 2009). Essa crise da beleza merece melhor análise no futuro. Por ora, me limito a indicar uma leitura instigante a propósito da crise da beleza na arte moderna: Venus in Exile – The rejection of Beauty in 20th-Century Art (2001), de Wendy Steiner.

Avenida Nievski foi escrito em um dos melhores momentos da carreira de Gogol. Sua carreira como escritor havia iniciado há pouco tempo, em 1831. Quem governava a Rússia, com mão de ferro, era o Czar Nicolau I. Em 1834, Gogol, até então funcionário do Ministério do Interior, torna-se professor de História na Universidade de São Petersburgo. Também se torna discípulo de Pushkin, que o protegia e que incentivava sua carreira literária. A situação crescentemente confortável (os textos que Gogol publicava eram sucesso de público) permite que ele realize uma longa viagem pela Europa, há muito anelada. Assim, em 1836 conhece Alemanha, Suíça e França (Paris). Na Itália permanece por mais tempo: dois anos em Roma. É lá que fica sabendo, em 1837, da morte de Pushkin em um duelo, notícia que muito o abala. Gogol fica sem seu mentor, mas dele herda um tema para romance, que resultará em Almas Mortas. Na verdade Gogol já havia começado a trabalhar no texto, que trata do problema dos servos na Rússia (para termos uma ideia, eles representavam 40% dos 67 milhões de habitantes do país em 1851), em 1835; irá concluí-lo em 1841 e publicá-lo no ano seguinte. O projeto previa três partes para o romance, simulando a conhecida estrutura da Divina Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. A segunda parte Gogol começa a escrever em 1842, mas queima os manuscritos em 1843 (não sei se se arrependeu).

Nicolai Gogol

No ano de 1848 Gogol realiza um sonho: viaja em peregrinação à Terra Santa. Nessa época está novamente às voltas com Almas Mortas, cuja segunda parte conclui. Nos anos seguintes inclui em seu círculo de amigos Matvey Konstantinovsky, um religioso ortodoxo. Gogol está doente em 1852 e lê, como se fazia então, para os amigos, a nova versão da segunda parte de Almas Mortas. Nem todos são receptivos: Konstantinovsky recrimina o poeta e considera pecadora sua obra criativa. Gogol tem, então, em meio ao agravamento de seu estado de saúde, uma crise espiritual, e em uma noite queima todos os seus manuscritos.

Essa parte da história sempre me chocou. Não são apenas papeis: são horas (como calcular quantas?) de investimento, de trabalho, de pensamento, de esforço emocional, físico, intelectual. Queimar manuscritos é um ato de grande violência. O que me comove é saber que Gogol, mesmo tão doente, após esse “surto piromaníaco”, reconheceu a dimensão trágica do que acabara de fazer e ficou arrependido, inconsolável. Viva portanto a imprensa e a sua maravilhosa reprodutibilidade técnica, que protegeu do fogo, da doença e das inquietações espirituais o primeiro volume das Almas Mortas.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Vasari inventa o Gótico

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Le Stryge (1854), gravura de Charles Meryon,
um dos símbolos do revival gótico do século XIX



Os primeiros textos que li sobre Giorgio Vasari (1512-1574) o apresentavam como o pai da história da arte. Ele escreveu as volumosas Vidas (ainda não traduzidas para o português, até onde sei) e organizou, em muitos tomos, uma preciosa coleção de desenhos de artistas. Essa visão unidimensional dos manuais pouco a pouco foi modificada pela experiência com as mais diversas fontes. Continuando minhas pesquisas, quase sempre motivadas pela necessidade de preparar material para as aulas de história da arte ou da cultura, passei a conhecer cada vez mais dimensões do famoso “patriarca” dos historiadores da arte.

Giorgio Vasari

Pesquisando documentos de época pode-se ver que ele, no que diz respeito à escrita sobre o universo das artes, de modo algum foi um autor isolado, ainda que contemporâneos seus como Paolo Pino (Dialogo di pittura, 1548) e Antonio Francesco Doni (Disegno, 1549) não tenham atingido a mesma fama póstuma. Tampouco foi realmente o primeiro de uma série: no Quattrocento, conforme Anthony Blunt, em seu clássico Teoria artística na Itália, se escreveu mais sobre arte na Itália do que no Cinquecento, e encontramos vários autores que abordaram alguns dos pontos que iriam caracterizar a obra de Vasari. Deste modo, Cennino Cennini (1370-1440) se ocuparia das diferentes técnicas artísticas em Il libro dell’arte (c. 1390); Lorenzo Ghiberti (1378-1455), em seus Commentarii (1447-1455), demonstraria um importante grau de preocupação com a história da arte, ao apresentar especulações de autores antigos sobre a origem do desenho (egípcia ou grega) e ao discorrer sobre artistas da Antiguidade Clássica; Bartolomeo Fazio (? – 1457), enfim, aproveitando um modelo anteriormente já praticado por Boccaccio, escreveria De Viris Ilustribus (1453-1457), e entre os homens ilustres cuja biografia apresentou incluiu alguns artistas, como Gentile da Fabriano e Pisano de Verona.

Vasculhando na base de dados Europeana pude ver reproduções de muitas obras de Vasari, desenhos com planejamento de esquemas decorativos e pinturas (algumas tão “engessadas” que chega a ser chocante o contraste entre a fama do historiador da arte e a habilidade do pintor...). Dois exemplos: um Cristo morto, esverdeado como o de Pontormo (mas sem a mesma graça) ou o de Holbein o Jovem (mas sem a mesma dramaticidade), e o desenho de uma cabeça de mulher. Ainda que habilidoso, como podemos ver especialmente no desenho, Vasari podia ser bastante protocolar, como nos mostra a pintura.

