segunda-feira, 31 de maio de 2010

Becoming popular: Shakespeare Gallery

segunda-feira, 31 de maio de 2010
Era primeiro de maio de 1789 e poucos poderiam imaginar na Inglaterra que a Revolução Francesa iria estourar dentro de pouco mais de dois meses. No próprio país, por outro lado, uma pequena revolução no domínio das artes já estava ocorrendo. Neste dia John Boydell (1720-1804) coloca o ponto final no Prefácio que elaborou para A Catalogue of the pictures, etc. in the Shakspeare Gallery, Pall-Mall, que seria publicado em Londres em 1793. Em novembro de 1786 Boydell teve a ideia de criar a Shakespeare Gallery, que envolveria a publicação das peças completas de Shakespeare em 8 volumes, a exposição de grandes pinturas (no mínimo 72) com cenas de peças do dramaturgo em uma galeria e a elaboração de duas série de gravuras a partir das pinturas, uma em grande formato, para colecionadores, e uma em pequeno formato, para acompanhar a nova edição das peças. Boydell pretendia aproveitar o crescimento industrial da Inglaterra e transformar a arte em negócio lucrativo – daí a ênfase em um meio reprodutível como a gravura, sobre o qual Boydell projetava grandes expectativas. Boydell na verdade é mais um dos que procura continuar a bem-sucedida trilha aberta por William Hogarth (1697-1764) décadas antes, a elaboração de pinturas e sua reprodução em gravuras para grande público. Mas em pelo menos um ponto Boydell procurava se distanciar de Hogarth: a temática.

Se Hogarth fez sucesso com suas críticas aos costumes e com seu constante recurso ao humor, Boydell abraça a causa da também recém-criada Royal Academy, ou seja, defende o estabelecimento e a consolidação da pintura histórica na Inglaterra. Onde poderiam os pintores históricos ingleses procurar por inspiração para suas obras? Deixemos que o próprio Boydell nos explique (traduções minhas ora em diante):

“Ainda que eu acredite que vá ser facilmente admitido que nenhum assunto parece mais apropriado para formar uma Escola Inglesa de Pintura Histórica como as cenas do imortal Shakespeare, ainda assim deve ser sempre relembrado que ele possui poderes que nenhuma pena pode alcançar, pois tal era a força de sua imaginação criativa que ainda que ele frequentemente vá além da natureza, ainda continua a ser natural, e parece apenas fazer o que a natureza teria feito se ultrapassasse seus limites usuais. Não deve então ser esperado que a arte do Pintor jamais possa igualar a sublimidade de nosso poeta”.

A idéia de escolher Shakespeare tem seus fortes motivos nesse período. Desde o começo do século XVIII as obras de Shakespeare vinham merecendo reedições cada vez mais cuidadosas. Na metade do século o ator David Garrick (1717-1779) causa furor com suas interpretações de personagens de Shakespeare. Hogarth o imortalizou como Richard III em 1745, em uma de suas telas, e Jacques-Louis David (1748-1825) chegou a ter a oportunidade de assistir a uma de suas interpretações em Paris, ficando profundamente impressionado. O teatro shakespeariano de Garrick, sua habilidosa exploração da pantomima impactavam os pintores da época. Além disso, o grande crítico Samuel Johnson também se ocupou de Shakespeare, encarregando-se de uma edição anotada do conjunto das peças. No Prefácio que escreve, então, para The Plays of William Shakespeare (1765), podemos identificar a provável fonte para os argumentos usados por Boydell em seu próprio prefácio:

“Outros escritores disfarçam as mais naturais paixões e os mais frequentes incidentes, de modo que aquele que os contempla no livro não vai conhecê-los no mundo; Shakespeare aproxima o remoto e familiariza o maravilhoso; o evento que ele representa não irá acontecer, mas se fosse possível, seus efeitos seriam tais como ele indicou; e pode ser dito que ele não apenas mostra a natureza humana tal como ela age sob exigências reais, mas como poderia ser encontrada em provações às quais não pode ser exposta”.

