domingo, 23 de outubro de 2011

Proust e a arte da guerra

domingo, 23 de outubro de 2011

Marcel Proust (1871-1922)

Lendo hoje o Segundo Caderno da Zero Hora de ontem, deparei-me com uma matéria de Luiz Antônio Araújo sobre a disciplina que a prof. Regina Zilbermann ministra no PPG em Letras da UFRGS. Isso me fez lembrar o segundo semestre de 2002, quando eu, aluna da prof. Zilbermann no PPG em Letras da PUCRS, apresentei em sua disciplina um trabalho sobre Proust (sim, lemos tudo, e em francês) intitulado Os muitos caminhos de Guermantes. Um dos subcapítulos de meu texto tratava justamente da guerra em Proust, em especial do modo como o autor a aborda no último volume dessa vasta obra. A guerra não era o tema da disciplina, e cheguei a ele levada por meus próprios interesses pelo assunto. Que bom ver, quase dez anos depois, tal insight da época ressurgir em uma perspectiva mais ampla. O que então escrevi, a título de curiosidade, coloco abaixo:

A ARTE DA GUERRA

Durante sua estadia em Doncières, o narrador conversa com Saint-Loup sobre teorias da guerra, e impressiona-se com o que chama de aspecto “estético” do planejamento das batalhas – o trecho é um tanto longo, mas merece ser reproduzido:

– [...] Tu me dizes que se copiam batalhas. Acho efetivamente estético, como dizias, vislumbrar sob uma batalha moderna outra mais antiga, nem sei dizer como me agrada essa idéia. Mas então não é nada o gênio do chefe? Não faz outra coisa senão aplicar regras? Ou então, para ciência igual, há grandes generais, como há grandes cirurgiões que, sendo os mesmos sob o ponto de vista material os elementos oferecidos por dois estados mórbidos, sentem no entanto por um nada, talvez tirado da sua experiência, mas interpretado, que num caso é preferível fazer isto, noutro caso aquilo, aqui convém operar, ali abster-se?

– Claro! Verás Napoleão não atacar quando todas as regras mandavam que atacasse, mas uma obscura adivinhação lho desaconselhava. [...]. Mas verás generais imitarem escolasticamente certa manobra de Napoleão e chegarem ao resultado diametralmente oposto (Proust, 2000, p.102).

A aproximação entre estética, ou, em outras palavras, entre arte e guerra poderia parecer, à primeira vista, fortuita, fruto de imaginação romanesca, mas se buscarmos subsídios seja entre teóricos de guerra, seja entre historiadores das idéias, veremos que tem fundamento. Maurice, conde de Saxe (1696-1750), no Avant-propos de seu Mes rêveries, um dos mais influentes manuais de tática e treinamento militar do século XVIII, já escrevia que “Todas as ciências possuem princípios e regras, menos a guerra”. Essa impossibilidade da guerra configurar-se como ciência é explicada pelo historiador e filósofo Isaiah Berlin por meio da aproximação entre grandes estadistas, estrategistas, romancistas e outros homens de “gênio”, pois todos eles

não podem comunicar seu conhecimento diretamente, não podem ensinar um conjunto específico de regras, não podem expressar qualquer proposição que tenham eventualmente estabelecido, sob uma forma em que possam ser facilmente aprendidas por outros [...], ou ensinar o método que, depois deles, qualquer especialista competente possa praticar, sem necessitar do gênio do inventor ou descobridor original (Berlin, 1999, p. 55).

Tanto na arte quanto na elaboração de estratégias militares a habilidade envolvida é a compreensão, ao invés do saber, trata-se de compreender a configuração de uma situação ou de um conjunto de eventos único, que não encontra similar exato no passado e nem irá se repetir identicamente no futuro, e a partir disso, dizer “o que combina com quê: o que pode e o que não pode ser feito em certas circunstâncias, que meios vão funcionar em tais ou quais situações e até que ponto” (Berlin, 1999, p. 55). Não podemos nos esquecer, contudo, que se essa aproximação entre arte e guerra sustenta-se com relativa facilidade quando a guerra que se imagina é aquela que ocorria até o final do século XIX, pode já não encontrar apoio tão seguro quando pensamos nas guerras do século XX, mundiais, totais, tecnológicas e de massa. Um rápido apanhado histórico sobre a evolução das teorias de guerra pode esclarecer essa dificuldade. Por muito tempo as teorias de guerra se resumiram a imitar táticas romanas. O já mencionado conde de Saxe, no seu manual publicado em 1757, em pleno Iluminismo, a partir de sua experiência na guerra contra os turcos procura mostrar como se poderia racionalizar a organização das tropas no que diz respeito a vestimenta, entretenimento, formação dos soldados e combate. O interesse por teorias da guerra é então crescente, o que explica a boa acolhida obtida pela tradução d’A arte da guerra, de Sun-Tzu, tradução feita pelo missionário jesuíta J.-J.M. Amiot e publicada em Paris em 1772 (provavelmente lida por Napoleão). O livro, escrito no séc. IV a.C., vê a guerra como matéria política e considera como estrategista de gênio aquele que tem talentos diplomáticos, que subjuga o exército inimigo com o dispêndio de um mínimo de recursos e de violência. As bases da guerra moderna, no entanto, encontram-se no pensamento do prussiano Carl von Clausewitz (1780-1831), diretor da escola de Guerra de Berlim. Em seu A guerra (Der Krieg) apresenta teoria onde a guerra subordina-se à política (“a política é a continuação da guerra”), teoria que posteriormente inspirou Ludendorff a criar o conceito de “guerra total”- conceito ampliado por Hitler. Só que aqui o mínimo de violência, ao contrário da teoria chinesa, não é mais o que se procura. Na guerra moderna os combates prosseguem até a exaustão total e as metas almejadas são ilimitadas. A guerra moderna, nas palavras de Hobsbawm, “envolve todos os cidadãos e mobiliza a maioria; é travada com armamentos que exigem um desvio de toda a economia para a sua produção, e são usados em quantidades inimagináveis; produz indizível destruição e domina e transforma absolutamente a vida dos países nela envolvidos” (Hobsbawm, 1995, p.51). O número de mortos também não se compara àqueles de outros tempos: enquanto na Guerra franco-prussiana em torno de 150.000 pessoas morreram, na Primeira Guerra Mundial só a França, por exemplo, perdeu aproximadamente 1.600.000 vidas. Portanto, quando as personagens de Proust aproximam guerra e estética, ainda têm em mente uma certa visão romântica da guerra. Não que a comparação tenha se tornado impossível, mas a partir da Primeira Guerra ela passa a exigir nova formulação – o peso das decisões de um único estrategista diminui, o poder dos que desenvolvem tecnologia aumenta, as estratégias já não são mais mosaicos de guerras antigas porque o conceito de guerra mudou radicalmente. No último volume de Em busca do tempo perdido, Le temps retrouvé, podemos perceber mais claramente o narrador lidando com a Primeira Guerra como se fosse uma guerra terrível, sem dúvida, mas uma guerra como as anteriores, em postura que se assemelha àquela que adota com relação às artes em geral: ao invés de comentar os movimentos contemporâneos, o narrador se refugia no passado e não avança além do impressionismo; ao invés de desenvolver uma nova estética que dê conta de um tipo inédito de guerra, prefere tratá-la como se fosse uma guerra entre tantas, uma guerra antiga, entre “cavalheiros” – preferências que mais uma vez reforçam um dos fortes leitmotivs do romance, a oscilação entre o histórico e o atemporal, entre o concreto e o idealizado.