sábado, 31 de julho de 2010

Pierre Daunou, um homem bom

sábado, 31 de julho de 2010

Identificar um “homem bom” para mim se tornou um problema teórico da literatura quando observei, em uma aula do mestrado em letras na PUCRS, que vários colegas achavam extremamente aborrecido o personagem Aliosha, o protagonista criado por Dostoievski para Os irmãos Karamazov. “Aborrecido” foi um eufemismo cometido por mim. Uma colega disse, com todas as letras, que para ela Aliosha era um chato. Para mim Aliosha era muito interessante, e a intenção de Dostoiévski era a de que a maioria dos leitores reagisse como eu diante dele. O problema é que eu era minoria naquele dia, na sala de aula, e os leitores como eu também não foram tantos assim na época de Dostoiévski. Passando por essa situação me dei conta do quanto se torna difícil construir uma personagem “boa” verossímil na literatura do século XIX. O assunto me intrigou tanto que se transformou em minha tese de doutorado, Os Idiotas: a representação literária da virtude na era da incerteza (2008).


Em função da tese passei a procurar personagens ficcionais boas por toda a parte: Charles Grandison, de Samuel Richardson, atraiu-me como um imã, e Pamela, do mesmo autor, também. Solidarizei-me com a tão pouco apreciada personagem de Jane Austen, Fanny Price, a inflexivelmente virtuosa heroína de Mansfield Park. De Dostoievski selecionei o romance O Idiota (quem se equipara ao Príncipe Mishkin no papel do homem bom que não é mais publicamente compreendido ou admirado?). Até É difícil encontrar um homem bom, o perturbador conto de Flannery O’Connor, eu comecei a encarar com outros olhos.


O tempo passou, minha coleção de homens bons cresceu na medida em que escrevia o texto, o último ponto foi colocado e a tese, enfim, foi defendida. Por um tempo deixei o assunto de lado, várias outras pesquisas apareceram no meu caminho, não haveria mais tempo, mesmo que eu quisesse, para procurar homens bons no mundo da ficção.
Uma das tarefas que tinha pela frente, no verão de 2009, era a de redigir uma pequena biografia do historiador francês Pierre Daunou (1761-1840), biografia que agora faz parte da obra Lições de História: o caminho da ciência no longo século XIX, organizada por Jurandir Malerba (co-edição da Fundação Getúlio Vargas e da EDIPUCRS). O levantamento de fontes foi exaustivo, até porque Daunou deixou de despertar largo interesse logo após sua morte. Depois de localizar uma série de documentos de época, tive de montar o quebra-cabeça de sua biografia.

Pierre Daunou

Descendente de huguenotes que se converteram ao catolicismo para evitar a perseguição religiosa, Daunou ingressou para a Ordem dos Oratorianos (os Oratoriens), fundada por Felipe Néri em plena Contra-Reforma, e que mais tarde seria simpática às ideias de Rousseau. Isso ajuda a compreender melhor porque os Oratoriens receberam de braços abertos a Revolução Francesa. Até aqui nada me chamou demasiado a atenção em sua trajetória. Como a dele, há a de muitos outros.

Mas eis que a Revolução Francesa se instala. Muitas pessoas diminuem diante de adversidades e situações limite, algumas outras crescem. Daunou, e ao constatar isso comecei a me interessar mais e mais por ele, pertencia a esse último grupo. No momento de decidir o destino de Luís XVI, votou contra sua execução, proferindo um discurso marcante. Tal posicionamento lhe custou quase um ano da prisão, e por pouco escapou da morte. Guilhotinado Robespierre em 1794, Daunou é solto,e pouco depois auxiliou Sophie, a viúva do Marquês de Condorcet, na publicação de sua última obra, o hoje famoso Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano.