Pietà con San Francesco d'Assisi, Vasari

Cabeça de mulher, Vasari

Também li um excelente artigo sobre a opinião de Vasari a respeito da gravura, Vasari, prints and prejudice, de David Landau. O autor, interessado pela gravura criativa no Renascimento, chama a atenção para o fato de Vasari quase sempre mencionar, nas Vidas, a gravura de tradução, ou seja, aquela destinada à reprodução de outras obras de arte. Exceção é o comentário que faz no final da vida de Domenico Beccafumi (1486-1551), no qual destaca algumas gravuras originais do artista sienense.

Morte de Coligny, Vasari

Li ainda outro artigo, de E. Howe, Architecture in Vasari’s Massacre of the Huguenots, publicado no Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, que trata especificamente das três telas que o artista pintou para a Sala Regia, no Vaticano, sobre o massacre dos huguenotes em Paris, ocorrido em 24 de agosto de 1572. Os huguenotes (calvinistas franceses) eram perseguidos desde a década de 1550, e o massacre, com o cruel assassinato do líder huguenote, Coligny, é o ápice do conflito francês entre católicos e reformistas. A Curia Romana recebeu (e comemorou) a notícia do massacre em setembro, e em dezembro Vasari começou os trabalhos. O “pai da História da Arte” engajado em encomendas contra-reformistas e capaz de conceber quadros como Ferimento do Almirante Coligny, Morte de Coligny, Charles IX diante do Parlamento (mostro uma delas acima), eis outro ângulo que eu não conhecia.



Contudo, o que mais me surpreendeu foi uma determinada invenção atribuída a Vasari. A primeira edição das Vidas, de 1550, foi sucedida por uma reedição ampliada, de 1568. Como prefácio dessa nova edição há um extenso texto de Vasari sobre técnicas artísticas, publicado pela primeira vez em inglês em 1907 graças a G. Baldwin Brown. Em nota de rodapé, Brown comenta que Vasari atribuiu aos godos a “maneira tedesca” que tanto detestava, introduzida pela primeira vez na Itália, segundo se acreditava na época, em uma igreja franciscana. No subcapítulo intitulado Obra alemã (o estilo Gótico), assim, Vasari desopila o fígado ao descrever de modo nada amigável a recém-batizada arquitetura gótica:

“Essa maneira foi invenção dos Godos, pois, depois de haverem arruinado os antigos prédios e matado os arquitetos nas guerras, aqueles que restarem construíram os prédios nesse estilo. Eles viravam os arcos com segmentos pontiagudos, e encheram toda a Itália com essas abomináveis construções, logo, para não ter mais nenhuma delas o estilo deles foi abandonado. Possa Deus proteger todos os países de tais idéias e estilo de construções! Elas são tais deformidades em comparação com a beleza de nossos prédios que não merecem que fale mais delas” (tradução indireta minha, a partir da tradução para o inglês de Louisa MacLehose).

A ideia de que o biógrafo máximo dos artistas renascentistas também é aquele que cunhou o termo gótico é tão envolvente que me pergunto se alguém por acaso já descobriu se não foi outro o inventor. O que achei a respeito foi o artigo de E. S. de Beer, publicado no Journal of the Warburg and Courtauld Institutes em 1948, a saber, Gothic: Origin and Diffusion of the Term: The Idea of Style in Architecture. Segundo Beer, no entanto, foi mesmo Vasari o responsável por essa criação, ainda que apresente no artigo seus antecessors e sucessores. Pois bem, o defensor do classicismo, ao conceituar os “bárbaros do norte”, lançou as bases para o estabelecimento do gótico como estilo, cujo revival veremos com força no século XIX. Mais uma prova do destino muitas vezes incontrolável de nossas realizações: se Vasari soubesse o que haveria de ocorrer com seu termo, acho que, como se costuma falar hoje estaria se revirando na cova.

sábado, 28 de agosto de 2010

Aphra Behn e a Dama Cega

sábado, 28 de agosto de 2010


“Adquirir conhecimento”, não adianta, não consigo deixar de pensar assim, é apenas um eufemismo para “tomar conhecimento da extensão ilimitada da própria ignorância”. Estava arrumando meus papéis no armário que fica atrás de minha mesa, e encontrei, sufocada por uma montanha de artigos, a minha tese de doutorado em Letras. Não faz tanto que a defendi, mas relendo agora, já encontro o que repensar. Meus comentários sobre Aphra Behn, por exemplo, no subcapítulo (2.2) “A virtude recompensada”: Pamela.

Aphra Behn

Aphra Behn (1640-1689) foi a primeira dramaturga inglesa (até que se prove o contrário) a viver de seus escritos. “Viver” não significa necessariamente “viver bem”, pois ela chegou a ser presa por dívidas. Também não significa que ela não recorresse a outros “bicos” para prover o seu sustento. Um dos “bicos” mais famosos foi o de espiã de Carlos II nos Países Baixos, entre 1666 e 1667. Lembremos que, por essa época, havia uma intensa disputa entre Inglaterra e Holanda. De acordo com o Tratado de Breda, os ingleses ficariam com a colônia holandesa na América do Norte, cuja capital, Nova Amsterdã, seria rebatizada como Nova York, e os holandeses garantiriam o Suriname, na América do Sul.

Aphra escreveu várias peças – a primeira a ser encenada, The Forced Mariage (1670), e a mais famosa, The Rover (1681). Foi reconhecida em vida e contava, entre seus amigos, com dramaturgos como Thomas Otway (1652-1685), que chegou a atuar em uma de suas peças como ator, teve pânico de palco e morreu em extrema pobreza; George Etherege (1635-1692), que fez muito sucesso em Londres e que assistiu a peças de Molière em Paris, e John Dryden (1631-1700), a grande figura literária da Restauração inglesa. Em 1689 Aphra morre, e é enterrada na Abadia de Westminster.