A iniciativa de Boylle teve, na prática, uma importância difícil de estimar para a arte inglesa que hoje chamamos de romântica. Colaboraram com o projeto os grandes pintores da época na Inglaterra, como Joshua Reynolds (1723-1792), Benjamin West (1738-1820) e Henry Fuseli (1741-1825), o tradutor de Winckelmann para o inglês. Os quadros de Fuseli estão entre meus preferidos, como este que mostra Macbeth com as três assustadoras bruxas, a pintura n. XIX do catálogo de Boydell, referente ao Ato I, Cena III da peça. Essa iconografia sombria de Shakespeare rendeu frutos ao longo do século XIX, e continua a render hoje. Quantos filmes não podemos assistir nesse “tom”?

Quanto ao negócio de Boydell, que nos melhores momentos chegou a contar com 1300 assinantes, ele naufragou em 1803, mergulhado em dívidas. O modelo proposto pela Shakespeare Gallery, no entanto, continuou a ser imitado. Tão cedo quanto 1792 já havia uma Shakespeare Gallery em Dublin, para a qual também colaborou com obras Fuseli – ele, diga-se de passagem, também por algum tempo tentou uma galeria própria, a Milton Gallery. Houve ainda um Historical Gallery, a Indian Gallery de Catlin, no século XIX, que veremos em outra oportunidade, e muitas outras variações da Shakespeare Gallery sob a forma de livro, como uma Shakespeare Gallery publicada apenas com ilustrações de personagens femininas das peças do dramaturgo (ao lado escolhi, entre as tantas possibilidades disponíveis, Ofélia) e a Gallery to Shakespeare’s Dramatic Works publicada em segunda edição em Nova York, em 1853, de autoria de Moritz Retzsch (1779-1857) – um evidente emulador do traço limpo do escultor e desenhista John Flaxman (1755-1826), que por sua vez buscava inspiração na decoração da cerâmica da Grécia antiga. Dessa eu escolhi, também de Hamlet, a cena da representação teatral, aqui construída de um modo tão tranqüilo quanto o de um desenho de colorir.

sábado, 29 de maio de 2010

Folheando L'Artiste

sábado, 29 de maio de 2010
Cá estou eu com outra velha revista, o primeiro ano do L’Artiste, Journal de la Littérature et des Beaux-Arts, publicado em 1831. Hoje, com a Internet, qualquer um pode olhá-lo em casa (http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k199553.r=). Além do domínio do francês, o grande problema continua sendo tudo o que se precisa saber para que seja possível perceber o valor daquelas páginas. Deixemos mais clara minha constatação, “flanando” pela revista: o artigo inaugural é de Etienne-Jean Delécluze (1781-1863), crítico de arte adepto do clássico e ex-aluno de David, que comenta vários quadros de Antoine-Jean Gros (1771-1835), pintor que justamente ocupou o posto sonhado por David, aquele de pintor oficial das campanhas de Napoleão. Um dos quadros a que Delécluze dá mais ênfase é a Peste de Jaffa (Napoleão visita os soldados que contraíram a peste pouco após a derrota no Egito), de 1804. Para ele Gros mereceu ser reconhecido por essa obra porque a pintou com a visão de um historiador, e soube dar ênfase também aos desvalidos – essa posição artística para ele é a ideal, tanto que conclui a crítica incitando os jovens artistas a continuar a cuidar, na composição, “como seus predecessores, dos pobres, dos desafortunados e dos vencidos” (traduções sempre minhas). Lembremos que o entusiasmo gerado pelas causas populares estava no ar em 1831. A Revolução de Julho de 1830 ainda era recente na memória e Luís-Filipe ainda deixava uma boa margem de liberdade à imprensa. Tal Revolução significava, entre tantas outras coisas, a vitória do Romantismo e a redenção de seu máximo herói, Napoleão. Assim sendo, não estranha que Gros apareça já na primeira página, nem que algumas páginas após surja a própria imagem de Napoleão em 1814, reproduzida em uma litografia da Imprimerie Lemercier (a maior casa de impressões litográficas da França na primeira metade do século XIX). A nota sombria é o destino de Gros, uma espécie de metáfora do destino da própria Revolução de Julho: em 1835 ele se joga no Sena, alegando estar farto da vida e dos problemas de subsistência.

