segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ah, se eu desenhasse como Victor Hugo!

segunda-feira, 19 de julho de 2010


Também por acaso conheci os desenhos de Victor Hugo (1802-1885). Quando me pus a traduzir os textos de Baudelaire sobre paisagem para meu livro Paisagem Moderna: Baudelaire e Ruskin, fiquei obcecada com a seção Paisagem do Salão de 1859. Em seu último parágrafo, Baudelaire afirma preferir, às paisagens dos paisagistas franceses modernos (como Troyon, especialista em gado), entre outras obras, os nanquins de Victor Hugo. Pois então ele desenhava? Li Notre-Dame de Paris aos 14 anos e sou admiradora fervorosa do musical homônimo de Luc Plamondon e Richard Coccianti, cresci tendo pena da pobre Cosette, de Os Miseráveis (1861), que via em desenho animado. No entanto, não sabia que ele também desenhava.

E como desenhava! Delacroix, certa feita, disse que não haveria artista maior no século XIX se Victor Hugo tivesse se dedicado por completo às artes visuais. Mordida, outra vez, pela curiosidade, pesquisei com mais vagar os seus desenhos e aquarelas, que veremos aqui em ordem cronológica, sempre que possível. Minhas fontes básicas: La vie de Victor Hugo, de Alfred Barbou (1902), com desenhos de Victor Hugo gravados por Méaulle; Vision et pensée chez Victor Hugo, de L. Emery (s/d), Victor Hugo, dessinateur génial et halluciné (1964), de Jean Delalandee (uma bela e entusiasmada sistematização da produção visual do poeta), o imprescindível Victor Hugo na arena política, de Michel Winock, e, enfim, os sites do Musée Litéraire Victor Hugo (http://www.victor-hugo.lu) e o sempre maravilhoso Europeana.



Um dos desenhos mais antigos que achei data de 1816, esboçado pelo poeta aos 14 anos, na primeira página de um caderno de versos, acompanhado do seguinte título: “Les bêtises que je faisais avant ma naissance” (“As besteiras que fazia antes de meu nascimento”). Há vários outros desenhos caricatos da mesma “família”: a geração da qual fazia parte Victor Hugo cresceu exercitando as armas românticas da caricatura. Em Un classique ele debocha da empolação dos amantes do clássico (ele é porta-voz dos românticos, os clássicos, que ocupam posições institucionais de destaque na Paris de sua época, são seu alvo primordial) ao estufar exageradamente o peito do tipo que retrata. A monarquia também é caracterizada por outra caricatura sua (não sei tampouco a data), A carruagem da Monarquia: em um desenho de traços ágeis, rápidos, enérgicos – reparemos a economia de sua representação do solo-, desenho que visualmente perturba a harmonia da linha clássica, os nobres franceses estão ocultos em uma carruagem puxada por um magro pangaré.


No começo da década de 1830 Victor Hugo publica, com retumbante sucesso, Notre-Dame de Paris. Em 1838 ele encena a peça Ruy Blas, mais uma oportunidade para exercitar seu traço, como podemos ver no seu pantagruélico Goulatromba, um dos personagens de sua peça. Seus desenhos por essa época já circulavam entre um pequeno grupo de artistas e intelectuais, e eram muito disputados. Chifflart, um artista acadêmico que, segundo Delalande, venceu o Prix de Rome, escreveu o seguinte sobre os desenhos de Victor Hugo:

“Vi na grande quantidade de desenhos do Mestre um desenho de tal modo pungente, de tal modo alegre, de tal modo bem concebido, com um traço conduzido pelo instinto de modo tão feliz que não encontro nada como ele. Trate de ver isso” (tradução minha).

Em janeiro de 1841 Victor Hugo é eleito para a Academia Francesa, ele está no auge. Seus livros vendem muito e lhe rendem excelentes contratos com as casas editoras. Victor Hugo fica rico. Outras mudanças importantes ocorrem: Victor Hugo dia a dia se torna menos monarquista. A conversão ao Republicanismo ocorre com os eventos de 1848: ele será eleito membro da Assembleia Constituinte. Defende bandeiras como a instrução primária obrigatória e o ensino laico. A educação é um assunto intensamente discutido na França desde a Revolução Francesa – jacobinos propunham uma educação integralmente nas mãos do Estado, a criança é tirada dos pais; já os girondinos defendiam o modelo que prevaleceu, aquele em que a criança vai para a escola e retorna para casa.




O republicanismo irá custar caro a Victor Hugo. Em dezembro de 1851 ele é obrigado a deixar a França com a família, e busca asilo na Bélgica. A nova situação de exilado, no entanto, será propícia a sua atividade como artista visual. De 1854 é essa silhueta fantástica. Desconcertante, se estamos entre os que acreditam que toda a produção plástica do século XIX é “acadêmica”. Victor Hugo experimenta formalmente, brinca com manchas de tinta, raspa, respinga, dobra o papel. A mesma lógica de experimentação encontramos em sua Composição abstrata (sem data), nas Manchas com impressões digitais (1864-1865) e na Composição com manchas (1875).


O que acho espetacular é o modo como Victor Hugo concilia esse traço intensamente pessoal e sua enorme criatividade tanto com a mais pura experimentação formal quanto com a preocupação em se posicionar “graficamente” sobre eventos políticos de seu tempo. Desolador é o desenho de 1859 em que mostra o corpo putrefato de John Brown (1800-1859), abolicionista americano. Brown militava pelo armamento dos escravos no sul, uma solução radical que culminou no Massacre de Pottawatomie, em maio de 1856, com o assassinato de cinco escravocratas. Brown, apoiado por Emerson e Toureau, foi enforcado em Charles Town, Virginia, justamente em 1859.


Outro desenho que manda um recado político (tão rico formalmente, que possibilita uma leitura autônoma, bem mais “contente” se desconhecemos o subtexto) é Salle des séances du conseil municipal de Thionville (après l’entrée des Prussiens en 1871), desenho de 31 de agosto de 1871 que mostra a sala reduzida a ruínas, emblema do domínio da França pelos prussianos – Thionville era uma cidade da Alsácia Lorena disputada pelas duas nações.



Victor Hugo vagou por vários países durante o exílio. Muitos desenhos e aquarelas resultam de suas estadias em Vianden, Luxemburgo, frequentes entre 1862 a 1871. A obra que reproduzo logo no começo desse texto é a curiosa Vianden à travers une toile d’araignée, uma de minhas preferidas, e aqui embaixo podemos ver Vianden au Clair de Lune. Victor Hugo volta à França em 1871 e não abandona os pincéis e os lápis. Os que têm a sorte de partilhar sua amizade conseguem alguns de seus desenhos. Os que não têm, podem conhecê-los através de algumas gravuras de tradução já publicadas na época. Bom, mais uma vez aqui me rendo à presciente crítica de arte de Baudelaire: entre Troyon (e suas vaquinhas) e Victor Hugo, mil vezes o “desenho delirante” do poeta...