Em minha tese eu apresento uma breve análise do conto The unfortunate Bride or the blind lady a beauty, de publicação póstuma (1698). Esse conto narra o amor entre Frankwit e Belvira. Estavam prestes a consumar seu amor quando Frankwit precisa ir a Cambridge. Nesse meio tempo, uma “tragédia dos erros” se arma: Belvira, acreditando-se abandonada, casa-se com Wildvill, amigo de Frankwit, que por sua vez retorna na noite de núpcias e acaba matando os recém-casados. Como penitência, casa-se com a prima cega de Belvira, Celésia, que, apesar de intitular o conto, tem uma participação muito modesta na trama. Eu concluo a análise afirmando que “Aphra não se ocupa da vida moral e psicológica das personagens”.

Meu erro nessa afirmação foi ter generalizado antes de haver lido o conjunto dos escritos de Aphra. Se essa hipótese se aplica ao conto da Dama Cega (e continuo acreditando que sim), no entanto não se encaixa muito bem a um texto como Oroonoko, or The Royal Slave, conforme descobri mais tarde.


Aphra era monarquista, e se casou com um escravagista de origem holandesa, Johan Behn. Sabe-se que entre 1663 e 1664 ela esteve no Suriname, então colônia inglesa. Na colônia os ingleses decidem plantar cana-de-açúcar, e como mão-de-obra importam escravos africanos. Pois Aphra apresenta, em sua novela, um desses escravos, Oroonoko (um escravo fictício, bem entendido). Neto de rei africano, Oroonoko se apaixona por Imoinda, filha do general do reino. O rei local, contudo, se interessa por Imoinda, ela não cede a seus desejos e acaba se tornando escrava. O mesmo fim tem Oroonoko, e os dois são enviados ao Suriname. O governador da colônia, Byam, também se interessa por Imoinda, e o cenário trágico está montado: Oroonoko lidera uma rebelião dos escravos, em uma cena tocante mata Imoinda (com o consentimento dela), para evitar que caia nas mãos dos inimigos, e é enfim preso. A cena final é aquela de seu suplício, descrita de modo a destacar a bravura do escravo e, também, a extrema crueldade dos colonizadores:

“Ele aprendeu a fumar Tabaco, e quando lhe garantiram que ele deveria morrer, desejou que colocassem um Cachimbo em sua Boca, imediatamente aceso, o que fizeram; e os Carrascos chegaram, e primeiro cortaram seus Membros, e os jogaram no fogo; e depois disso, com uma Faca afiada, cortaram suas Orelhas e seu Nariz, e os queimaram; ele ainda fumava, como se nada o houvesse tocado; então arrancaram um de seus Braços, e ele ainda [...] mantinha seu Cachimbo; mas quando cortaram o outro Braço, sua cabeça inclinou e seu Cachimbo caiu, e ele entregou seu Espírito, sem um Gemido, ou Recriminação. [...]. Assim morreu esse grande Homem, digno de melhor Destino, e de uma Inteligência mais Sublime do que a minha para escrever seu Elogio: Ainda assim, espero, a Reputação de minha Pena é considerável o bastante para fazer com que esse glorioso Nome sobreviva em todas as Eras, com aquele da brava, bela e constante Imoinda” (tradução minha).

Oroonoko é considerado um dos primeiros protestos, na literatura inglesa, contra o tráfico de escravos africanos (ainda que Aphra não fosse totalmente contra a escravidão, me parece que sua causa era mais do que defender os escravos, criticar a administração da colônia), e foi escrito em 1688, no final da vida da dramaturga.
Desse meu erro paradigmático, erro típico dos generalistas (entre os quais certamente me incluo) tiro, então, pelo menos uma constatação: generalizar é uma arte difícil, a quantidade de informações necessárias para permitir uma boa visão de conjunto facilita o acúmulo de avaliações equivocadas. Ainda assim, isso não significa que a generalização deva ser evitada – pelo contrário, que triste seria o mundo se não houvesse os que desenhassem não as árvores, mas as florestas, por mais imprecisos que fossem seus rabiscos.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Daumier "Escultor"

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

d'Argout




Estabelecer um cânone artístico sempre é um problema. Não temos como escapar dele quando somos professores: há um número limitado de aulas por semestre, e mesmo quando trabalhamos em História da Arte com temas (a paisagem, a abstração, etc.), é preciso escolher quais artistas e quais obras mostrar. Na extinta disciplina de História da Arte II (à qual já fiz referência no texto Alexandre Cabanel: uma força subterrânea) senti a necessidade de insistir um pouco mais nas artes gráficas e, quando possível, na fotografia e na escultura. O tempo curto e a natureza do material mais facilmente acessível às vezes nos impelem a tratar apenas de pintura. Com esse objetivo em mente, além de Nadar, Camille Claudel, Rodin e do hoje menos popular escultor francês James Pradier (amante de Juliette Druet, por sua vez a futura amante oficial de Victor Hugo), escolhi também, como tema de aula, a obra do caricaturista Honoré Daumier (1808-1879).


Daumier


Naquela época eu ainda não era usuária contumaz do Portal de Periódicos da Capes, tampouco existia uma base de dados pública como a Europeana. Minhas pesquisas de imagem atingiam dimensões bem mais modestas: perdi as contas de quantas vezes busquei as imagens disponíveis na Olga’s Gallery, organizadas por artista, em ordem cronológica. Pois foi nessa galeria virtual que, ao pesquisar Daumier, deparei-me com as suas esculturas em argila. Admito que minhas leituras anteriores não me haviam preparado para o que encontrei: onde encaixar aquelas “caricaturas em três dimensões”, feitas com uma planejada displicência no começo da década de 1830? Os alunos também se impressionavam (e riam muito) quando passávamos por elas em aula.

A disciplina, como eu já havia dito, foi extinta, mas continuei a ler sobre Daumier – até por ser uma das preferências de Baudelaire, que sonhava escrever um livro apenas sobre caricatura (projeto levado adiante por Champfleury, que, como mencionei anteriormente em Como e por que amo Grandville, redigiu uma História da Caricatura em cinco volumes). Mas a questão das esculturas dificilmente surgia.