Continuemos a flanar, mais rápido agora: encontramos a seguir uma resenha de Rouge et Noir (O vermelho e o negro, de Stendhal, facílimo de encontrar em português), que havia acabado de ser publicado, no final de 1830. O resenhista anônimo (Jules Janin, principal editor à época, talvez?) é profético: “É um livro que talvez um dia faça sucesso, e que está no mundo há grandes três meses. As publicações do autor envelhecem lentamente. Ele será sem dúvida conhecido pela posteridade, mas seus contemporâneos o ignoram”.

Há muito mais: uma descrição de La Bataille de Navarin, o panorama de Langlois que muito sucesso fazia à época, de autoria de A. Jal.; Kressler, conte fantastique, um inédito de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), escritor e músico alemão falecido havia pouco, idolatrado pelos românticos; uma resenha de Plik et Plok, de Eugène Sue (1804-1857), que com George Sand e Balzac formaria o triunvirato do romance social das décadas de 1830 e 1840; a ousada republicação de trechos dos Salões de Diderot; a resenha do recém-lançado romance Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo; a primeira parte de outro conte phantastique, dessa vez de Balzac, Le chef-d’oeuvre inconnu (A obra-prima desconhecida), em sua versão inicial (o final que lemos hoje foi acrescentado mais tarde); comentários sobre os dioramas de Daguerre, criados por ele em 1822, e sobre a moderna técnica da litografia, e ainda uma carta de Eugène Delacroix (1798-1863) intitulada Ao Diretor de l’Artiste, carta sobre os concursos, em que o pintor critica o entusiasmo que toma conta da classe artística com o incentivo às premiações do Salão. Delacroix conclui sua argumentação com um elogio ao Diretor: “Você nos oferece suas colunas para nelas depositarmos nossas queixas, você é praticamente o único que a política não invadiu. Mantenha-se firme, senhor; resista a essa torrente; falemos de música, de pintura, de poesia, o senhor verá chegar até nós todos os que conferem o primeiro posto aos prazeres da imaginação”.

Nancy Ann Roth, em um artigo chamado “L’Artiste” and “L’Art pour l’Art”: The New Cultural Journalism in the July Monarchy, a partir da análise de manifestações como as de Delacroix, pretende que L’Artiste tenha sido o primeiro modelo de periódico exclusivamente dedicado às artes em seu sentido romântico, como campo isolado de todos os outros, especialmente da política. Entendamos isso em sentido bem amplo. Como pudemos ver, através das seleções de textos com maior ênfase em crítica social ou institucional, e das menções textuais e iconográficas a Napoleão, para não falar em outras litografias, como a última que reproduzo, “Eu não sei ler”, a política continua lá, evidentemente, mas agora vinculada à utopia social e situada, portanto, um pouco mais à esquerda.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Uma bengalada no ar: Laurence Sterne