Daunou, que se batia pela república e pelas reformas educacionais, teve importante atuação política antes do 18 Brumário, o golpe de Napoleão. O próprio Napoleão tentou cooptá-lo. E aí vemos a tomada de decisões difíceis: Daunou se recusou a ser Conselheiro de Estado no novo regime, e foi rebaixado à posição de garde des archives, função que, diga-se de passagem, desempenhou diligentemente.

Os ventos políticos mudaram ainda algumas vezes (a Restauração, e depois a República de Julho) e Daunou passou a gozar, novamente, de estima pública. Minha pesquisa prosseguia: li depoimentos sobre ele, as impressões de Sainte-Beuve e de outros contemporâneos, os elogios póstumos, li seus próprios textos, e, sobretudo, vi suas ações, nada silenciosas aos bons entendedores. O espaço era curto e eu já havia chegado a 1840, ano em que o velho Girondino falece. Daunou manteve-se, até o fim, fiel a seus princípios, nada interessado em fama mundana ou recompensas materiais. Ele era a encarnação da virtude da prudência, tão louvada por Aristóteles na Ética a Nicômaco. No momento em que conclui essa pequena biografia, percebi que havia encontrado, por acidente, algo que na história é tão raro quanto na ficção: um homem bom.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Como não rir dos Pré-Rafaelitas

sexta-feira, 30 de julho de 2010

An Education (2009), cena do leilão

Há alguns dias atrás assisti a um filme britânico muito comentado, An Education, dirigido por Lone Scherfig. O roteiro de Nick Hornby (autor do romance que rendeu o memorável filme Alta Fidelidade) baseia-se no relato autobiográfico da jornalista britânica Lynn Barber. O filme é realmente impactante, mas a cena que mais me deu o que pensar talvez não seja a mais óbvia. A jovem Jenny Miller, de 16 anos, que se prepara para estudar em Oxford, acaba de conhecer um homem bem mais velho, David Goldman, que lhe abre as portas de um “mundo encantado”: a fervilhante vida social londrina do início dos anos 60. Eles vão juntos a um leilão de arte, e David pede a Jenny que dê os lances a fim de adquirirem uma tela a óleo de Edward Burne Jones (1833-1898), Tree of Forgiveness, que hoje se encontra, aliás, no Liverpool Museum. Jenny, radiante, arremata a tela, e David comenta que poucos anos antes seria possível comprar um pré-rafaelita por uma ninharia, mas que agora eles estavam cada vez mais valorizados.

Há duas informações importantes na cena do leilão, a primeira intrínseca: a tela de Burne Jones tematiza a lenda em torno de Demophon e Phyllis (Burne Jones, pré-rafaelita tardio, fez também uma obra justamente intitulada Demophon and Phyllis, guache sobre papel). Demophon, rei de Atenas e filho de Teseu, se casa com Phyllis, filha do rei da Trácia, Licurgo. No entanto, após certo tempo abandona a esposa, e Phyllis fica inconsolável. Como deixar de associar o destino da pobre Phyllis com o daquele da inexperiente Jenny, também abandonada por David quando descobre que ele era casado?


Tree of forgiveness, 1882

A segunda informação é extrínseca: nos anos 60 ocorre a valorização dos pré-rafaelitas, mas por que não seriam eles tão valorizados antes? Me interessa não a acuidade histórica sobre as oscilações dos valores de mercado da arte inglesa, mas o paralelo metafórico em torno da tumultuada carreira dos pré-rafaelitas.

A Pre-Raphaelite Brotherhood surge em 1848, propondo uma arte atenta às minúcias das superfícies reais do mundo, livre das idealizações herdadas de Rafael e de seus seguidores acadêmicos. A Irmandade também propunha uma temática fortemente ancorada em discussões éticas. O movimento foi recebido com agressividade e escárnio por muitos formadores de opinião, caso de Charles Dickens, que em 15 de junho de 1850 publica em Household Words o artigo Old Lamps for New Ones. Dickens ataca duramente os Pré-Rafaelitas, aos quais chama de “terrível Polícia que pretende dispersar todos os ofensores Pós-Rafaelitas”. Dickens prevê ainda a formação de outras inusitadas “Irmandades”:

Irmandade Pré-Newtoniana: para aqueles que se recusam a seguir as leis da gravitação.