Foi então que achei, peregrinando pelo JStor, a resenha de S. Lane Faison Jr. sobre o catálogo Daumier Sculpture: a critical and comparative study, de Jeanne Wasserman, publicado pelo Fogg Art Museum em 1969. Esse catálogo acompanhava uma importante exposição das esculturas de Daumier no mencionado museu. Faison Jr. aponta algumas conclusões de Wasserman sobre essas obras: a série Celebridades da Monarquia de Julho, constituída de trinta e seis bustos pequenos, pintados em argila, de 1833 (e hoje abrigada pelo Musée D’Orsay), foi feita livremente por Daumier a partir das caricaturas de eminentes políticos franceses que publicou, concomitantemente, no periódico La caricature.


Como não tenho acesso ao catálogo, e a curiosidade persiste, tomei algumas providências: obtive o volume com as edições de La Caricature de 1833 (gloriosamente disponível no site Gallica), pesquisei alguns dos políticos satirizados por Daumier e li um trecho das memórias de um deles. Vamos ver o que irá resultar disso.


No alto desse texto, como se pode ver, coloquei, respectivamente, o busto em argila e a caricatura (publicada em La caricature) do conde Antoine-Maurice-Apollinaire d'Argout (1782-1858), que seria o responsável pelo Banco de França a partir de 1834. Daumier se diverte com o nariz do conde, que apresenta em duas possibilidades, mais exagerado na polida litografia, mas mais agressivo na escultura em argila, que revela toda a sua feitura através das marcas propositais, do inacabamento – característica padrão desse conjunto de peças, que obviamente se perde nas cópias fundidas em bronze.



Prunelle


A diversão continua com Clément-François-Victor-Gabriel Prunelle (1774-1853), deputado que se tornará prefeito de Lyon. A experiência de contemplar seu quadrado busto em argila ganha em graça quando podemos fazer como seus contemporâneos, e comparar a imagem caricaturada com a lembrança do rosto real e dos retratos oficiais.



Guizot


Daumier foi impiedoso com o historiador François-Pierre-Guillaume Guizot (1787-1874), uma figura muito impopular e com fama de orgulhoso, que foi ministro da educação entre 1832 e 1834: as sobrancelhas arqueadas do busto em argila são a metáfora dessa sua alegada arrogância.



Dupin

Também André-Marie-Jean-Jacques Dupin (1783-1865), advogado e deputado de destacada atuação política, não escapou da sátira de Daumier. Dupin, “traduzido” de um modo particularmente mordaz por Daumier na argila, foi presidente da Câmara dos Deputados em 1832 e tinha aguda consciência das críticas que sofria por parte da imprensa. Ao recordar o clima das eleições de julho de 1831, Dupin escreveu sobre essas críticas no segundo volume de suas Memórias (1827-1833), publicadas em 1856:

“No que me diz respeito, sofri em meu departamento os ataques dos delegados do partido insurreto – um novo jornal foi criado em Clamecy, unicamente para combater minha candidatura; os panfletos, as reclamações se alastravam; o Courrier Français colocou sob seu patrocínio especial o candidato que a mim se opunha [...]. Diante dessas articulações de meus adversários políticos, permaneci calmo e silencioso; não respondi a nenhum panfleto, a nenhum artigo de jornal. Fiel à regra que me impus, aguardei com confiança o dia da eleição, como se espera o dia do julgamento” (tradução minha).


Barthe

Dizem que Daumier foi longe demais ao comparar Luís Filipe com uma pêra e com Gargantua, o faminto personagem de Rabelais, e que isso teria lhe rendido meses de prisão. Mas meditemos um pouco: Daumier cutucou um farto vespeiro. De sua pedra litográfica e de sua fúria escultórica não escapou nem mesmo o perigoso Felix Barthe (1796-1863), o muito estrábico ministro da justiça da França. Mesmo em La Caricature podemos ler essa reveladora descrição do ministro (acompanhada de sua caricatura, por evidente):


“Com essa vasta pasta que você vê sob seu braço, você adivinha que esse personagem é um ministro; com esses olhos vesgos, esse sorriso falso, esse semblante espesso, essa figura desconfiada, você adivinha que esse ministro é Barthe. Ali há apenas a administração da justiça na França, e você teria dificuldade em reconhecer o ex-carbonaro da Restauração; mas o que você quer? É assim que a monarquia os ama” (tradução minha).

Barthe, um carbonaro, isto é, membro de uma sociedade secreta francesa que lutava pela república desde o século XIX, é mostrado por Daumier no auge de seu estrabismo (diziam os jornais satíricos que ele tinha um olho voltado para os republicanos e outro para os legitimistas). Logo, é justo considerar que,se Daumier é preso por conta de Luís Filipe, Barthe será aquele que, na prática, o obrigará a procurar outros temas menos ”incisivos”, quando passa a vigorar a nova lei por ele criada: a famigerada lei da censura de 1834.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Memórias Póstumas de Sally Mara

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Sally Mara nasceu no domingo de Páscoa de 1916. Teria agora, portanto, 94 anos. Não é impossível que, com esta idade, esteja viva. Mas é improvável. Caso o pior tenha acontecido, gostaria sinceramente que, seguindo o exemplo de Brás Cubas, ela escrevesse suas Memórias Póstumas. É que ficamos carentes depois de passar pelo brilhante conjunto de sua obra... Era preciso haver mais Sally.