quinta-feira, 27 de maio de 2010
1831 foi um ano agridoce para o romancista Balzac. Escreve muito e começa a ganhar muito dinheiro, e assim como ganha, gasta, para não falar das imensas dívidas remanescentes de seu fracasso como editor (experiência que será o mote de Ilusões Perdidas). Nesse mesmo concorrido ano – lembremos que Victor Hugo lança seu retumbante sucesso, Notre-Dame de Paris, que seria o estopim para a restauração da catedral homônima – publica um romance que chamará a atenção do público: La Peau de Chagrin (A pele de Chagrém, uma espécie de amuleto mágico ao qual recorre o protagonista, Rastignac). Não nos interessa nesse momento o romance em si, mas sim a capa da primeira edição. Prestem atenção: uma linha sinuosa e, abaixo, a menção a Tristram Shandy. O que será isso? A linha sinuosa é uma bengalada mostrada pelo narrador de outro romance, A vida e as opiniões do CavalheiroTristram Shandy [The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman], de Laurence Sterne (1713-1768), que começou a ser publicado em 1760. Nesse romance coisas inusitadas aparecem: há capítulo suprimido por ser muito superior aos outros, há páginas pintadas de negro, há linhas traçadas das mais espetaculares maneiras que procuram mostrar os possíveis desdobramentos da narrativa e há, como já mencionei, o desenho da dita bengalada. Como descrever o elegante movimento de uma bengala no ar? Não é mais fácil desenhá-lo? Foi isso que Tristram Shandy, muito logicamente, pensou. O surpreendente é que não apenas pensou, como de fato desenhou. Balzac era desesperado por Sterne, e eu confesso que também sou. Tristram Shandy é o livro que eu levaria para a tal ilha deserta, e se todo o engenho e brilhantismo humano fosse um prédio e tivesse um teto, tenho certeza de que este último seria composto pelas páginas desse romance que foi best-seller na Inglaterra setecentista. Os formalistas russos também adoravam Sterne, e José Paulo Paes não disfarça seu próprio encantamento quando escreve o prefácio à sua tradução do romance para o português. Mas por que tanto alvoroço, afinal, em torno de um alentado romance do século XVIII? Porque para nós que valorizamos a originalidade e a criatividade literária, é difícil encontrar outra fonte tão borbulhante quanto Tristram Shandy, o gentleman inglês que decide escrever sua autobiografia nos mínimos pormenores (incluindo os eventos externos e ainda seus pensamentos): os detalhes sobre ele, seus pais, o tioToby e seus cavalinhos de pau, são tantos que nas 599 páginas do livro Tristram narra apenas seus cinco primeiros anos de vida (nas palavras do próprio Tristram: “Em suma, a coisa não tem fim; ---- de minha parte, declaro ter dedicado a isso estas últimas seis semanas, imprimindo-lhe toda a velocidade que me foi possível, - e ainda nem sequer nasci”). Entremeadas às narrações dos fatos o autor coloca na pena de Shandy as mais variadas divagações: uma defesa da digressão (“as digressões são incontestavelmente a luz do sol, - são a vida, a alma da leitura”), um ataque a regras (“Tivesse eu o diabo de qualquer outra regra para guiar-me neste assunto – e lá tenho alguma – como faço todas as coisas sem regra nenhuma – eu a entortaria e a faria em pedaços, atirando-a depois ao fogo. – Estou por acaso arrebatado? Estou sim, já que o assunto o exige. – Bela história! Cumpre ao homem seguir regras – ou às regras segui-lo?”), as inacreditáveis especulações de seu pai (vejamos uma delas, aquela sobre o urso branco: “UM URSO BRANCO! Muito bem. Vi jamais algum? Poderia eu jamais ter visto algum? Irei jamais ver algum? Deveria eu ter jamais visto algum? Ou posso jamais ver algum? Teria eu visto um urso branco! (pois como posso imaginá-lo?) Se eu chegasse a ver um urso branco, o que deveria eu dizer? Se eu jamais chegasse a ver um urso branco, então o quê? Se não posso, devo ou vou ver um urso branco vivo; terei jamais visto a pele de algum? Cheguei jamais a ver algum pintado? - descrito? Não terei jamais sonhado com algum? Será que meu pai, mãe, tio, tia, irmãos ou irmãs jamais viram um urso branco? O que dariam para vê-lo? Como se comportariam? Como se teria comportado o urso branco? É feroz? Domado? Terrível? Áspero? Suave? Vale a pena ver um urso branco?-- Haverá nisso algum pecado? - Será melhor que um URSO PRETO?"

Tristram Shandy é um livro impossível de ser resumido, dada a complexidade de sua estrutura. Cada página é tão variada, tão diversa da anterior, que acabamos lendo para ter a experiência única de percorrê-las em seu conjunto, mais do que para apreender a história. Não posso deixar de concluir lembrando que Machado de Assis também leu com lupa o romance de Sterne, o que se percebe, conforme já muitas vezes apontado pela crítica, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas... como dizer isso de maneira gentil? Bom, ele jogou água na dinamite.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Como posso te fazer ler?

