quarta-feira, 28 de junho de 2017

quarta-feira, 28 de junho de 2017
Sobre um tênis da Nike, uma paisagem de Naysmith,
Parataxe e Hipotaxe



Tênis Nike Converse com tecido Harris Tweed

Um dos pré-socráticos dos quais apenas nos restam fragmentos, Empédocles (c. 490–430 a.C.), em Sobre a Natureza, concluiu que tudo o que há no universo resulta da combinação de quatro elementos, a saber, fogo, água, ar e terra, movidos por duas forças básicas, o amor, que os une, e o ódio, que os separa. Mais tarde, referindo-se apenas ao comportamento humano, Freud chamaria de Eros a força que une, e de Thanatos a força que separa ou destrói. União e desunião, seja nos componentes do universo, seja no comportamento das pessoas, comportam, respectivamente, diferentes estados, mais estreitos ou mais afastados.
Nada nos impede de pensar, ainda metaforicamente, nesses "estados" de união (proximidade) e desunião (afastamento), em termos de composição artística, em termos de abertura ou densidade das tramas. Nesse sentido podemos recorrer à noção de hipotaxe para analisar obras e discursos de “trama fechada”, “unida pelo amor”, por exemplo, com alto grau de subordinação das ideias ou conceitos. No caso do discurso hipotático, uma frase explicaria e iria se ligar fortemente à seguinte, do início ao fim, com a intenção de que se diminua a possibilidade de leituras ambíguas, como se vê nos textos legais e nas ordens.
A “força contrária”, a “separação pelo ódio”, encontraríamos na parataxe quando usada na estruturação de informações em estado bruto, descrições e imagens. É ao leitor ou observador que cabe “amarrar” todas elas e definir um sentido final. Trata-se de trama muito aberta, de procedimento muito subjetivo, com possibilidades de leitura mais amplas e variadas. Tal é o procedimento estruturante que podemos identificar, por sua vez, em textos literários como o Ulisses, de James Joyce, e mesmo no discurso de posse de Barack Obama, de 2009, que foi considerado, aliás, paratático pelo crítico Stanley Fish.
A parataxe brilha, sobretudo, na poesia. O crítico Theodor Adorno foi o responsável pela transformação desse conceito gramatical em conceito de análise filosófica em seu famoso ensaio Parataxis, dedicado ao poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843). Neste ensaio Adorno destaca que Hölderlin, ao contrário de muitos poetas de sua geração, transforma a parataxe em um recurso não conformista de construção de texto; isto é, ao invés de procurar construir um discurso hipotático harmonioso, que bem se ajuste ao realismo burguês (não nos esqueçamos que Adorno era marxista), Hölderlin privilegia a parataxe, impedindo assim que o sentido “descole” da base estética – na parataxe, forma e conteúdo são uma coisa só.
Mas, como já adiantei, podemos pensar a parataxe em termos imagéticos. Os habitantes de algumas ilhas escocesas (mais especificamente das ilhas de Harris, Lewis, Barra e Uist) há muito tempo fabricam um tecido de lã, o Harris Tweed. Outrora um tecido de luxo, rústico e bem estruturado, atingiu o auge da popularidade nos anos sessenta; no entanto, com a ascensão dos tecidos sintéticos, mais confortáveis, várias tecelagens das ilhas fecharam, e a indústria começou a se recuperar apenas quando a Nike, em 2004, decidiu fabricar uma linha de tênis empregando esse tecido. O que chama a atenção na trama desse tecido é que as cores são selecionadas pelos fabricantes a partir da paisagem local no momento em que ele é fabricado. Temos, assim, tecidos que resultam, respectivamente, da combinação de cores das paisagens escocesas de verão, outono, inverno e primavera. Em outras palavras, podemos pensar o Harris Tweed como uma paisagem composta de modo radicalmente paratático, pois há ali elementos da paisagem, dispostos de maneira muito aberta, com grande margem de interpretação.

Amostra de Harris Tweed, séc. XX

Para contrastar, ao lado da amostra de tecido podemos colocar o quadro de um dos maiores paisagistas escoceses do século XIX, Alexander Naysmith (1758-1840). Temos ali a mesma forma de representar a paisagem que se encontra no tecido? Evidentemente não. Quando comparadas, a paisagem de Naysmith se situa, sem dúvida, no pólo hipotático, pois a paisagem é apresentada em termos sinedóticos, de maneira realista e descritiva.