Tenho Les oeuvres complètes de Sally Mara, uma publicação da Gallimard, menos volumosa do que poderia ser (é isso mesmo, insisto em esperar pelas Memórias Póstumas). Vamos principiar pelo Journal (Diário), que se inicia em 1934. Sally, uma jovem irlandesa que estuda francês e que ainda não domina completamente a língua (como eu também era na época em que li seu diário, uma estudante de francês ainda nos primeiros níveis, com a diferença de não ser irlandesa e, como veremos, de não aceitar ajuda para atravessar pequenas passarelas), narra em seu diário como foi a despedida de seu professor de francês, que embarcou para a França, imagino eu. Depois de se despedir dele, Sally Mara deve atravessar uma passarela para voltar para casa. Um rapaz lhe oferece ajuda. Estamos em 13 de janeiro. Sally nos conta o que aconteceu:

“E eu ouvi uma voz doce e polida me sussurrar ao ouvido essas palavras confortantes: Segure o corrimão, senhorita. Ao mesmo tempo coloca efetivamente na minha mão ainda livre um objeto que tinha simultaneamente a rigidez de uma barra de aço e a doçura do veludo. Eu o segurava convulsivamente e, surpreendendo-me que esse corrimão permanecesse quente, apesar da ventania que soprava de modo ainda invernal, pude, graças a sua ajuda, chegar sã e salva à outra margem” (tradução minha – há uma tradução para o português de Portugal muito antiga, em algum lugar desse apartamento, mas como ela é excessivamente insalubre, prefiro traduzir eu mesma).

Como eu disse, não dominava muito bem o idioma naquela época. Li e percebi algo errado com essa passagem. Reli. Fui ao dicionário. Era isso mesmo que eu havia pensado, Sally Mara, sem dolo algum (ainda que mais tarde eu começasse a me perguntar: será mesmo?) segurou de fato o "corrimão" do rapaz para atravessar a passarela, uma cena insólita.

Continuei, e encontrei outra pérola de Sally: “Mas enfim posso me permitir isso em minha journalintimité”, do dia 4 de fevereiro. Journalintimité, como traduzir isso? Intimidade de Diário? Perde toda a graça. Mais adiante um pouco, outro raciocínio formidável:

“Além disso, não gostei das camisas azuis de nosso general O’Duffy e, de resto, completamente purgada de todo sentimento patriótico depois que ele me disse que a Irlanda é uma ilha menor do que a Terra Nova: o que nos escondem sempre” (tradução minha).

Essa mistura de intensa investigação interior e da mais genuína obtusidade é simplesmente encantadora. Em 18 de fevereiro Sally filosofa sobre os seus ciclos:

“O tempo passa. Me entedio e me sinto toda esquisita. Não é, no entanto, a proximidade da menopausa (uma palavra cujo sentido ainda preciso verificar no dicionário) mensal que me atormenta” (tradução minha).

Em 5 de abril o motivo do "corrimão", de algum modo, ressurge, em tom aparentemente desinteressado:

“Vou de descoberta em descoberta. Um golpe de vista, um simples golpe de vista, pode mesmo despertar em um cavalheiro uma espiritualidade até então latente. É mesmo muito curioso de se observar. Não seria mesmo necessário que meu olho estivesse sempre a rondar as calças dos cidadãos, que isso se tornasse uma obsessão e que eu caísse em uma espécie de misticismo com falucinações. Devo também sonhar com a matéria: mármore, bronze, todos esses materiais duros e lisos utilizados para as obras de arte” (tradução minha).

Uma menina de 16 anos com menopausa eu não havia ainda visto. Já as falucinações são bem mais verossímeis. Pois essa charmosa pensadora decide, mais tarde, deixar o campo autobiográfico e dedicar-se ao romance. É assim que escreve On est toujours trop bon avec les femmes (Somos sempre bons demais com as mulheres), um agitado romance sobre republicanos irlandeses entrincheirados em uma agência de correios, rebeldes cujo grito de guerra é Finnegans Wake! Eles, em um momento de desvario, permitem que moças tão inocentes quanto Sally os acompanhem na trincheira improvisada, o que acabará por custar-lhes a vida.

Ainda que negue veementemente a autoria, no prefácio às Oeuvres completes de Sally Mara, Sally Plus Intime é também, ao que parece, obra da nossa, a essas alturas, cada vez menos jovem irlandesa. Densas como haikais, abaixo coloco algumas das reflexões de Sally sobre temas perenes, sempre em tradução minha:

Deus: o não-ser mais bem-sucedido em fazer falar de si mesmo.

A morte: a fraqueza do forte.

Do uso das palavras: amamos o camembert e não dizemos a um camembert: eu te amo.

Enfim, a mais transcendental de todas, a que sempre me comove quando a leio:

É a vida:
O pássaro cru faz crás-crás
O pássaro cozido não o faz mais.
Raymond Queneau

Claro que as histórias têm mais de um lado. Podemos encontrar a informação de que Sally é, por sua vez, obra de Raymond Queneau (1903-1976), que teria escrito On est toujours trop bom avec les femmes em 1947, o Journal em 1950 e as Oeuvres Complètes, em 1962. Eu, particularmente, custo a crer na possibilidade que, em algum momento, Sally não estivesse viva. Me parece mais plausível, nesse caso, que Queneau tenha psicografado suas obras – o que significaria, em última instância, ou que a data de nascimento de Sally estava errada, ou que teve uma lamentável morte precoce. É a vida...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Exilados: Marx e Semper na British Library

quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Reading Room, British Library, gravado em madeira por Richardson & Cox a partir de desenho de Henry Walter Herrick


Germain Bazin nos mostra em História da História da Arte o quanto Alois Riegl foi duro com Semper. Em pouquíssimas palavras, Riegl discordava da explicação materialista do estilo que Semper apresentava em seu Der Stil, propondo uma alternativa oposta, idealista, a kunstwollen (vontade de arte). Por conta dessa leitura inicial, feita durante minha graduação em Artes Visuais (li todo o livro de Bazin na época), tomei as dores de Riegl e partilhei, mesmo sem fundamento, de sua antipatia por Semper.

Muitos anos depois outras pesquisas me levaram novamente a Semper. Estudando Charles Hartt, tema de minha tese em História, me deparei com alguns antropólogos e arqueólogos americanos da segunda metade do século XIX que, entusiasmados, com as teorias de Semper, procuravam explicações materialistas para o surgimento da decoração cerâmica entre diversas tribos indígenas dos Estados Unidos. Assim, William Holmes (1846-1943), a partir da leitura de Semper, concluirá que a decoração da cerâmica de várias etnias indígenas americanas seria resultado da observação da impressão da trama dos cestos de vime na argila fresca. A cópia dessas marcas levaria ao desenvolvimento de diferentes padrões ornamentais. Esse tipo de determinismo ambiental obviamente diminui a margem para o exercício da criatividade indígena – a decoração cerâmica seria, assim, fruto de mero decalque. Dessa vez eu decidi vencer a má impressão inicial e ver com meus próprios olhos a obra de Semper. A questão é: como fazer isso?