Irmandade Pré-Galileu: para os que se recusam a proceder à revolução solar anual.

Irmandade Pré-Harvey (organizada por estudantes ligados ao Colégio Real de Cirurgiões): para os que “protestam contra a circulação do sangue”.


Irmandade Pré-Gower e Pré-Chaucer: organizada para a restauração do inglês arcaico, e para combater “todos os impostores posteriores, como uma pessoa de caráter duvidoso chamada SHAKESPEARE”.

Irmandade Pré-Laurentius: estabelecida para a abolição de todos os livros que não sejam manuscritos.

Irmandade Pré-Agincourt: visa expurgar da música “Mozart, Beethoven, Handel, e todos os outros com tais ridículas reputações”.

Irmandade Pré-Henrique-VII: luta pela extinção de todas as vantagens sociais obtidas na Inglaterra nos últimos quatrocentos anos.

O estrago de críticas como essa, em um primeiro momento, foi grande, como podemos ver no artigo Pre-Raphaelites in Caricature: “The choice of Paris: an Idyll”, de Florence Claxton, publicado por William E. Fredeman precisamente naquele momento de retomada do interesse pelos pré-rafaelitas, em 1960. O autor analisa com vagar a complexa iconologia da caricatura de Claxton, primeira mulher a criar gravuras em madeira para jornais, e que abandonou a carreira após o casamento. Uma das caricaturas reproduzidas no texto (sem autoria identificada) podemos ver abaixo.


Essa caricatura satiriza um dos quadros mais criticados do movimento pré-rafaelita, The awakening conscience, de William Holman Hunt (1827-1910), o único dos “irmãos” a se manter fiel ao estilo até o final da carreira. Se prestarmos muita atenção na caricatura poderemos perceber uma mulher apavorada, que está prestes a ser seduzida por um não tão galante cavaleiro. Vejamos agora o quadro original, de 1853: o rosto da senhorita prestes a ser “desencaminhada” não apresenta uma expressão muito clara, isso porque Hunt começou a atenuá-lo a pedido do comprador da obra, o rico industrial Thomas Fairbairn. Dito de outro modo, não vemos agora exatamente o que chocou os contemporâneos de Hunt: em um quarto, nas palavras de Ruskin, ardente defensor da obra, “comum, moderno, vulgar”, que tem o ar de “novidade fatal” e que, com seus papéis de parede e móveis produzidos em massa é minuciosamente representado, uma jovem, inicialmente seduzida pelo conforto do “materialismo moderno”, se dá conta de que está prestes a perder sua reputação para sempre.

The awakening conscience

A tela, da qual muito ri antes de entender do que se tratava (e parte de minha compreensão devo a David Peters Corbett e seu The world in paint: Modern Art and visuality in England 1848-1914), abriga uma triste história, o momento em que uma jovem se desilude, e pensando sobre isso me pego outra vez meditando sobre o filme protagonizado pela personagem que me fez começar a escrever esse texto. A auto-reflexiva e seduzida Jenny Miller, arrematadora de um quadro pré-rafaelita... Não, eu não riria dela.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

As saias de Camille Claudel

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Eu também, como milhões de espectadores pelo mundo, passei ame interessar por Camille Claudel por causa de Isabelle Adjani, que a interpretou no cinema, em 1988. Isabelle foi ainda Adèle Hugo em outro filme, a bela filha de Victor Hugo que foge de casa e corre o mundo atrás do homem que amava obsessivamente, e acaba seus dias em um hospício. Olhando assim, à distância, as duas histórias parecem guardar uma certa semelhança, mas basta pesquisarmos um pouco mais para que as diferenças gritem. Guardo Adèle para uma próxima oportunidade, hoje ficaremos apenas com Camille.