Alexander Naysmith: Paisagem da Highland com Figuras

Poderíamos concluir, apressadamente, a partir dessa consideração, que a hipotaxe visual se presta melhor à representação realista, enquanto a parataxe visual seria mais adequada à abstração. Na verdade, ambas podem funcionar, indistintamente, em convenções realistas ou abstratas. Vejamos os exemplos a seguir.
Comecemos com uma obra de Joseph Beuys (1921-1986). Fat Battery, uma bateria construída a partir de feltro e gordura, pode perfeitamente ser entendida em uma concepção hiperrealista (ou sinedótica) de vanguarda (ainda que outros tropos estejam envolvidos aqui, como a metonímia), na medida em que materiais brutos, concretos, e não a representação dos mesmos, têm suas qualidades destacadas e compõem o trabalho. E a obra de Beuys é organizada, evidentemente, segundo a lógica paratática.


Joseph Beuys, Fat battery, 1963, Tate

Por outro lado, a fotografia a seguir, tomada por John Reekie (1829-?), um dos tantos fotógrafos pouco conhecidos da Guerra Civil americana, igualmente realista, foi realizada dentro da lógica hipotática: a narrativa representada pela cena é bastante clara, quando vista pelos observadores da época: soldados negros recolhem as ossadas de vítimas no campo de batalha.
John Reekie: African Americans Collecting Bones of Soldiers Killed in the Battle, Cold Harbor, VA, April 1865

Isto posto, concluo reforçando que parataxe e hipotaxe, como formas de estruturação, e não como “índices de realidade”, podem ser, sem dúvida, conceitos muito úteis não apenas para pensarmos textos, como quis Adorno, mas também para pensarmos literalmente a “trama” das imagens.

terça-feira, 20 de junho de 2017

O sarcasmo de Hanna Levy

terça-feira, 20 de junho de 2017

Vez que outra os pesquisadores das várias áreas das Humanidades deixam escapar por qual razão elegeram seu objeto de estudo. “É lindo”, “é instigante”, “há pouca pesquisa sobre isso”, etc.  Desde 2013 tenho escrito sistematicamente sobre Hanna Levy, e o que me atraiu em seus textos, em um primeiro momento, devo admitir, foi o sarcasmo. Já havia lido vários de seus textos muito, muito antes de começar a pesquisá-la. Lembro bem: eu era aluna de graduação no Instituto de Artes da UFRGS e consegui uma bolsa na Biblioteca Central. Quando sobrava um tempo, mexia nos exemplares das revistas do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O texto de Hanna Levy sobre os modelos coloniais sem dúvida me impressionou, me fez ver a História da Arte sob todo um outro ângulo, mas o que realmente me pegou foi A propósito de três teorias sobre o Barroco, em que ela critica abertamente Heinrich Wölfflin. Aquilo, quando li, me deixou intrigada. Quem era ela, vivendo no Brasil, para “ousar” criticar uma autoridade como Wölfflin? Aquilo exigia coragem, e me deu argumentos para repensar um autor que todos tínhamos de ler na graduação. Ao mesmo tempo Hanna Levy tinha uma irritação teórica elegante e muito produtiva, o que sinceramente me encantava. Uma das passagens deliciosas desse artigo, que exemplifica bem essa “irritação” (reparem nos termos “insustentável”, “aniquila” e “anula”, magistralmente escolhidos) é esta aqui:

Wolfflin aplica os conceitos estilísticos por ele estabelecidos para uma época histórica determinada a outras épocas inteiramente diferentes. Não falando da concepção abstrata insustentável da história que revela esse proceder, queremos apenas constatar que, dessa maneira, Wölfflin aniquila toda possibilidade de apreender as características particulares que distinguem uma época histórica de outra e que ele anula igualmente a possibilidade de reconhecer, dentro do caracter estilístico geral duma dada época, a existência da variedade mais ou menos rica de estilos particulares (individuais, locais, tradicionais, etc.) (LEVY, A propósito de três teorias sobre o Barroco, 1941, p. 265).