terça-feira, 25 de maio de 2010
Adianto a resposta à minha própria pergunta: não posso te fazer ler. No ensino superior, se fores meu aluno, posso exigir trabalhos a partir das leituras indicadas e podes realizá-los através de uma leitura burocrática. Mas não me refiro a isso propriamente. Usamos essa palavra geral, leitura, para abranger uma gama de experiências incrivelmente diversas. Posso passar os olhos pelas linhas de um livro em um momento de devaneio, e não registrar nada do que li. Posso ler com atenção, e nada compreender, porque o texto escolhido parece escrito em grego para mim – menciona nomes que desconheço, lugares em que nunca estive, ou expõe idéias que não me agradam, ou ainda idéias que não consigo entender, independente do ângulo pelo qual as aborde. Eu posso ler e considerar essa leitura em particular irrelevante e inútil, ou, radicalizando um pouco, posso considerar toda e qualquer leitura desnecessária para minha felicidade nesta vida. De fato a leitura não traz necessariamente felicidade, eis aí algo que ela não pode prometer. A leitura, sendo bem franca, em certas circunstâncias pode mesmo ser nociva. Mas ainda assim, como posso te fazer ler? As pessoas desabituadas ao exercício da leitura (sim, sim, trata-se de um exercício físico também, ler exige e ler cansa) podem ficar com sono ainda no primeiro parágrafo. O sono pode surgir também quando lidamos com um texto diferente daqueles com os quais estamos acostumados. Tudo o que eu escrevi até aqui se aplica a textos em geral, mas agora precisarei afunilar os argumentos. Como eu posso te fazer ler textos considerados eruditos se não estás acostumado a eles? Por exemplo, Baudelaire escrevia para jornais, e hoje faz parte de nosso cânone erudito. O que posso te dizer para te convencer a lê-lo? Pensa bem, são muitos os empecilhos. Ele cita muitas pessoas que talvez não conheças, e o pior de tudo, usa ironia. Ele hoje é uma autoridade póstuma e talvez comeces a leitura (caso te decidas por esse passo difícil) com um ar reverente, disposto a levar a sério tudo o que o autor diz. Assim sendo, como vais perceber a ironia se não consegues destrinchar bem nem o que ele claramente parece estar levando a sério? Não é impossível que a primeira leitura de um texto como esse pareça aborrecida, cansativa, atordoante. O texto parece confuso, o autor não escreve tão bem quanto dizem, pode ser teu pensamento inicial. Mas não sei exatamente por que, podes insistir. Lês o texto de novo. Não, não, as coisas não melhoram, continuas sem entender. Imaginemos um pouco. Suponhamos que voltes ao texto anos depois, depois de passar por várias leituras de outros autores. Posso prometer que dessa vez vais ter sucesso? Não, de modo algum. O texto pode continuar a te parecer sem sentido e aborrecido. Não posso nem mesmo te prometer que a leitura metódica e continuada possa te garantir uma alta competência de leitura. Isso porque a leitura é apenas a ponta do iceberg. A leitura pode te servir como combustível para a construção de um mundo imaginário, e esse mundo pode ou não ter relação com os universos puramente livrescos. Sem essa tua franca atividade de ler atentamente e selecionar do que lês o que te importa no momento (ou o que não te importa mas, por algum motivo, te intriga), sem a constante comparação desses elementos com aqueles que destacarás nas leituras do futuro, pelo menos para uma leitura erudita não estarás preparado. Tal leitura, no entanto, como podes deduzir, é uma ínfima parcela de todas as leituras possíveis. De todo modo, devo te dizer que essa trabalhosa experiência, por alguns momentos (ainda que eu nem mesmo possa assegurar que eles ocorram para todos) pode te proporcionar o tipo de experiência sublime que talvez conseguisses alcançar, por exemplo, convivendo com as pessoas – podes te deparar com uma nuance inesperada que te fará meditar sobre o que pensavas conhecer; podes entender uma ironia por séculos esquecida, e trazer de volta à vida por alguns segundos o pensamento que estava morto; podes te irritar, te enfurecer e ter vontade de responder ao autor grosseiramente. Podes terminar a leitura com sono, como já disse, mas também podes te sentir mais vivo do que nunca. Não posso te obrigar a ler, absolutamente. Reitero que há a possibilidade de ser uma má experiência. Ainda assim, e talvez isso desperte o jogador que há em ti, não é de pouca importância a constatação de que... pode ser bom.