Professores de história da arte têm, entre outras missões, a de despertar o interesse dos alunos por essas obras de outras épocas, às vezes ainda facilmente encantadoras, às vezes herméticas. Para cumprir minha função, em uma aula de história da arte do século XIX que deveria ser dada na disciplina de História da Arte II, em 2007, resolvi abordar exclusivamente as vidas e as obras desse casal que a mídia haveria de transformar em espetáculo (basta conferir a chamada de exposição que reproduzo aqui), Auguste Rodin e Camille Claudel.


Nessa época eu já não acreditava mais na versão da história que havia sido contada pelo filme, a de que a pobre Camille havia sido a passiva vítima do ególatra Rodin. Acabara de ler Camille Claudel: a life (2002), de Odile Ayral-Clause, a primeira biografia da artista a tratar em minúcia também o período final da vida, em que esteve internada em um asilo. Eu acabara de descobrir, portanto, que se havia algo que Camille jamais seria era “vítima”.

Camille mostrou vocação para a escultura muito cedo. Vivia no interior da França. Que fazer com uma bela menina com vocação para a escultura na segunda metade do século XIX? Camille teve sorte, seu pai mudou-se com a família para Paris, a fim de que ela pudesse continuar seus estudos de arte. A biografia de Ayral-Clause nos mostra uma série de detalhes curiosos sobre esse universo das jovens artistas em começo de carreira na França: Camille, ainda que politicamente conservadora (ela seria anti-Dreyfusard, como Rodin), admirava Louise Michel (1830-1905), a professora que se correspondia com Victor Hugo e que se tornou uma das maiores figuras políticas da Comuna de Paris – lutou nas barricadas vestida como soldado, e depois foi deportada para a Nova Caledônia. Mas Camille, e essa pequena observação me dá o que pensar, nunca pensou em usar calças. E para ela seria mais confortável, porque realizar esculturas com longos vestidos é ainda mais desgastante. Por outro lado, viver sempre de calças como Rosa Bonheur (1822-1899, a reconhecida pintora de cavalos) exigiria uma cansativa rotina de pedidos de autorizações especiais à Polícia de Paris.



Louise Michel e Rosa Bonheur

De fato não era esse tipo de liberdade que Camille almejava. Ela queria se equiparar aos homens no reconhecimento da carreira artística. Recusava-se a participar das exposições para mulheres escultoras, que começavam a ser organizadas. Estudou na Academia Colarossi, que aceitava homens e mulheres, permitindo que todos realizassem desenhos a partir de modelo nu (os desenhos de Camille, como podemos ver no retrato de sua amiga Florence Jeans, refletem, de modo muito contundente, um pensamento escultórico do espaço).
Retrato de Florence Jeans, 1886

Camille queria disputar com os homens no terreno deles: realizava o trabalho pesado em suas esculturas (polia com osso de carneiro algumas delas), procurava participar dos eventos oficiais do circuito “masculino”, tentava vender suas obras ao Estado (muitas vezes sem sucesso). Ela não podia aspirar ao Prix de Rome, então não concedido às mulheres, nem à École des Beaux-Arts (o próprio Rodin não conseguiu cursá-la). Camille viu em Rodin, aliás, não apenas um amante, mas alguém que poderia auxiliá-la no árduo caminho do reconhecimento público de seu trabalho.


Les Causeuses, 1897, e La Vague, 1897

O percurso, no entanto, talvez tenha se mostrado mais duro do que ela seria capaz de prever na juventude. A relação com Rodin se desgastou (ele não abandonou Rose, a sua companheira desde os tempos de pobreza), sua família se voltou contra ela, seu trabalho não lhe rendia grande lucro. Camille, nada passiva, reduziu o tamanho de suas obras (que dizer do encantador grupo Les causeuses, ou de La vague? Nunca vi nada parecido, essas pequenas cenas em pedras translúcidas deixam para trás toda a carga clássica de obras anteriores), para que não a acusassem de plagiar Rodin, e provocou o ex-amante quando esculpiu L’âge mur (uma fina peça de retórica escultórica: a jovem Camille implorando, o maduro Rodin dividido entre ela e a velha e assustadora esposa, que acaba por escolher – Rodin ficou furioso). Em 1900, na Exposição Universal de Paris, quão melancólico deve ter sido acompanhar o Pavilhão especial dedicado a Rodin e a ausência das obras de Camille, recusadas.