Quando Hanna Levy escreve sobre o público da arte moderna, aliás, costuma ser particularmente malvada. Em um artigo de 1940, Algumas reflexões sobre a competência em matéria de arte, Hanna Levy não apresenta uma visão muito abonadora do público que em geral vai a exposições:

Pode-se sustentar sem medo que a maioria do público que visita as exposições, percorre os museus, assiste aos concertos e às premières literárias, não possue a menor idéia do trabalho do artista. Ou, se eles têm disso alguma idéa, é grotescamente falsificada, e mesmo pueril. (LEVY, Algumas reflexões sobre a competência em matéria de arte, 1940, p. 38).

Essa visão sarcástica sobre o público se repete, agora com um exemplo pontual, em um artigo de jornal que publicou em 1945, Pior que Portinari! (reparem no “delicada”):

Foi na exposição de “Arte condenada pelo 3. Reich”, realizada sob o patrocínio da Casa do Estudante do Brasil, que ouvi de repente esta delicada apreciação: “Realmente, isto aqui é pior que Portinari”.
É sempre reconfortante, nos tempos atuais, ouvir alguém manifestar uma opinião absolutamente sincera. E Portinari pode ficar contente: por julgamento insuspeito foi assim proclamado superior a Liebermann, Slevogt, Kokoschka, Kollwitz e tantos outros artistas, mortos ou vivos, de fama internacional. É verdade que o desconhecido crítico escolheu a forma sutil da expressão negativa para lhe fazer o cumprimento. Mas pouco importa – o fato é incontestável. Se todos aqueles artistas, de cujas obras originais a mostra da Galeria Askanasy reúne exemplos, são “piores” que Portinari, este, logicamente, lhes deve ser superior. Mas mesmo assim duvido muito que ele tenha agradado mais a Hitler do que seus colegas condenados por este especialista em “pintura” (LEVY, Pior que Portinari, 1945, p. 2).

Além de criticar repetidamente o público de arte moderna, como acabamos de ver, sobrou também para os colegas, os historiadores da arte brasileiros. É o que aparece muito bem em um artigo que Hanna Levy publica em 1947, em espanhol, Problemas en torno a la Historia del Arte Brasileño:

Isso conduzia à tendência, que se pode de fato observar em trabalhos de muitos historiadores da arte brasileiros, de atribuir a priori um elevado valor artístico a qualquer obra com aspectos ingênuos, populares, primitivos [...]. E os que insistem em comparar tais obras rústicas e medíocres com as obras-primas da arte mundial prestam, a nosso ver, um péssimo serviço à arte brasileira” (LEVY, Problemas en torno a la Historia del Arte Brasileño, 1947, p. 140).

Procurei mostrar, por meio dessa pequena seleção de exemplos, que Hanna Levy, em suma, nos deixou uma lição maravilhosa: História da Arte também se escreve com sangue no olho. Considerando que essa mulher, ainda por cima, era marxista, só me resta terminar com uma conclusão bastante batida, mas que representa com exatidão o que eu penso: Hanna Levy, como não amá-la?

sábado, 27 de outubro de 2012

O fantástico Hoffmann

sábado, 27 de outubro de 2012



Granger: Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822)

