terça-feira, 3 de agosto de 2010

Vamos Marmontelizar?

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Minha filha, que tem cinco anos, esses dias criou uma tipologia. Ela é a última a terminar de comer a merenda em sua escolinha, e por isso muitas vezes fica sozinha na sala, porque os colegas comem rápido e vão brincar no pátio. Já conhecedora do conto sobre a disputa entre a tartaruga e o coelho, ela logo concluiu: “eu sou uma tartaruga, e eles são coelhinhos”. Meu texto anterior foi sobre Daunou, e seguindo essa lógica, ele seria, seguramente, uma tartaruga. Variemos um pouco, então. Cacemos coelhos. E, com essa meta em vista, faço o convite: vamos marmontelizar?

Marmontel

Mas para que isso seja possível, é preciso, antes de mais nada, conhecer Marmontel. Nascido no interior da França, em 1723, Jean-François Marmontel foi o filho de alfaiate que, por sorte, teve o talento para as letras e os estudos descoberto por jesuítas. Jovem ainda decide seguir a carreira literária, e naquela época uma boa maneira de fazer isso era participar de um concurso. Foi assim que ele se inscreveu em uma das edições dos Jeux-Floraux com a Ode à invenção da pólvora. Vencer, não venceu, mas escreveu a Voltaire para reclamar do que considerou uma aviltante injustiça. Mandou sua obra, inclusive. Os tempos eram outros e Voltaire, muito cordato, incentivou o jovem aspirante a escritor. Não contava com o fato de que Marmontel se mudaria para Paris, a fim de tentar viver da pena. Diante do irremediável, Voltaire fez como Picasso diante da insistência de Tatlin (é, Tatlin tentou se hospedar no ateliê de Picasso em Paris, sem nenhum sucesso, evidentemente), e manteve uma distância honrosa do rapaz.

Como eu dizia no começo, Marmontel era um coelho. Em Paris, depois dos primeiros tempos de muito sufoco, escrevia com rapidez, apaixonava-se com rapidez e se envolvia em algumas confusões (como quando roubou a amante do marechal Maurice de Saxe, o bisavô de George Sand, que ficou visivelmente insatisfeito com a afronta). Fez sucesso no teatro com Denys Le Tiran, foi protegido por Madame de Pompadour, e no auge da glória assumiu a direção do Mercure de France, sendo responsável por aproximar a linha editorial do periódico ao pensamento iluminista.

Marmontel era também veloz como o coelho quando se tratava de abraçar causas potencialmente polêmicas: lutou contra a intolerância religiosa com o seu Belisaire (1767), sobre o guerreiro bizantino perseguido e torturado a mando de Justiniano (clara referência a Luís XV), e na novela Les incas (1777) condena a perseguição dos índios americanos pelos europeus.

Já diz o ditado que o apressado come cru, e talvez seja o reflexo dessa pressa intelectual e existencial que, de um certo modo, um dos maiores críticos literários franceses percebeu na obra de Marmontel. Sainte-Beuve
(1804-1869), aquele que não foi assim tão amado por Proust (conclusão simples que se pode extrair do volume sutilmente intitulado Contre Sainte-Beuve) e que tratou de recuperar aos olhos de seus contemporâneos o legado dos intelectuais do século XVIII, seguindo uma voga mais ampla que, entre os irmãos Goncourt, por exemplo, justificará a revalorização dos pintores rococós franceses, foi o autor dessa cortante ironia com relação ao modo de escrever característico de Marmontel:

“O hábito de ver as coisas de um modo um pouco diferente do que são, de pintá-las com um certo colorido benevolente e amolecido que não é sua cor justa [...], essa disposição do autor a Marmontelizar a natureza” (tradução minha).

Talvez para Sainte-Beuve, que vivia em uma época em que as exigências de acuidade histórica só faziam aumentar, “marmontelizar” fatos fosse mesmo um grande pecado. Mas hoje o problema se atenua, porque o Marmontel historiador foi esquecido (ele escreveu um verbete sobre História, à semelhança daqueles publicados na Encyclopédie, na época em que era Historiographe des Bâtiments) e, com sorte, lidamos com o Marmontel ficcionista ou memorialista.

Retomemos a tipologia do coelho e da tartaruga. Enfatizo que Marmontel lia Ovídio, e ao menos suponho que não desconhecesse a possibilidade da ocorrência de metamorfoses. A ideia de metamorfose é aliás, nesse caso, bastante fácil. Todas as tipologias são limitadas e, diante da impossibilidade de descrever as inúmeras facetas e mutações da personalidade de uma pessoa ao longo da vida, insisto na ideia de que a metamorfose tipológica em Marmontel é apenas e tão somente uma metáfora. Marmontel, sob a Revolução Francesa, quando eleito para o conselho dos anciãos, em Eure, ao constatar que o ateísmo estava sendo defendido em detrimento do catolicismo, defendeu prudentemente os católicos, uma posição compatível com uma tartaruga.

No entanto, não nos precipitemos: Marmontel não era um coelho que ao final da vida virou tartaruga. Percebam bem a sutil diferença: ele era um coelho em liberdade, e, sob restrição, aí sim, uma tartaruga.