domingo, 23 de maio de 2010

Mercier e as artes na Paris de 2440

domingo, 23 de maio de 2010
Faz muitos anos que li Edição e Sedição, de Robert Darnton. Lembro de ter ficado empolgadíssima com o tema, um horizonte de especulação então totalmente novo para mim: como funcionava o comércio de livros proibidos no século XVIII? O que liam as massas e as classes mais privilegiadas? Quais eram as leituras proibidas e populares? De todo o material analisado por Darnton, um título para mim ficou mais gravado do que os outros: L’an 2440, de Louis-Sébastien Mercier (1740-1814), publicado em 1771, o primeiro romance utópico a projetar uma história no futuro – e que futuro! Mais de duzentos anos se passaram e ainda estamos longe de poder conferir a tal Paris de 2440. Eu tateava no francês na época em que li Darnton, e a internet ainda era uma realidade remota. Há algum tempo atrás, no entanto, em função das aulas que preparava para História da Arte II e também em função da minha tese em letras (com um capítulo inteiro sobre a literatura do XVIII) voltei a escarafunchar informações sobre Mercier (que merecerá um capítulo à parte; por ora, não o idealizemos) e sua obra. Descobri, e isso me pareceu milagroso, uma edição completa de L’an 2440, uma das primeiras, de 1772, na base de dados Eighteenth Century Online. Deu um trabalho daqueles baixá-la: a conexão era lenta e podia descarregar apenas 50 páginas de cada vez. De posse do livro, enfim, vi o que Darnton havia visto, a gloriosa e emocionante epígrafe extraída de Leibniz, “Le présent est gros de l'avenir” (“o presente está prenhe de futuro”), a projeção da Paris do futuro, de sua dimensão arquitetônica e cívica, mas também vi mais – uma descrição relativamente detalhada da nova Academia de Pintura, aberta ao povo (“precisei caminhar apenas alguns passos e logo me encontrava junto à Academia de Pintura. Entrei em vastos salões guarnecidos com quadros dos maiores mestres. Cada um oferecia o equivalente a um livro moral e instrutivo” – traduções sempre minhas), e as profecias que se realizaram, a defesa da autonomia do artista (“O gênio estava livre, seguia apenas suas próprias leis, e não mais se aviltava”), o elogio da reprodutibilidade técnica, evidentemente corporificada pela gravura (“porque uma gravura não é como um livro: um livro que não é bom, por isso mesmo é mau, enquanto uma gravura que se vê de uma passada de olhos sempre serve de comparação”) e da representação de temas contemporâneos, em detrimento dos clássicos, com base na justificativa de que é necessário buscar sempre a novidade, pois “As mais belas coisas com o passar do tempo se tornam comuns: o refrão é a língua dos burros”.

Em geral evito lentes cor-de-rosa para analisar o que quer que seja, mas devo dizer que esse acesso a uma quantidade inacreditável de fontes primárias que a internet possibilitou nos últimos anos tem sido, para mim, o que os americanos chamariam de uma “life changing experience”. Observar com meus próprios olhos aquilo que até então apenas via citado nos livros de outros autores, perceber a forma como todos esses livros dos séculos XIX, XVIII (e anteriores! Veremos alguns exemplos mais tarde, como o livreto publicado em homenagem à memória do falecido Agostino Carracci, no começo do século XVII) são interpretados, e mais do que tudo, poder eu mesma percorrer essa teia de idéias e aspirações congeladas no papel torna possível que, sem sair de minha casa (bem sei que por vários motivos quase sempre não é possível que seja de outro modo), eu realize as longas viagens, no tempo e no espaço, que considero realmente importantes. Como dar a ideia do que isso significa para alguém que, como eu, morre de curiosidade pelo passado?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Odiando com Baudelaire