A partir dos 14 anos comecei a registrar todas as minhas leituras em cadernos. Eu copiava as referências completas do livro, o sumário, os melhores trechos, identificados por página, e acrescentava ainda uma seção chamada “Minhas opiniões”, na qual comentava o que havia achado da leitura. Fazia isso por vários motivos: sempre considerei minha memória ruim, e esse método me pareceu um bom recurso mnemônico, que permitiria que associasse mais facilmente, como se diz, o nome à pessoa, que identificasse o autor e sua obra; eu gostava (e continuo gostando) de escrever; enfim, geralmente lia livros de biblioteca ou emprestados por amigos ou professores, pois não tinha dinheiro para comprá-los, e copiar meus trechos favoritos era, de certa forma, manter o melhor dos livros comigo. Consultei um desses cadernos hoje, o número 6 (sim, eles são numerados e têm sumário), atrás de minhas impressões de leitura a respeito das obras do Hoffmann. Quando fui bolsista de iniciação científica, por incentivo da professora Icleia Cattani eu e meus companheiros de bolsa lemos Das Unheimlich (1919), o clássico ensaio de Freud. Ali Hoffmann é apresentado, e usarei agora as palavras do próprio Freud, como o “inigualável mestre do inquietante na literatura”. Freud analisa o conto O homem de areia, e ainda o romance O elixir do diabo. Em O homem de areia percebe a manifestação do complexo infantil da castração no protagonista, Natanael, e em O elixir do diabo investiga o tema do duplo ou do sósia. Foi por causa de Freud que me tornei leitora de Hoffmann, sem dúvida (eu e outros tantos leitores). Eu li os Contos fantásticos de Hoffmann, edição da Imago, usando a lente de Freud, como se percebe nesse meu comentário extraído do caderno, de abril de 1999: “O melhor do livrinho é mesmo O Homem de Areia”. Dos outros dois contos da edição, na época, não gostei tanto: O Vaso de Ouro me pareceu por vezes “cansativo” (ainda que eu tenha admirado a honestidade do narrador ao apresentar também os defeitos das personagens femininas descritas como belas), e n’Os Autômatos me aborreci com o que então chamei de “chatíssima discussão sobre teorias musicais românticas”, empreendida por dois personagens do livro, Ludwig e Ferdinando (o que seria da vida sem amargos arrependimentos – hoje essa é uma das partes do conto que mais me interessa, tanto que em uma leitura bem mais recente uma das frases que destaquei foi essa: “...toda a minha alma, todo o meu espírito eram apenas ouvidos”).
Disse há pouco que li Hoffmann com a lente de Freud, o que significa que nele procurei, antes de mais nada, o estranho e perturbador. Uma das passagens perturbadoras do Homem de areia que copiei em meu caderno foi esta (tradução de Claudia Cavalcanti), uma cena em que Natanael fala e sua amada Olímpia, talvez uma autômata, escuta:

“Das profundezas de sua escrivaninha, Natanael tirava tudo o que já escrevera. Poemas, fantasias, visões, romances, histórias, tudo diariamente acrescido de toda sorte de sonetos, estâncias, cantigas, que ele lia para Olímpia durante horas a fio, incansavelmente. Nunca tivera uma ouvinte tão encantadora, pois não bordava nem tricotava, não olhava pela janela, não dava comida aos pássaros e não brincava com cãezinhos ou gatinhos graciosos. Não amassava papeizinhos ou se distraía com qualquer coisa nas mãos, nem precisava conter um bocejo ou um leve pigarro. Em suma, fitava o amado durante horas sem se mexer ou se ajeitar, e esse olhar tornava-se cada vez mais ardente e mais vivo. Apenas quando Natanael se levantava no fim e lhe beijava a mão e até mesmo a boca, ela dizia: ‘Ah, ah! Boa noite, meu querido’”.

Já professora comecei a trabalhar com Hoffmann na disciplina de História da Cultura, pedindo que os alunos lessem O pequeno Zacarias, em especial aquela parte em que os iluministas tentam acabar com o reino das fadas. Também vi algo sobre autômatos, ao trabalhar com Real spaces, de David Summers, na disciplina de Ciências da Arte: Espaço e Tempo, integrante do currículo do curso de Artes Visuais. Summers apresenta ali os autômatos de Pierre Jaquet-Droz (1768-1774), que tanto sucesso faziam na Europa (abaixo podemos ver um deles, o autômato-desenhista e o desenho que elaborava quando estava em funcionamento).


