quinta-feira, 1 de julho de 2010

Os Museus Imaginários, meus e de Malraux

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Lembro da primeira vez em que tive nas mãos o livro Le Musée Imaginaire, de André Malraux (1901-1976). Era bolsista na Biblioteca Central da UFRGS e aluna do curso de Artes Visuais. Sempre que podia partia para as estantes, para explorar aquela maravilhosa coleção Eischenberg. Acho que era mesmo uma edição francesa, de capa clara, volume bem grosso e todo ilustrado em p&b. Não me recordo se na época entendi muita coisa, eu debutava no francês, mas o livro, de todo modo, me impressionou. Há poucos dias comprei uma edição para mim, bem menos glamourosa, uma edição de bolso da Gallimard. Admito que nunca fui fã de releituras, eu vivia fazendo contas de tudo o que havia para ler e de quanto ainda me restava de vida. Certamente não haveria tempo para tudo, como, então, ainda me dar ao luxo de reler? Voltemos ao volume: as imagens em p&b estão ali, em páginas bem menores, o texto certamente é o mesmo, mas eu... como mudei. Agora, além de me permitir a releitura, reconheço boa parte das obras reproduzidas nas imagens; consigo perceber em que direção vai a preferência do autor quando escolhe e quando analisa, e, o mais surpreendente, a própria noção de museu imaginário não cai mais em território completamente virgem, como da primeira vez.

Malraux inicia o livro definindo, digamos assim, o estatuto pré-museal das obras de arte: “Até o século XIX, todas as obras de arte foram a imagem de algo que existia ou que não existia, antes de serem obras de arte”. Essa afirmação não fica tão mais luminosa depois que passamos os olhos pelo monumental texto de Hans Belting, Likeness and Presence: a history of the Image before the Era of Art (1990)? Belting estuda os ícones religiosos em seus contextos simbólicos originais, todos perdidos, conforme Malraux, quando a obra adentra o museu. Também associei essa última constatação de Malraux a alguns pungentes argumentos do texto de Philip Fisher, Art and the Future’s Past (1991), inserido em uma das poucas boas antologias com textos sobre museu disponíveis hoje no mercado, Museum Studies: an anthology of contexts, organizado por Bettina Messias Carbonell:

“A supressão das imagens teve lugar em três estágios. Primeiro, no processo já descrito, imagens do interior da cultura, despidas de seu contexto (quando o crucifixo é tirado da catedral, a catedral é tirada do crucifixo), foram silenciadas. Silenciá-las significa, em parte, não mais atender aos imperativos que irradiavam daquele conteúdo. [...]. Os objetos compelem a comportamentos [...]. Um crucifixo significa, entre outras coisas, ‘Genuflexione!’. Tais objetos são silenciados como, assim como ferramentas que não são mais usadas, podemos apenas permanecer de forma neutra em sua presença” (tradução minha).

Um pouco adiante Malraux indica um fenômeno que ocorreu concomitantemente à musealização: o incremento da reprodutibilidade técnica, que possibilitou a reprodução de uma vasta gama de obras de arte. Para Malraux, “Um Museu Imaginário se abriu, que vai levar ao extremo a incompleta confrontação imposta pelos verdadeiros museus”. Dito de outro modo, o Museu Imaginário corresponde à virtualização da ideia de museu possibilitada primeiro pela gravura e depois pela fotografia – acho que o próprio museu, em sua concepção essencial, muito deve à lógica “colecionadora” do objeto livro, mas essa tese merece um desenvolvimento mais aprofundado no futuro. Muitíssimas pessoas conhecem reproduções de obras de arte, e um número muito menor delas pôde conhecer as obras in loco. Malraux rapidamente indica algumas consequências desse inusitado e fértil par museu/reprodução de imagem: “Nossa relação com a arte, há mais de um século, não cessou de se intelectualizar. O museu impõe um questionamento sobre cada uma das expressões do mundo que ele reúne, uma interrogação sobre o que as reúne. [...] Mas nossos conhecimentos são mais extensos do que nossos museus [...]” (tradução minha).

O visitante pode ter um “museu imaginário interior” maior do que o museu que visita porque tem acesso quase ilimitado a reproduções de obras de arte – e a própria definição de obra de arte se ampliou muito na modernidade, de modo a abarcar a cultura material de vários povos não ocidentais e as manifestações culturais ocidentais consideradas como não eruditas. Eu tenho um vasto Museu Imaginário, e são tantas as peças de minha coleção que ainda não pude conferir todas com os originais... Que isso não seja entendido como uma reclamação, no entanto. O Museu Imaginário, intelectual, como quer Malraux, tem uma lógica própria e conta já com uma multidão de seguidores. Não sei como será quando eu observar o original, mas o Goya que me assustou quando era criança era justamente esse que reproduzo aqui ao lado. Um pai devorando um filho, que má ideia para uma criança pequena.

Quando Malraux escreveu seu livro, em 1947, essas ideias sobre museu e reprodutibilidade estavam caindo de maduras, o que não tira em nada o mérito de seus argumentos iniciais. Não deixa de ser engraçado, de todo modo, ler um autor materialista como Nicolai Chernichevsky (1828-1889), que escreve quase cem anos antes As relações estéticas da arte com a realidade (1855), quando entende a obra de arte apenas como recurso mnemônico, necessariamente relacionado à representação da realidade:

“Esse é o único propósito e objetivo de muitas (a maioria) das obras de arte: oferecer às pessoas que não puderam desfrutar da beleza na realidade a oportunidade de entrarem em contato com ela ao menos em algum grau; servir como lembrete, despertar e reavivar memórias da beleza da realidade nas mentes daquelas pessoas que a conhecem pela experiência e pelo amor em recordá-la...” (tradução minha).
Quando ele poderia imaginar que haveria ainda a obra que serviria para lembrar de outra obra (a reprodução da obra do museu, por exemplo)? Ou ainda, de modo mais ousado, que a própria obra-lembrete, a própria reprodução, poderia ser a principal jóia incrustada em nossos Museus Imaginários?