sexta-feira, 21 de maio de 2010
Há bastante tempo estou às voltas com Baudelaire. Na adolescência li algumas das Flores do Mal, mas me impressionei mesmo com os Pequenos Poemas em Prosa (Os olhos dos pobres é insuperável). No meu pós-doutorado em artes visuais dei mais atenção, como seria de se esperar, aos Salões de 1845, 1846, 1855 e 1859. Quando era chegada a hora de preparar aulas para turmas de graduação e de pós-graduação, eu procurava extrair trechos interessantes desses Salões para “ilustrar” o pensamento de Baudelaire sobre artes, evitando assim me deter apenas em seu texto mais famoso, O pintor da vida moderna (1863 – não consigo evitar a associação do título com o Modern Painters de John Ruskin, da década de 1840, é provável que seja uma alusão, pois é quase certo que Baudelaire era leitor de Ruskin; aliás, como escapar de Ruskin quando se é leitor habitual do Illustrated London News?). Assim, primeiro fiz a seleção, mas só depois, revendo, remexendo nos meus velhos power points (que faço sempre com fundo negro e letras brancas, em uma eterna referência às aberturas dos meus queridos filmes de Woody Allen), percebi a lógica algo folhetinesca que regia boa parte dos trechos que escolhi: eu privilegiei o ódio de Baudelaire, destaquei momentos passionais, frases de efeito e afirmações bombásticas, justamente aquilo que corrobora em muito a imagem de enfant terrible que hoje continuamos a fazer dele. Alguns exemplos práticos: em 1846 um Baudelaire ainda jovenzinho, desejoso de arriver no meio intelectual parisiense como os Rastignac e os Lucien de Rubempré balzaquianos, ainda treinando a si mesmo na crítica através de cópias e por vezes pequenos plágios dos Salões de Diderot, ataca com extrema virulência a pintura de Horace Vernet, o popularíssimo especialista em cenas militares que, conforme o próprio Baudelaire, decorava “a cabana do pobre aldeão e a mansarda do alegre estudante, a sala das casas de tolerância mais miseráveis e os palácios de nossos reis” (tradução minha, como todas as outras que aparecerão aqui). Pouco mais adiante Baudelaire nomeia seus sentimentos para com Vernet: “O Sr. Horace Vernet é um militar que pinta. Eu odeio essa arte improvisada ao toque do tambor, [...] essa pintura fabricada a golpes de pistola”. Não deixa de ser libertador ler agora essas palavras, ver um ódio estético ser afirmado assim, de modo tão direto e ao mesmo tempo tão engenhoso. Mesmo agora requer alguma coragem dizer, de algum artista nosso contemporâneo, que sua arte é “uma masturbação ágil e frequente, uma irritação da epiderme” (esclareçamos esse ponto: na época de Baudelaire, trata-se de uma ofensa). Neste caso em particular, justiça seja feita, o ódio tem algo de juvenil – em O pintor da vida moderna, escrito, como já mencionei, quase vinte anos depois do Salão de 1846, Baudelaire cita Vernet novamente, dessa vez recorrendo a termos bem mais conciliadores.

Em 1859 a amizade entre Baudelaire e os realistas (em sentido amplo) já havia esfriado. Sob o rótulo de realistas pensemos não apenas em Champfleury e Courbet, mas também naqueles membros da École de Barbizon que praticavam o que se entendia como arte “socialista”, tal como Millet. Eis o pecado de Millet, nas “etéreas” palavras de Baudelaire: “Seus camponeses são pedantes que possuem uma alta opinião de si mesmos. Eles exibem uma maneira de embrutecimento pesada e fatal que me dá a vontade de odiá-los”. Outra vez o ódio enunciado. Baudelaire odeia essa romantização das classes que hoje chamamos de “oprimidas” - nelas parece frequentemente ver apenas broncos que são o exato oposto do dândi. E se essas classes tomassem o poder? Qual seria o destino da cultura e da sofisticação do “homem cosmopolita”? Que tipo de arte teríamos, se tal temeridade ocorresse? Segundo o próprio Baudelaire, em Pobre Bélgica!, um de seus últimos escritos, cujo teor agressivo parte da crítica prefere atribuir à galopante doença do poeta e ao desagrado com o auto-imposto exílio belga, teríamos, nesse caso, nada menos do que o que se podia encontrar na Bélgica: “Na Bélgica, não há arte: a arte se retirou do país. Não há artistas [...]. A composição, coisa desconhecida. Filosofia desses brutos, filosofia à Courbet. Pintar apenas ao que se vê (Logo você não pintará o que eu não vejo)”. O prosaísmo popular, no entendimento de Baudelaire, é inimigo da qualidade máxima da grande arte e do grande artista, a imaginação, daí o ódio. Perturbador observar o quanto o medo de Baudelaire, sua suspeita com relação ao “popular” (um dos motivos de seu rompimento com Courbet e Champfleury, diga-se de passagem) ainda nos assombra.