Um dos autômatos de Jaquet-Droz e seus desenhos  


Além disso, agora que posso comprar livros a Internet é uma realidade, há muito não faço cadernos, e minha pequena coleção de Hoffmanns cresce, sendo minha última aquisição a edição francesa de Le chat murr (1819-1821), que ainda não consegui terminar de ler. Essa tradução para o francês foi realizada por Albert Béguin (1901-1957) e publicada originalmente em 1943. No prefácio o tradutor logo chama a atenção para o que considera uma imagem tendenciosa de Hoffman criada na França por seus primeiros tradutores. Diz ele: “O verdadeiro Hoffmann é muito diferente do fantastiqueur no qual se inspiraram Petrus Borel, Gozlan, Balzac e tantos de nossos românticos. Fazemos hoje, entre sua obra, uma escolha diferente daquela feita pelo público de 1830 [...]” (tradução minha). Béguin se refere aqui às primeiras traduções de Hoffman que aparecem na França da primeira metade do século XIX. Ele propõe, no século XX, a tradução integral de um texto que no século XIX não havia chamado a atenção dos tradutores franceses do autor alemão.
Como vimos, esse prefácio é de 1943. Décadas e décadas antes, antes de Béguin e antes ainda de Freud, Jules Champfleury (1820-1889) também tentou desfazer, ou ao menoa relativizar, a imagem de Hoffmann como um fantastiqueur. O movimento romântico francês ainda não havia esfriado quando publicou, em 1856, os Contes posthumes d’Hoffmann, por ele traduzidos. O volume é dedicado a Courbet, então seu amigo, e o reconhecimento da influência de Hoffmann sobre sua carreira de escritor é apresentado já no prefácio, em tradução minha: “Terei sempre um vivo reconhecimento pelos homens que me ensinaram alguma coisa ou que me proporcionaram vivas sensações. De que serviria esconder as fontes em que bebemos com tanta delícia na juventude? Assim jamais irei negar a influência que sobre mim exerceram Diderot, Balzac e Hoffmann mais particularmente”.
Diderot estava sendo redescoberto pela crítica de arte francesa quando Champfleury era jovem. Balzac, por sua vez, foi ele mesmo leitor de Hoffmann. Champfleury oferece, como introdução aos contos menos conhecidos de Hoffmann que acabara de traduzir, um mapeamento de vários aspectos da vida e da obra do artista: o modo como suas obras foram traduzidas na França e como era visto por seus amigos; as notas que escreveu pouco antes da morte, seu testamento, suas habilidades como desenhista e músico, suas cartas aos amigos.
Ao discorrer sobre as traduções, Champfleury registra o ano de 1823 como marco da introdução de Hoffmann na França, mediante a tradução de Olivier Brusson, que, no entanto, não traz o nome do autor, do próprio Hoffmann. Os Contos de Hoffmann traduzidos por Loëve-Weymar são publicados em 1830, obtendo estrondoso sucesso junto à geração romântica. Champfleury explica que foi com essa edição que Hoffmann começou a ser visto, na França, como “fantástico”:

“Nessa mesma editora apareceram as obras completas de Hoffmann em vinte volumes in-12. O sr. Loëve-Weymar chama a primeira série de contos fantásticos, e desde essa época fantástico permaneceu e permanecerá, ainda por muito tempo, mesmo que jamais a palavra fantástico tenha sido empregada pelo contista alemão. É verdade que o maravilhoso desempenha um papel suficientemente grande na obra de Hoffmann para justificar o epíteto de fantástico; é verdade igualmente que os contos estavam na moda, e que cada autor torturava o cérebro para encontrar outra coisa além de contos marrons, contos rosas, contos de todas as cores [...]. Esses motivos justificam um pouco o fato do Sr. Loëve-Weymar ter dado o título de fantástico a obras onde a realidade se combina tão naturalmente à pintura do estado particular de uma natureza atormentada” (tradução minha).

Sem dúvida Champfleury não rejeita completamente a denominação de “fantástico” aplicada a Hoffmann, pelo contrário, em alguns pontos a justifica. Por outro lado, contudo, ao falar da “natureza atormentada” que também percebe na obra de Hoffmann, abre caminho para que Freud, tempos depois, nela procure não o fantástico, mas, como vimos, o estranho.
Champfleury continua sua narrativa: segundo ele, Hoffmann, enquanto ainda vivia, era bem menos admirado na Alemanha do que Schiller, muito mais engajado politicamente, defensor do povo e crítico da elite. Na França sua recepção é consideravelmente mais positiva, pois para os franceses o contista não precisava ser “republicano ou monarquista, cético ou crente, materialista ou espiritualista”, bastava que, nas palavras de Champfleury, “fosse romântico, isto é, que encontrasse formas novas”.
São divertidas as passagens em que Champfleury não esconde sua perplexidade diante das escolhas artísticas de Hoffmann, que também era desenhista e compositor, passagens como esta, em que acusa Hoffmann de haver conferido demasiado valor a Salvator Rosa (1615-1673), pintor cuja popularidade iria declinar ao longo do século XIX: “Hoffmann não é culpado de haver redourado a coroa de estuque de Salvator Rosa, um pintor melodramático muito ruim cujo grande talento consiste em ter vivido muito entre os bandidos?” 


