quarta-feira, 7 de julho de 2010

Catlin e a causa perdida

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Ojibbeway. Pois passei um dia inteiro da minha vida atrás dos Ojibbeway. Eu nem suspeitava de sua existência antes de começar a trabalhar na pesquisa Paisagem Moderna: Baudelaire e Ruskin. Estava lendo os primeiros Salões de Baudelaire, e em meio ao material de apoio que encontrei, me deparei com o nome dessa tribo indígena da América do Norte: os Ojibbeway. Fiquei siderada quando descobri que um grupo deles havia sido levado para a Europa e que se tornara grande sensação de público na metade da década de 1840. Não foi muito fácil encontrar referências a respeito. De tanto insistir acabei encontrando a principal fonte sobre o assunto, os livros de George Catlin (1796-1872).

Já li algumas descrições de Catlin: um homem alto e muito forte, transbordante de energia. Não duvido por um minuto dessa leitura. No começo da década de 1830 ele passou a percorrer todo o território americano, e a registrar em pinturas os modos de vida, os rituais, e as principais figuras das diferentes tribos americanas, todas elas em perigo eminente de desaparecimento, diante da implacável expansão dos brancos para o Oeste. Pois Catlin subia e descia rios de canoa, entrevistava índios e os fazia posar para retratos, dava um passo atrás e os pintava habitando, ocupando as vastas planícies do Mississipi. Fez isso incansavelmente, até o começo da década de 1840. Não que não tivesse família. Era casado e tinha muitos filhos, cinco, se não me engano.


Bom, ele era americano, e, ainda que inspirado pelos ideais igualitários do iluminismo, e pela crença de que os hábitos selvagens em boa medida poderiam ser “aperfeiçoados” pela civilização, tinha o sonho americano de transformar essa sua intensa relação com as tribos em um negócio lucrativo, que agradasse a ambas as partes – ele e os índios.

Sua ideia, temos de admitir, olhando agora em retrospecto, foi mesmo brilhante: tomou o modelo pronto e popular da Shakespeare Gallery (que comentei em outra postagem, Becoming Popular...) e fez uma ligeira adaptação. Foi assim que criou a itinerante Indian Gallery: no lugar de quadros baseados em Shakeaspeare, retratos de índios e da cultura indígena norte-americana – também pintados a óleo e depois transformados em gravura. Ao invés da encenação de peças de Shakespeare, a atuação de um grupo de índios Ojibbeway (e depois Yoway).

Catlin levou sua trupe a Paris, e o sucesso foi imediato. Victor Hugo, George Sand, Chopin, Baudelaire, é longa a lista das personalidades que visitaram a exposição. George Sand escreveu um alentado texto sobre ela (que também li, mas ele mereceria um comentário à parte, que jogo para o futuro). Baudelaire igualmente comentou uma obra de Catlin em seu Salão de 1846. Os índios de Catlin logo foram transferidos para o Louvre, conforme a vontade de Luís Felipe, que com eles muito se divertiu. Podemos não apenas ler sobre isso, mas também “ver” um pouco desse “fenômeno” na obra em três volumes que Catlin dedicou a sua aventura européia: Adventures of the Ojibbeway and Yoway indians in England, France and Belgium (Londres, 1852).

Para tanto, prestemos atenção em algumas de suas ilustrações. Nesses belos, tranquilos desenhos, podemos entender melhor como funcionava a galeria: paredes repletas dos quatros com motivos indígenas pintados por Catlin (em torno de 500) e ainda objetos indígenas, e mesmo tendas, dispostos no espaço. Junto aos quadros por vezes os índios faziam exibições, que atraíam a curiosidade do público, ao mesmo tempo em que despertavam medo (sentimento muito bem descrito por George Sand em seu texto sobre a Indian Gallery).


Os índios também se apresentavam ao ar livre, para o público em geral ou ainda para nobres franceses, belgas e ingleses (Catlin excursionou pela Bélgica e pela Inglaterra), como podemos ver nas duas próximas ilustrações.



Os índios eram, finalmente, recebidos em algumas ocasiões por Luís Felipe, a quem Catlin ofereceu a possibilidade de comprar todo o acervo da Indian Gallery. Os índios deixaram registradas muitas de suas opiniões sobre essa experiência elegante nos Salões franceses, e também sobre assuntos variados, como o passeio pelos corredores do Louvre – não entendiam eles, por exemplo, qual o sentido de passarmos o dia a olhar centenas de quadros, se quando chegasse a vez de olharmos os últimos nem mais nos lembraríamos dos primeiros.


Catlin, amigo de sua trupe, também transformava em gravura os desenhos que alguns dos membros das tribos faziam para ocupar o tempo durante as folgas na turnê europeia. Eis os que escolhi: um deles, o modo como dois índios imaginaram que deveria ser o céu dos brancos, com suas seis diferentes formas de acesso; e o outro, um desenho de Say-Say-gon, o amigo de Catlin há pouco falecido, mostrando ironicamente o primeiro encontro entre um branco e um Ojibbeway.



A tranquilidade e a delicadeza das linhas das ilustrações, a ausência de cor, a composição harmoniosa, tudo isso cria uma encantadora sensação de paz que contrasta, e muito, com o que ocorria na vida de Catlin e dos índios naquele período. Mesmo cobrando ingressos, o negócio idealizado por Catlin se mostrou muitíssimo dispendioso: havia os vários índios a sustentar, e os gastos com hospedagem, alimentação e transporte. Os espetáculos eram bem-recebidos, mas os quadros, nem tanto – Luís Felipe, mesmo tendo a chance, não se interessou em comprar a Indian Gallery. Muitos dos índios do grupo de Catlin adoeceram na Bélgica e morreram de varíola – caso de seu amigo Ojibbeway. Catlin perdeu a esposa também nessa época, e de uma hora para outra se viu a cuidar sozinho de cinco crianças pequenas. Incríveis as provações, a quantidade de trabalho, e a insistência em tratar de um tema que costumava atrair menos admiração do que desprezo.

Catlin voltou para os Estados Unidos, voltou a viajar (dessa vez para conhecer os índios da América do Sul, e esteve até no Brasil), continuou a publicar seus livros, como O-Kee-Pa: a religious ceremony; and other customs of the Mandans (1867) e Illustrations of the manners, customs & Conditions of North American Indians (1876). Tentou ainda, mais algumas vezes, levar adiante sua causa, e vender sua coleção de quadros – como Van Gogh, sem o menor sucesso. Morreu bem idoso e bem pobre, justamente no momento em que os índios começavam a ser registrados em fotografias, anônimos, seriados como espécimes de museu. Os retratados de Catlin, estocados depois na Smithsonian Institution, não podemos esquecer nem deixar de perceber toda a melancolia que há nessa constatação, eram bem diferentes: únicos, altivos e orgulhosos, eles mantinham, cada um, o seu nome próprio.