Achei com facilidade o arquivo da edição original em alemão, mas confesso que ainda estou bem longe de ler com fluência nessa língua. Insistindo nas pesquisas, descobri uma maravilhosa edição americana, a primeira tradução para o inglês da obra máxima de Semper, Style in the technical and tectonic arts, or, Practical Aesthetics, edição financiada pelo Getty Research Institute, de Los Angeles, em 2004. A introdução da obra está a cargo do tradutor, Harry Mallgrave, que me apresentou ao Semper que eu não conhecia.

Gottfried Semper

Semper nasceu em Hamburgo, em 29 de novembro de 1803. Sua mãe, Joanna Marie, vinha de uma família francesa huguenote. Já o pai era um rico comerciante. Como os de sua geração, Semper estudou na escola grego e latim (o grego é a novidade romântica, para maiores informações sobre a institucionalização do ensino dessas línguas, em particular na Inglaterra, os livros de M. L. Clarke são sempre uma boa indicação). E se saiu muito bem nesses estudos clássicos. A carreira que escolhe é a de oficial de artilharia, em 1823. E os estudos prosseguem, agora universitários: na Universität Göttingen se dedica à matemática e à estatística...

Reli o que acabo de escrever e, de fato, “dedicação” não é a ideia adequada a passar acerca desse momento. Semper se deixou levar pela vida de estudante (ou talvez tenha se atirado nela com afinco e intencionalmente). Sua vida na década de 1820 é tumultuada (talvez devesse também aqui modificar o adjetivo, e escrever “animada”): jogos, duelos, bebedeiras, mulheres e bebedeiras outra vez. Para escapar da polícia, foge a pé para Paris, em 1826.

O mais surpreendente é que no momento em que Paris ferve, em 1829, às vésperas de outra revolução, Semper decide se concentrar nos estudos de arquitetura. É evidente que o entusiasmo pelas utopias socialistas do tipo Saint-simoniano o atinge em cheio, Semper era um republicano convicto.

Como disse há pouco, Semper agora estava decidido a estudar seriamente arquitetura. Para isso resolveu ir direto às fontes: depois de passar por Roma e Pompeia, rumou para a Grécia. O momento, contudo, não poderia ser pior. Semper chega à Grécia (ainda em guerra civil) precisamente no dia em que o presidente provisório, Ioánnis Kapodístrias, é assassinado.

Semper, de todo modo, aproveita bem a estadia: secretário pessoal do filólogo Friedrich Whilhelm Von Thiersch (1784-1860), faz pesquisas arqueológicas em Atenas e no Egito e ainda consegue escapar de uma tentativa de assassinato. Passados nove meses, volta à Itália, no verão de 1832. A viagem de volta também é cheia de aventuras:
um ataque de piratas, dessa vez, do qual Semper escapa novamente ileso.

No que diz respeito às ruínas antigas, havia um problema que deixou Semper particularmente estimulado: o da policromia. O debate em torno da policromia dos monumentos clássicos começa em 1830, quando Jacques Ignace Hittorf (1792-1867) apresentou a reconstituição de um heroon (um túmulo monumental construído para um herói, como esse de Agrigento, que mostro abaixo), toda colorida. Semper abraçou com fervor a causa da policromia: irá descobrir que a coluna de Trajano também era colorida (1833) e propor uma reconstituição das cores originais do Partenon de Atenas (um detalhe, feito por ele mesmo, pode ser visto abaixo).


Semper está outra vez na Alemanha, e instala-se em Dresden. Lá é responsável por várias obras, e uma das mais famosas é o Hoftheater, inaugurado em 1841. É nesse teatro que Wagner apresenta pela primeira vez obras como Tannhäuser. Semper faz muitos amigos: além de Wagner, com quem discutia nos cafés sobre qual período seria superior, a Idade Média (como queria Wagner) ou a Antiguidade Clássica (como queria Semper), também se relacionava com o pintor Caspar David Friedrich e com Clara e Robert Schumann.

Hoftheater

A vida confortável de Semper muda em 1848: republicano, ele se alinha aos oposiocionistas do regime e chega a ajudar na construção de barricadas. Acusado de traição, perde tudo: família, bens, prestígio, emprego. É forçado ao exílio em Paris, a partir de 1849. Ainda desempregado no final de 1850, decide tentar a sorte em Londres.

O começo da vida londrina também não foi fácil. Conseguiu uma posição como professor das artes do metal na nova School of Practical Art. O exílio, por outro lado, proporcionou tempo livre, tempo que Semper aproveitou realizando pesquisas todos os dias na sala de leitura da biblioteca do British Museum. A sala de leitura ainda não havia passado pela reforma que a tornaria mais confortável: era muito fria, e decorada com pássaros empalhados e antiguidades egípcias.