Salvator Rosa: Filosofia, 1640 (autorretrato). Tradução da inscrição latina:  
"Fique em silêncio, a não ser que o que você tenha a dizer seja mais importante do que o silêncio"


Hoffmann havia publicado em 1819 um conto chamado Signor Formica, em que Rosa era o protagonista. O narrador do conto defende a imagem de Salvator Rosa, apresentando-o como um homem dotado com “a exuberância da vida e orgulhosa energia”, de caráter nobre e leal, um homem, como o próprio Hoffmann, multifacetado: “Dificilmente preciso dizer que Salvator era não menos renomado como poeta e músico do que como pintor. Seu gênio foi revelado em raios lançados em muitas direções” (tradução minha). Talvez Freud pudesse ter encontrado aqui ainda mais material para sua teoria do duplo...
Hoffmann, bem se vê, tinha gosto artístico bastante diverso daquele de Champfleury. Em uma carta ao amigo Hitzig, escrita em Berlim, em 15 de outubro de 1798, e citada por Champfleury, Hoffmann se mostra extasiado com as obras de arte italiana que estava podendo apreciar:

“...mas hoje eu sou quase mimado pela galeria de Dresden, onde vi as obras-primas de todas as escolas. Enchi-me de entusiasmo quando me dirigi à Sala dos Italianos; imagine uma sala que é certamente uma vez mais extensa do que a casa de teu tio, em Koenigsberg, cujas imensas paredes são cobertas de alto a baixo pelos quadros de Rafael, de Correggio, de Ticiano, de Battoni, etc.; vendo tudo isso, estou necessariamente convencido de que nada sei. Eu ali lancei as cores, e desenho os estudos como um principiante: esta é minha resolução. É apenas na pintura que acredito ter feito grande progresso; para te provar, certamente te enviarei alguma coisa” (tradução minha).

Apesar de pretender continuar progredindo na pintura, são os desenhos de Hoffmann que terão vida mais longa. Champfleury reproduz em seu livro um dos autorretratos feitos pelo escritor, particularmente bem-humorado. Em respeito à lei das compensações universais, uma vez que na obra de Hoffmann já se leu tanto o fantástico como o estranho, apesar de o próprio autor não haver apoiado esses conceitos, concluo então meu pequeno texto com o mencionado autorretrato e as divertidas legendas acrescentadas pelo autor. Deixemos que ele, ao ver a si mesmo, nos mostre seus próprios conceitos.


"A – O nariz
B – A fronte
C – Os olhos
D – Bife. Vinho do Porto
E – O traço irônico
F – Queixo alongado, depois de comédia mal-sucedida
G – Os cabelos cheios de visões demoníacas
H – A gravata
I – O colete de costume
K – Manga de redingote com pregas arbitrárias
L – Favoritos, ou pensamentos noturnos de um sonâmbulo
M – O músculo de Mefistófeles, ou paixão por assassinato e vingança
N – Olho
O – Orelha, ou a carta de aprendizagem de Kreisler
P – Etc."


sábado, 20 de outubro de 2012

De Lavinia Fontana a Rodolphe Töpffer: notas sobre a invenção da infância na História da Arte

sábado, 20 de outubro de 2012


Lavinia Fontana, Autorretrato, 1577

Lendo imagem: uma história de amor e ódio, de Alberto Manguel, é um dos tantos livros cujos ensaios aproveitei amplamente em minhas aulas de história da arte. Dentre todos eles, meu preferido é Lavinia Fontana: a imagem como compreensão, ao qual recorria quando precisava mostrar as mulheres artistas italianas do século XVI, de Properzia de Rossi (c. 1490–1530), a única mulher biografada por Vasari nas Vite, a Marietta Robusti (1560? – 1590), a brilhante filha de Tintoretto. Nesse capítulo Manguel argumenta que Lavinia Fontana (1552-1614), ela mesma uma exceção, por ser pintora em um mundo de pintores, retratou com sensibilidade a pequena Tognina Gonsalvus (1580-?), que, como o pai, sofria de hypertrichosis universalis congenita, ou seja, apresentava o rosto todo coberto de pelos. A menina segura, em uma das mãos, uma folha de papel em que se lê, conforme a tradução que tomo de empréstimo ao livro de Manguel,

Das ilhas Canárias fui trazida
Para o Soberano Henrique II [?] da França
Don Pietro, o selvagem.
De lá se estabeleceu na corte
Do duque de Parma, como eu, [...]
Antonietta, e agora estou
No lar da Signora Donna
Isabella Pallavicina, marquesa de Soragna [...].