Até aqui odiamos com Baudelaire, mas façamos esse sempre hercúleo esforço de sermos justos. Baudelaire podia odiar como persona pública, mas não confundamos alhos com bugalhos: partilhando do paradoxo de Nietzsche, poucas vezes se pôde ver alguém tão doce e gentil no trato pessoal, pelo menos a crer no retrato traçado por um de seus grandes amigos, o fotógrafo Nadar, em Charles Baudelaire Intime – Le poète vierge: Baudelaire odeia as vias de fato, e seus ódios literários e estéticos são mais um dos exercícios probabilísticos possibilitado pela mãe de todas as artes, a imaginação.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Preciso mesmo conhecer Joseph Priestley?

quinta-feira, 20 de maio de 2010
Todos temos alguns peixes a vender. O problema é que os meus, obras, fatos, ideias, pessoas que viveram no máximo até o começo do século vinte, não são mais tão frescos. Para desvendá-los é preciso um pouco mais de esforço, é preciso o mergulho no mundo virtual da leitura e no exercício intenso da imaginação. Em uma época que valoriza tanto o presenteísmo, talvez eu peça demais. Como, por exemplo, eu posso persuadir meus alunos bloggeiros e internautas, presentes e futuros, de que vale a pena gastar algum tempo com velharias tais como Joseph Priestley? E, aliás, quem já ouviu falar em Joseph Priestley por aqui? Já ouço a pergunta: "Qual é a utilidade disso, professora?" (não deixo de perceber a ironia da pergunta quando lembro que Priestley é um dos pais do "utilitarismo"...) Pois eu perdi meu tempo, uma tarde muito alegre, confesso, em descobrir quem ele era, há uns dois anos atrás.

Joseph Priestley (1733-1804) era um polímata, um daqueles intelectuais enciclopédicos, com múltiplos interesses e com uma voracidade, uma sede de conhecimento de causar inveja. Era teólogo em Birmingham e também cientista, e teve muitas dificuldades em conciliar essas atividades na prática – procurava abordar a religião com o mesmo racionalismo que empregava no exercício da ciência, o que não gerou especial simpatia entre os fiéis. O feito pelo qual é mais lembrado é o de haver descoberto o oxigênio em 1774 (ainda que não seja o único hoje a receber os créditos pela descoberta). Mas antes disso ele criou aquilo que fez com que eu o estudasse: a linha do tempo, o recurso gráfico que aparece em quase todo o livro didático de história e de história da arte hoje, o recurso que conheceu a glória e o desprezo junto às diferentes gerações de teóricos da história. Em 1765 Priestley publicou The chart of biography (1765), ilustrado com a disposição os grandes impérios da história em uma linha do tempo. Outra versão desse recurso aparece no livro seguinte dedicado ao tema, New Chart of History (1769).

A tal linha do tempo espalhou-se como pólvora, até atingir a popularidade e a onipresença que conhecemos hoje. Aos que criticam seu uso, por implicar em uma "história cronológica e linear", chamo a atenção, em primeiro lugar, para a extrema juventude do recurso (o que são 250 anos?), e em segundo lugar, para o fato de que história sempre exige um esforço de imaginação – a década de 1720 não é igual à de 1820, faz muita diferença haver nascido em uma ou em outra e, na falta de qualquer outro mérito, a linha do tempo ao menos permite que "visualizemos" essa distância ao apresentá-la espacialmente. É um recurso como tantos outros, e que pode continuar sendo útil mesmo para os que estudam história da cultura e da arte unicamente guiados por problemáticas.

Não posso deixar de contar o que aconteceu com Priestley depois de mudar nossos livros de história. Ele apoiou entusiasticamente a Revolução Francesa e, em 1791, junto com amigos, decidiu participar de um jantar em comemoração aos dois anos da queda da Bastilha. Pagou um preço bem alto pela ousadia (a fúria contra a revolução era muito grande na Inglaterra da época): perdeu todos os seus livros, os seus pertences, os equipamentos de seu laboratório, sua casa e sua igreja, pois uma multidão raivosa colocou fogo em tudo o que era seu. A solução? Buscar refúgio em Londres e, depois, nos Estados Unidos, onde se instalou em Northumberland, Pensylvania, em 1794, lá vivendo tranquilamente até a morte, em 1804.