Em suas idas diárias à sala de leitura Semper, motivado pela crise do design declarada desde a Exposição Universal de 1851, organizava uma teoria do design capaz de enfrentar esse desafio. Ele não estava sozinho naquela sala. O igualmente exilado Karl Marx (1818-1883), também diariamente, sentava-se em uma mesa para estudar economistas políticos, pois queria entender o funcionamento do capitalismo. Conversariam eles? Trocariam cumprimentos? Ou nem sequer se conheciam? Eis as perguntas que podemos fazer aos mortos. Se eles soubessem que um seria o autor de Das Kapital (1867), e o outro de Der Stil (1861 e 1863), talvez tivessem tomado a iniciativa de atenuar os males da pobreza do exílio dividindo, também, uma mesa de café.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma modesta proposta: leiamos Swift

segunda-feira, 9 de agosto de 2010
A Batalha dos Livros

Eu já havia passado, na rua, por muitas pessoas que usavam óculos, mas realmente comecei a reparar nelas quando minha miopia foi diagnosticada. Mesma coisa com relação às grávidas: por quantas eu já havia passado? E por que apenas depois que eu mesma engravidei elas pareceram, aos meus olhos, multiplicarem-se exponencialmente pelas ruas? Eu tenho ainda uma lista muito grande de exemplos como esses, que, em suma, passam a mesma mensagem: os conceitos aos quais nos ligamos pelos laços do amor, da curiosidade ou, simplesmente, da necessidade, são nossos cães-guia, sem eles vagamos às cegas pelo mundo. Informada sobre a minha gravidez e minha miopia, passei a enxergar as grávidas e os míopes.

O mesmo se dá com a experiência literária. Por quanto tempo Semper, Cabanel, George Sand, Champfleury, Baudelaire, todo esse pequeno panteão do passado sobre o qual escrevo, simplesmente nada significaram para mim? Quantas vezes passei os olhos por seus nomes sem me deter, sem atrelar a eles uma imagem, um conjunto de experiências, uma gama de cores, de versos ou ideias, uma rede de relações mais rica? Impossível saber. Pois há pouco esbarrei, mais uma vez, em meu ponto cego, enquanto estive às voltas com Swift. Minha modesta proposta é: descubramos o que aconteceu nessa minha insólita aventura de leitura.


Tirei da estante aquele muito maravilhoso livro intitulado Panfletos Satíricos, traduzido por Leonardo Froés, uma excelente coleção de textos polêmicos de Jonathan Swift (1667-1). Swift eu conheço há muitos anos, e felizmente nunca o confundi com a marca de salsichas local. Conheço-o das Aventuras de Gulliver, e de Uma modesta proposta, ainda que, admito, tenha lido muito mais extensamente um contemporâneo seu, Daniel Defoe (1660-1731) (Diário do Ano da Peste, Moll Flandres, contos sobre fantasmas, tudo o que me caiu nas mãos). Pois dessa vez queria ler A Batalha dos Livros, panfleto publicado anonimamente em 1704, junto com Uma História de um Tonel.


Pois bem: o texto é divertidíssimo do início ao fim, uma Disneylândia para aqueles que, como eu, são amantes da ironia (acho que mesmo Paladas de Alexandria, se ressuscitasse, encontraria aqui um pouco daquele doce mel ático que julgava inexistente entre os cristãos). Em tempos mais recuados os livros controversos eram mantidos separados dos outros nas Bibliotecas. O narrador explica por que motivo essa curiosa prática foi adotada:

“O Motivo original dessa Invenção [o nicho separado] foi este: ao saírem pela primeira vez as obras de Scotus, levaram-nas a uma grande Biblioteca e determinaram um Nicho para elas; mas o autor, tão logo instalado, foi visitar Aristóteles, seu Mestre, e os dois combinaram agarrar Platão à força para tirá-lo do seu antigo Posto entre os Teólogos, onde placidamente ele ficara por quase Oitocentos Anos. A Tentativa deu certo e os dois usurpadores têm reinado desde então no lugar dele; mas para manter a tranquilidade no futuro, decretou-se que todas as Polêmicas de maior formato ficassem presas com correntes”.

Tal prática preventiva, no entanto, apesar das admoestações do narrador, foi abandonada na St James Library, o que acabou por ocasionar, no momento em que uma nova geração de livros controversos ingressa na biblioteca, uma verdadeira batalha dos livros. O guardião da Biblioteca Real defendia os Modernos e perseguia os Antigos. Os livros, em tal contexto belicoso, se organizam de maneiras improváveis: Descartes e Aristóteles, Platão e Hobbes. Os livros modernos se alinham em tropas, e os antigos ouvem a interpretação que Esopo, o pai da fábula, faz dos fatos:

“Quanto a nós, os antigos, contentamo-nos, como a Abelha, em Nada pretender de Nosso, além das Asas e a Voz; ou seja, os nossos vôos e a nossa Linguagem; pois o Resto, de tudo quanto temos, foi conseguido por Labor infinito, e busca, e andanças por todos os recantos da Natureza: a Diferença é que ao invés de Imundície e Veneno, preferimos Mel e Cera para encher as nossas Colmeias, fornecendo assim à humanidade as duas coisas mais nobres, que são a Doçura e a Luz”.

Doçura e luz, doçura e luz... Os modernos, como as aranhas, dominam a nova indústria dos venenos químicos, os antigos se ligam à natureza e ao mel que ela produz, e doçura e luz, doçura e luz... Pois eu já havia visto isso antes, em um lugar que me pareceu improvável: Matthew Arnold (1822-1888). O crítico literário vitoriano que falava grego desde pequeno transformou essa expressão em símbolo de uma época quando com ela batizou um dos capítulos do seu muito influente livro Culture and Anarchy (1869). Corri ao livro para me certificar da origem da expressão, e eis o que encontro:


“Isso é admirável e, de fato, a palavra grega eufuía, uma natureza finamente equilibrada, dá exatamente a noção de perfeição tal qual a cultura nos leva a concebê-la: uma perfeição harmoniosa, uma perfeição na qual as qualidades de beleza e inteligência estão ambas presentes, que une 'as duas coisas mais nobres’ – como Swift, que de uma das duas em qualquer medida, tem ele mesmo muito pouco, com muita felicidade as chama em sua A Batalha dos Livros (Battle of the Books) – 'as duas coisas mais nobres, doçura e luz'. O eufués é o homem que tende à doçura e luz; o afués, por outro lado, é o nosso Filisteu” (tradução minha).