Lavinia Fontana: Retrato de Tognina Gonsalvus, c. 1583

Se em outros retratos Tognina aparece como uma pequena loba, como um animal curioso, Lavinia Fontana nos mostra a menina, a criança de olhos expressivos e modos delicados. Evoco esse exemplo porque estou pensando hoje na figura da criança na história da arte, em como ela se constrói, em quando começa a corresponder à imagem que temos agora da infância, um período cheio de possibilidades, marcado pela espontaneidade, pela liberdade de movimentos, pela alegria. A pequena Tognina aparece estática no quadro de Lavinia, com a pose estruturada pelo pesado vestido. A infanta espanhola (Infanta Margarida Teresa em um vestido azul, de 1659), retratada por Velázquez, que tive a oportunidade de ver esse ano, às pressas, na Gemäldegalerie do Kunsthistorisches Museum, em Viena, reforça a ideia de criança como pequeno adulto, contida pela postura e pelo traje, que tem como zona restrita de liberdade no retrato, por opção do pintor, apenas o olhar, algo melancólico. Lembro que Philippe Ariès explorou profusamente a vida infantil desses pequenos adultos nobres em História social da criança e da família, que li já faz muitos anos.


Velázquez: Infanta Margarida Teresa em um vestido azul (1659)

Crianças em poses menos rígidas, no entanto, começam a ser visíveis em pinturas também dos séculos XVI e XVII (excluindo a multidão de anjinhos, por favor). Desconfio que queira dizer algo o fato de me ocorrer agora, para reforçar esse argumento, apenas um retrato de menino, uma vez que até aqui me referi unicamente a poses de meninas. Eu já estava há algumas horas no Louvre, já havia passado pela Vitória da Samotrácia (que os turistas fotografam de frente, para obter o mesmo ângulo das imagens que aparecem nos livros) e pela superpovoada Monalisa (a moça que a vigiava estava conversando com um colega, indiferentes ambos à sublimidade que os turistas à sua volta pareciam conferir à obra). Eu já havia percorrido quase toda a Aile Denon, já havia passado por muitas, muitas salas cobertas por pinturas até o teto, quando, no fundo de uma delas, bem ao final de meu percurso, reconheço o menino retratado em Le Pied-bot (1642), de Jusepe de Ribera (1591-1652). O menino estava sorrindo para mim, e tinha um ar tão vivaz que me fez sorrir também. Como Tognina, ele segura, em uma das mãos, uma folha de papel com a frase, em latim, “Me dê uma esmola, pelo amor de Deus”. Esse menino de pés tortos, mendigo e anão, de acordo com Jonathan Brown em Pintura na Espanha 1500-1700, foi pintado para a coleção de Anna Carafa, princesa de Stigliano (informação que o site do Louvre corrige, pois se sabe agora que a obra se destinava a um mercador flamengo, dado que no meu pequeno Guide do Louvre simplesmente não aparece). Para Brown se trata de um “emblema realista do valor de se realizar obras de caridade como um meio de assegurar a salvação”. Para mim confesso que o que menos chamou a atenção no menino foram os pés, ou a pobreza, ou a pequena estatura.


