sábado, 17 de julho de 2010

Mercier e o Terror

sábado, 17 de julho de 2010

No verão de 2009 eu estive às voltas com a realização da biografia de Pierre Daunou (1761-1840), um girondino que, entre tantas outras coisas, publicou, em 1795, a obra Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain de Condorcet, misteriosamente morto na prisão. Entre todos os textos que li no transcorrer da minha pesquisa, uma passagem da Notice sur M. Daunou (1855) me chamou especialmente a atenção. Nela, Gerard nos conta como Daunou, um dos 73 deputados da Convenção presos em 1793, durante o Terror, tomou conhecimento da morte de Robespierre. Daunou e outros companheiros, entre eles Louis-Sébastien Mercier (já escrevi sobre ele em Mercier e as artes na Paris de 2440), aguardavam a morte na prisão de Port-Libre. Em 28 de julho de 1794 o inesperado acontece: Mercier recebe na prisão um pão embrulhado em um pedaço de papel que continha a notícia da morte do líder jacobino. É Mercier, portanto, um revolucionário não girondino que detestava os jacobinos, aquele que transmite as boas novas aos demais presos.

O inusitado da cena me lembrou o procedimento poético da singularização, municiosamente analisado por Chklovski em A arte como procedimento (1917). O antológico exemplo que Chklovski, um dos principais expoentes do Formalismo Russo, nos oferece em seu texto é o do cavalo transformado por Tolstoi em narrador na novela Kholstomer. Há outros tantos exemplos da mesma estirpe que me ocorrem agora, mas citarei apenas mais dois: Kachtanka, o belo conto de Tchekhov que mostra o mundo visto pelos olhos de uma cadelinha, e a Cartuxa de Parma, romance de Stendhal (1783-1842) em que o jovem e inexperiente Fabrizio Del Dongo passeia pela Batalha de Waterloo sem fazer a mais vaga ideia daquilo que está presenciando.


Pois para mim a imagem de alguém como Mercier recebendo a notícia da morte de Robespierre através de um papel de embrulho é tão inusitada quanto aquela de cavalos e cadelinhas pensantes, ou de jovens italianos incapazes de decodificar um grande momento histórico, quando por acaso participam de um.


Mercier escrevia muito, publicava compulsivamente. Tal característica sua não passou despercebida a seus contemporâneos, e foi satirizada em caricaturas como a que vemos acima. Quanto às suas obras, o best-seller L’An 2440 e as muitas peças de teatro são anteriores à Revolução. Depois de 1789 ele resolve explorar alguns gêneros novos, que julgava agradar aos novos tempos. Em 1791 publica, em Lyon, os Costumes des Moeurs et de l’Esprit François avant la grande Révolution à la fin du dix-huitième siècle, ilustrado com 96 caricaturas. Algumas delas reproduzo aqui: um problema que às vezes assolava as vias públicas de Paris, a “chuva” de floreiras que despencavam dos andares mais altos de algumas casas; dois tipos urbanos, uma moça passeando com um menino; Mercier diante do Mont Blanc suíço, imaginando as muitas obras (aladas, como podemos observar) que ainda haveriam de sair de sua pena.


Em 1792 Mercier publica os Fragmens de politique et d’histoire. No segundo tomo um dos fragmentos (o de n. 67, para ser mais precisa) intitula-se Des femmes chez les anciens. Mercier acredita que, na Antiguidade, as mulheres eram mais livres entre os bárbaros, e subjugadas entre os povos do Mediterrâneo. Mercier não desiste de tentar prever o futuro (o que já havia feito em L'An 2440, como bem se sabe), pensando agora em como seria a recepção às obras de Voltaire por parte das próximas gerações (ele havia sido editor das obras de Rousseau, e dizia que “Rousseau é o corretivo de Voltaire”):

“A geração que vai nascer verá todos os nossos livros de modo bem diferente daquele com que os vemos; ressuscitamos muitos livros antigos desconhecidos, desdenhados. Quem ousaria dizer afirmativamente o que restaria de Voltaire nesses anos? Querer pesar uma cabeça humana é o cúmulo da temeridade; porque o tempo dá os mais formais elementos a todos esses intrépidos juízes” (tradução minha).


Passada a Revolução Mercier reúne textos e apontamentos feitos no período em uma obra em dois tomos, Paris pendant la Révolution (1789-1798) ou Le Nouveau Paris. Na introdução da reedição de 1862 é citada uma frase atribuída a Mercier, que caracteriza a ambiguidade ideológica que ele mesmo via em si e que era criticada por vários contemporâneos: “[...] sou tentado a queimar o que adorei e adorar o que queimei”. Também na introdução é citada uma passagem em que Mercier novamente deixa transparecer sua visão liberal com relação às mulheres, uma vez que se recusava a caluniá-las (prática comum durante a Revolução, basta lembrarmos dos terríveis e ofensivos panfletos que circulavam sobre Maria Antonieta e seus alegados “furores uterinos”):

“A maior covardia [...] é escrever contra uma mulher. Nossos ancestrais consideravam essa covardia um verdadeiro delito... Compus passavelmente madrigais em sua honra; mas em toda a minha vida não fiz, graças a Deus, o menor epigrama contra elas” (tradução minha).


Folheando o primeiro tomo de Paris pendant la Révolution encontrei no capítulo Chevelures Blondes a crítica de Mercier à decisão de se dissolver a Convenção, que está na base do Terror. Em 31 de maio de 1793 os girondinos dela são expulsos, e não levará muito tempo para que Mercier seja mandado para a prisão.


No tomo segundo Mercier inclui o capítulo Supplice de Robespierre, em que narra detalhadamente a morte do líder jacobino. Como já havia dito antes, Mercier odeia jacobinos, como se percebe em uma série de imagens – esta, por exemplo: “[...] eles são como a mulher de Macbeth, eles não podem fazer desaparecer nem desviar a vista dessas manchas inapagáveis” (tradução minha – não posso deixar de considerar significativo o fato de Shakespeare ser mencionado nesse momento). Mercier chega a comentar que estava preso nessa época; ainda sim, mesmo não tendo testemunhado a morte de seu pior inimigo, fez questão de descrevê-la como se a tivesse visto, e de julgá-lo moralmente com muita severidade:

“Seu nome carregado de imprecações está em todas as bocas: não é mais o incorruptível, o virtuoso Robespierre; a máscara caiu; ele é execrado; ele é transformado em responsável por todos os crimes dos dois comitês” (tradução minha).

Assim, é possível concluir que Mercier, que “viveu” na prisão um legítimo episódio de singularização (a morte de Robespierre em papel de pão), não a utilizou como recurso literário em seu relato sobre os últimos momentos do Terror. Mas não nos iludamos: a singela narração do que verdadeiramente aconteceu a Mercier em seus derradeiro dias de Terror, mesmo que explicitasse esse peculiar episódio de singularização, dificilmente o tornaria mais interessante do que Voltaire aos olhos do leitor contemporâneo.