Matthew Arnold já havia mencionado Swift quando introduziu a expressão em seu texto, e eu, mais uma vez, passei os olhos sem de fato atentar para esse pequeno detalhe, da primeira vez que li... A lição que posso tirar de mais esse episódio de reconhecimento feito na velocidade das faíscas atrasadas é: que bom, pelo menos não mais estou cega com relação à doçura e à luz.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Alexandre Cabanel, uma força subterrânea

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ao longo do ano de 2007 (era meu último semestre como professora substituta no Instituto de Artes da UFRGS) realizei, com minhas turmas de História da Arte II uma atividade que batizei de 1863, “A Batalha dos Impressionistas”: O salão oficial (Alexandre Cabanel) e o Salão dos Recusados (Edgar Manet). As turmas se dividiriam em dois grandes grupos e teriam de defender, respectivamente, os argumentos dos artistas acadêmicos do século XIX, e aqueles dos artistas “recusados”. Os grupos que “encarnaram” os acadêmicos tiveram de descobrir quem era Alexandre Cabanel (houve mesmo um aluno que, no dia do debate, foi para a aula vestido de Cabanel – assim como outro membro do seu grupo se fantasiou de Puvis de Chavannes), na época uma descoberta também para mim bastante recente. Os alunos se divertiram com a proposta (certamente alguns mais do que outros) e eu, findo o meu contrato e extinta a disciplina (História da Arte II fazia parte do currículo antigo e fui eu a ministrar sua derradeira aula, no segundo semestre de 2007), vez por outra tornei a bisbilhotar a respeito de Cabanel, essa figura que tão enigmática me pareceu.

Com o perdão da redundância, comecemos do começo: Alexandre Cabanel (1823-1889) é um bom exemplo daquilo que hoje entendemos por arte acadêmica (rótulo frouxo e impreciso, é necessário que eu insista nesse ponto). Sempre estreitamente vinculado ao Salon de Paris (ganhara o Prix de Rome em 1845 e seus alunos participavam ativamente de todas as edições do Salon), tornou-se professor da École des Beaux-Arts em 1863 e, juntamente com William-Adolphe Bouguereau, mais um pintor acadêmico reconhecido na época, fez parte do Júri que recusou, entre tantos outros, Manet, Camille Pissarro e Henri Rousseau. O seu quadro O nascimento de Vênus fez imenso sucesso no Salon de 1863, e foi comprado por Napoleão III, que o elegeu seu pintor favorito.

É difícil entender, em um primeiro momento, o que pode ter atraído o público (e Napoleão) nessa obra, que agora causa uma impressão tão insossa: a previsível Vênus depositada sobre o mar e cercada por insípidos anjinhos. Podemos buscar explicações em ilustrações de revistas da época, que formavam em parte a cultura visual dos frequentadores do Salon – um exemplo é essa Ninfa atormentando um golfinho (Nynphe tourment um dauphin), de Joseph Felon, publicada em uma edição da revista L’Artiste de 1863.


Nessa ilustração a ninfa é apresentada de modo bastante protocolar. A situação em que ela se encontra pressupõe movimento, mas esse movimento não é realmente visível – a ninfa e o golfinho são construídos de modo a parecerem estáticos.

Seria fácil cedermos à tentação de indicarmos muitas semelhanças entre a Vênus e a Ninfa, seria fácil considerá-las, ambas, inertes e esquemáticas, o que confirmaria a hipótese de que há muita convenção na experiência de observar e, mais do que isso, avaliar um quadro.
No entanto, tornemos a olhar para a Vênus de Cabanel, o que eu, particularmente, não fiz sozinha, mas guiada pelo artigo de Gabriele Genge, Geschichte(n) um Cabanels Naissance de Vénus Von 1863: Körper als Text und Bild: a posição em que a Vênus é apresentada diverge dos exemplos mais antigos, de Ticiano a Poussin. Genge argumenta que se trata de uma Vênus eminentemente moderna, marcada pelas ousadas poses das fotografias eróticas que circulavam então em Paris – Courbet também bebe nessa fonte, ao se inspirar em fotografias de Auguste Belloc.

Fotografia de Belloc e Vênus de Cabanel

De todo modo, mesmo que se trate de ousadia, é ousadia contida, aceitável em um Salon. Alguns anos depois desse Salão dos Recusados, um evento único, teríamos as exposições impressionistas, e Cabanel naturalmente deveria sair de nosso campo de visão – não é comum encontrar seu nome em histórias gerais da arte do período. No entanto, já sabemos muito sobre os impressionistas, e é pelo menos curioso descobrir o que o autor daquela Vênus pode ter feito de sua carreira, em uma época em que as tendências estéticas se alternavam com velocidade cada vez maior. Teria ele continuado o caminho que sua Vênus fotográfica apontava?


Fedra e Cleópatra

Não propriamente. Cabanel irá, como veremos, combater os impressionistas e adotar as temáticas popularizadas pelos pré-rafaelitas e pelo esteticismo inglês, mantendo-se bem-sucedido. Assim, sucedem-se A filha de Jephthah (1879), Phèdre (1880), Cléopatre essayant des poisons sur des condamnés à mort (1887), entre várias outras.


Anunciação (1848), de Rossetti, e O Tepidarium (1881), de Alma-Tadema

Há muito de Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) (mesmo do primeiro, com sua famosa Anunciação) e do superstar da época, Alma-Tadema (1836-1912) (vejamos seu Tepidarium, de 1881), nessas mulheres de cabelos longuíssimos, pele muito pálida e atitude blasé, que continuarão a ser pintadas até a virada do século e que se tornarão um dos temas típicos da dita pintura acadêmica. Famoso em vida, profundamente influente entre seus contemporâneos (até nosso Pedro Américo lhe deve algo, se formos julgar sua Judite, de 1880), terá a fama póstuma, no entanto, negada pela posteridade: suas lânguidas femmes fatales foram paulatinamente conduzidas aos porões dos museus com a chegada de uma nova geração de mulheres modernas, angulosas, geométricas, que vibra com a energia tomada de empréstimo às máscaras africanas.

A filha de Jephthah (1879), de Cabanel, e Judite rende graças a Jeová (1880), de Pedro Américo