Jusepe de Ribera: Le Pied-bot (1642)



Há um outro livro sobre a história da infância do qual gosto muito, Children and Childhood in western Society since 1500, de Hugh Cunningham, que dá destaque ao contexto associado ao estabelecimento da infância como “era da inocência” no século XVIII. Pude ver os manuscritos do Emílio (1762), de Rousseau (1712-1778), expostos no Panthéon esse ano, em Paris (Jean-Jacques Rousseau et les Arts) – a caligrafia miúda, uniforme, que iria abalar o modo como as crianças eram até então vistas e educadas. Enquanto Rousseau escrevia na França, a mortalidade de crianças pequenas diminuía sensivelmente na Inglaterra. Um pouco antes dele, já contando com o incipiente reinado infantil, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta sua Modesta proposta (1729), que choca justamente por propor a irônica canabalização da infância irlandesa pela Inglaterra. Na segunda metade do século XVIII lá também os livros infantis e as lojas de brinquedos abudam (não posso esquecer da adaptação infantil que foi feita, na época, do romance Charles Grandson, de Samuel Richardson [1689-1761], protagonizada por um pequeno Grandson que deseja ardentemente aprender a ser virtuoso), e crianças sonhadoras, delicadas, graciosas são retratadas com muita habilidade por Sir Joshua Reynolds (1723-1792), um dos fundadores da Royal Academy. Eu costumava mostrar em aula alguns desses retratos, como a encantadora Collina.



Joshua Reynolds: Collina (1779)

Uma vez estabelecido o novo reino da infância, o reino de onde mais tarde Peter Pan, como sabemos, nunca haverá de querer sair, o Romantismo abrirá brechas para que também a produção visual das crianças, seus rabiscos, desenhos e garatujas, passe a ser considerada com interesse. A porta pela qual o desenho infantil ingressa sorrateiramente na História da Arte é, mais uma vez, a caricatura. Costumo me deter em uma caricatura feita em 1792, por Gillray, caricaturista inglês implacável. O título é autoexplicativo, em uma tradução livre algo como “Uma pequena ceia à francesa”. 



A partir de água-forte de Gillray: Un petit souper à la Parisienne (1792)

Olhemos bem os elementos da imagem: não me interessam aqui nem as criancinhas, que devoram ou que são devoradas, nem os adultos, que se deliciam à mesa com uma cabeça humana. Interessam-se, isso sim, as garatujas desenhadas na parede, ao fundo, que simulam as figuras humanas elaboradas pelas crianças. Quase meio século seria necessário para que outro caricaturista, o suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846), passasse a elogiar a espontaneidade e a qualidade artística dos desenhos infantis, que corresponderiam melhor ao ideário romântico do que muito da arte acadêmica exibida nos Salões. 

Rodolphe Töpffer: Autorretrato (1840)

O trecho a seguir do seu Réflexions et menus propos d'un peintre genevois ou essai sur le beau dans les arts (1858, edição póstuma), que traduzi para utilizar em aula, apresenta uma boa síntese de seus principais argumentos:

 “De onde podemos ver por que o aprendiz de pintor é menos artista do que o menino que ainda não é aprendiz. [...] se pegarmos um desses meninos de colégio que rabisca às margens de seus cadernos homenzinhos já muito vivos e expressivos, e o obrigarmos a ir à escola de desenho para aperfeiçoar seu talento, logo, à medida em que faça progressos na arte do desenho, os novos homenzinhos que irá traçar com cuidado em uma folha branca de papel terão perdido, comparativamente àqueles que rabiscava ao acaso às margens de seus cadernos, a expressão, a vida e essa vivacidade de movimento ou de intenção que destacamos, ao mesmo tempo em que terão se tornado infinitamente superiores em verdade e em fidelidade de imitação”.

A imagem das crianças, e as características de seu desenho irão se tornar, assim, onipresentes na arte a partir do século XIX. Gillet Burgess (1866-1951), no impagável Os homens selvagens em Paris (1910), primeiro texto sobre os pintores fauvistas e cubistas franceses a ser divulgado nos Estados Unidos, e que traduzi para o português em 2011 (é possível conferi-lo em http://thor.sead.ufrgs.br/objetos/cubismo/burgess.php), ainda que de modo jocoso, detecta o interesse da vanguarda pela cultura visual infantil: 

“Se você pode imaginar o que uma menininha de oito anos, particularmente sanguinária, meio enlouquecida pelo gim, tem a ver com uma parede caiada, se deixada sozinha com uma caixa de lápis de cor, então você irá chegar perto de conceber com o que a maioria dessas obras se parecia”. 

Matisse usa cores vivas como as dos lápis de cor, Calder cria os seus circos animados e os seus móbiles, ver com olhos “novos” passa a ser a meta de um sem-número de artistas, e o resto, como também sabemos, é história.