segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mary Wollstonecraft e suas filhas

segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Mulher ao pôr-do-sol, por Caspar David Friedrich, 1818


Ela era muito pequena para lembrar, mas por algum tempo viveu em uma família realmente feliz. Frances, logo chamada de Fanny, nasceu em 1794, filha de Mary Wollstonecraft (1759-1797) e de Gilbert Imlay (1754-1828). Fanny nasceu no dia 14 de maio, em Paris, em plena Revolução Francesa, nos últimos dias do terror (Robespierre seria guilhotinado em julho). Mary, sua mãe, estava apaixonada – deixara a Inglaterra em busca da Revolução, e Gilbert, americano, era duplamente revolucionário, pois havia participado ativamente da luta pela Independência dos Estados Unidos e agora se apresentava como diplomata dessa nação junto ao Estado revolucionário francês.

Mary Wollstonecraft por John Opie, c. 1797

Mary estava muito feliz com a pequena Fanny e com o companheiro. O mesmo não se pode dizer de Gilbert que, além de revolucionário e representante diplomático dos Estados Unidos na França, era especulador financeiro. Gilbert logo cansou da vida doméstica com Mary, e a abandonou, partindo sozinho para a Inglaterra.
Mary não aceitou nada bem a separação. A pequena Fanny não impediu Mary de se jogar de uma ponte, na tentativa de tirar a própria vida. A autora do livro A vindication of the rights of woman (1790), que incitava as mulheres a não se deixarem tratar como bibelôs, objetos decorativos pelos homens, que propunha, ao invés disso, que se tornassem fortes donas de casa, práticas e racionais, deixou-se levar pela paixão.
Mas os bons ventos voltaram a soprar. O Terror havia passado, Mary teve a sorte de encontrar um grande admirador em William Godwin. E mais uma vez engravida, e mais uma vez passa pelos duros trabalhos de parto. Não sabemos se a pequena Fanny gostou desse momento, pois as menininhas costumam ficar enciumadas com a chegada de novas irmãs. De todo modo, é provável que Fanny então não soubesse o quanto fora afortunada. Viveu três anos com sua querida mãe, e a pequeníssima Mary teria muito menos do que isso, uns míseros dez dias, tempo suficiente para que Mary Wollstonecraft abandonasse as filhas para sempre, dessa vez não arrastada pela paixão, mas pela morte.
Godwin recebe então todas essas heranças junto com a viuvez: duas filhas muito pequenas e o legado intelectual de Wollstonecraft. Do acervo deixado pela mulher Godwin consegue cuidar muito bem; as dificuldades residem é na educação das meninas. A solução que ele encontra é casar-se novamente, dessa vez com Mary Jane Clairmont. Fanny não gosta muito da madrasta, mas ela e Mary ganham uma nova irmã, Clara Mary Jane Clairmont (1788-1879), filha do primeiro relacionamento de Mary Jane.


As irmãs Mary e Claire

Fanny devia imaginar que sua mãe não aprovaria o fato de Mary Jane, sua substituta, mimar e tratar como uma coquette a própria filha e deixar de lado as enteadas. Afinal, não escrevera, em Vindication, que “as mulheres, consideradas não apenas como criaturas racionais mas também morais, devem conseguir adquirir virtudes humanas (ou perfeições) pelos mesmos meios que os homens, ao invés de serem educadas como um gracioso tipo de ser pela metade – uma das quimeras selvagens de Rousseau“.


Se não havia paz doméstica (as dívidas do pai avolumavam-se) nem amor materno, pelo menos Fanny ainda podia contar com sua irmã Mary. Ou era o que pensava. Mary apaixonou-se por um amigo da família, o jovem poeta Percy. Ao que parece Fanny também o amava, mas em segredo. Mary, no entanto, foi mais longe: fugiu com Percy em 1814, e para desespero dos pais, levou consigo uma das irmãs. E não foi Fanny.

Percy

Difícil ponderar o que Fanny deve ter sentido ao ser abandonada outra vez. A mãe a trocou pela morte, o pai biológico, por uma amante, o pai adotivo, pela madrasta, as duas irmãs (a biológica e a de criação), pela vida de fugitivas (Claire teria uma filha, Allegra, com Byron), e Percy, o poeta que amava, por Mary – provavelmente o mais fatal de todos esses abandonos. A nota que escreveu em 9 de outubro de 1816 talvez possa nos dar uma ideia:

“Há muito tempo determinei que o melhor que poderia fazer é colocar um fim na existência de uma criatura cujo nascimento foi desafortunado, e cuja vida foi apenas uma série de sofrimentos para aquelas pessoas que prejudicaram a própria saúde ao tentar promover seu bem-estar. Talvez saber de minha morte lhes traga dor, mas eles logo terão a benção de esquecer que tal criatura um dia existiu”.


Talvez o abandono leve ao abandono. Talvez seja um ciclo vicioso. Fanny Imlay abandonou a própria vida no mesmo dia em que escreveu a nota, aos 22 anos. Bastou a dose certa de láudano.Talvez Mary Shelley tenha lembrado de Fanny, sua irmã, quando escreveu, poucos anos depois, no seu célebre romance Frankenstein, o seguinte: “Afasta-te, ou vamos medir nossas forças numa luta em que um de nós deve morrer”.