Não sei quando exatamente “conheci” Josephine Baker (1906-1975). Sei que faz mais de oito anos, mas não sei se faz mais de dez. Fiquei encantada com sua trajetória, e ao longo dos anos acumulei leituras sobre ela, do mesmo modo que faço com a longa lista de mortos que admiro. Josephine, uma dançarina afro-americana nascida em Saint Louis, animou os soldados aliados durante a Segunda Guerra Mundial, e depois se tornou mãe adotiva de crianças das mais variadas origens e culturas, na tentativa de empunhar, através da maternidade, uma bandeira contra o racismo. A realidade se mostrou mais complicada e, no final de sua vida, não faltaram problemas financeiros, problemas com os filhos, problemas com a casa onde viviam.
Mas não é essa a fase da vida de Josephine Baker que me interessa agora comentar aqui. Quero encontrar aquela Josephine pela qual as multidões européias ansiavam na década de 1920, a jovem e empolgante Josephine que levou milhares de mulheres a emular seu estilo (os cabelos curtíssimos, os brincos longos), entre elas Tarsila do Amaral.

Josephine Baker por Paul Colin
Josephine Baker tomou Paris de assalto em 1925. Tinha apenas 19 anos e era a grande estrela do espetáculo La Revue Nègre, que estreiou em 2 de outubro, no Théâtre des Champs Elysées. Josephine dançava no palco seminua. Com os seios às vezes à mostra, consagrou-se com o “selvagem” saiote de bananas que muitas vezes vestiu. Ela era o mais novo rosto do primitivismo, e Paris, como nos mostram Karen Dalton e Henry L. Gates Jr. em Josephine Baker and Paul Colin: African American Dance seen through Parisian eyes (1998), Paris estava preparada.
O interesse pelo primitivismo atravessa o romantismo francês no século XIX: ele está lá, palpável, na geração de George Sand e Balzac, e na de Baudelaire e Courbet; ele é alimentado pelas Exposições Universais de 1855, 1867, 1878 (esta última com a criação do Trocadero, que haveria de se tornar depois um museu de antropologia); ele alimenta os sucessivos movimentos modernos nas artes visuais (de Gauguin a Picasso, entusiasmado pela art nègre em 1906), na literatura e no teatro (que dizer de Ubu Roi, de Alfred Jarry?).
O primitivismo alimenta também a música: entre 1906 e 1917 Debussy, Stravinsky e Satie compõem peças musicais baseadas no jazz e no ragtime, estilos criados pelos afro-americanos do sul dos Estados Unidos e adotados pelos franceses a partir da Exposição Universal de 1900.
No final da Primeira Guerra Mundial os franceses contabilizaram mais de 1.400.000 homens mortos, e o jazz, espalhado pelo país através das bandas do exército americano, compostas muitas vezes por muitos grandes jazzistas sulistas, segregados, surge como um convite ao prazer de viver e à adoção do antigo verso de Horácio, “carpe diem”.
Baker é recebida em Paris, nesse contexto dos “anos loucos”, de braços abertos. O crítico de dança francês André Levison, que assistiu a suas primeiras exibições em Paris, assim a descreve, em uma das críticas que publica nos jornais da época:
“Algumas das poses da Senhorita Baker, costas arqueadas, quadris projetados, braços entrelaçados e erguidos em um símbolo fálico têm a envolvente força dos melhores exemplos da escultura negra. O senso plástico de uma raça de escultores ganha vida e o frenesi do Eros africano alcança a platéia. Não é mais uma grotesca dançarina que se apresenta diante deles, mas a Vênus negra que assombrava Baudelaire” (tradução minha).
Essa associação imediata feita pelo crítico francês entre Josephine Baker e Jeanne Duval, a célebre atriz, amante de Baudelaire, é tentadora e talvez, até, inescapável. Mas teriam essas duas Vênus negras, uma norte-americana e a outra da Ilha Maurício ou das Antilhas (Haiti ou São Domingo, não se sabe ao certo) algo mais em comum além do fato de serem ambas vedetes, negras e, por diferentes razões, famosas? Senão vejamos – e a partir de agora conto com a ajuda de Teresa Dolan e seu Skirting the issue: Manet’s portrait of Baudelaire’s mistress, reclining (1997) e Jacques Crépet, Charles Baudelaire (1907).
Jeanne Duval desenhada por Baudelaire

“Tenho um pacote prodigioso de cartas dela a Charles [...]. Em todas, vejo pedidos incessantes de dinheiro. Jamais uma palavra de carinho, nem mesmo agradecimentos. Sempre é dinheiro que ela precisa, e imediatamente. Vejo uma, a última, datada de abril de 1866, quando meu pobre filho estava em seu leito de dor e eu estava prestes a partir para encontrá-lo. E nessa carta, como nas precedentes, ela o atormentava, o perseguia devido ao dinheiro que ele deveria lhe enviar imediatamente" (tradução minha).
Jeanne Duval desenhada por Baudelaire

“Vestida de criada de quarto [...], uma mulher grande, grande demais, que supera bem em uma cabeça as proporções ordinárias [...] já é algo para surpreender. Isso não é nada: essa criada de extradimensão é uma negra, uma negra de verdade, uma mulata incontestável [...]. A criatura além disso é bela, de uma beleza especial, que não se importa com Fídias, um prato especial para os refinados” (tradução minha).