L'âge Mûr, 1902

A doença de Camille, como sabemos, se manifestou com cada vez mais força desde então. Tivesse nascido um pouco depois, uma década ou duas, apenas, e a escultora não teria tido tantos problemas por querer ascender nessa carreira usando saias. Tivesse nascido um pouco antes e talvez houvesse poupado o pedaço de papel, que hoje se encontra no Museu Rodin, de confissões tão desoladoras (tradução minha):

“Na verdade, eu teria preferido ter um trabalho mais interessante, que atraísse as pessoas ao invés de colocá-las a correr. Se eu ainda pudesse trocar de carreira, teria preferido isso. Teria feito melhor em comprar belos vestidos e belos chapéus que destacassem minhas qualidades naturais do que em me devotar a minha paixão por construções duvidosas e grupos algo proibidos. Essa desafortunada arte é feita para longas barbas e faces feias, e não para uma mulher de relativa boa aparência. Perdoe esses pensamentos amargos [...]: eles não irão atenuar os feios monstros que me enviam a esse caminho perigoso”.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Jeanne Duval e Josephine Baker em Paris

segunda-feira, 26 de julho de 2010



Josephine Baker por Paul Colin


Não sei quando exatamente “conheci” Josephine Baker (1906-1975). Sei que faz mais de oito anos, mas não sei se faz mais de dez. Fiquei encantada com sua trajetória, e ao longo dos anos acumulei leituras sobre ela, do mesmo modo que faço com a longa lista de mortos que admiro. Josephine, uma dançarina afro-americana nascida em Saint Louis, animou os soldados aliados durante a Segunda Guerra Mundial, e depois se tornou mãe adotiva de crianças das mais variadas origens e culturas, na tentativa de empunhar, através da maternidade, uma bandeira contra o racismo. A realidade se mostrou mais complicada e, no final de sua vida, não faltaram problemas financeiros, problemas com os filhos, problemas com a casa onde viviam.

Mas não é essa a fase da vida de Josephine Baker que me interessa agora comentar aqui. Quero encontrar aquela Josephine pela qual as multidões européias ansiavam na década de 1920, a jovem e empolgante Josephine que levou milhares de mulheres a emular seu estilo (os cabelos curtíssimos, os brincos longos), entre elas Tarsila do Amaral.


Josephine Baker por Paul Colin

Josephine Baker tomou Paris de assalto em 1925. Tinha apenas 19 anos e era a grande estrela do espetáculo La Revue Nègre, que estreiou em 2 de outubro, no Théâtre des Champs Elysées. Josephine dançava no palco seminua. Com os seios às vezes à mostra, consagrou-se com o “selvagem” saiote de bananas que muitas vezes vestiu. Ela era o mais novo rosto do primitivismo, e Paris, como nos mostram Karen Dalton e Henry L. Gates Jr. em Josephine Baker and Paul Colin: African American Dance seen through Parisian eyes (1998), Paris estava preparada.

O interesse pelo primitivismo atravessa o romantismo francês no século XIX: ele está lá, palpável, na geração de George Sand e Balzac, e na de Baudelaire e Courbet; ele é alimentado pelas Exposições Universais de 1855, 1867, 1878 (esta última com a criação do Trocadero, que haveria de se tornar depois um museu de antropologia); ele alimenta os sucessivos movimentos modernos nas artes visuais (de Gauguin a Picasso, entusiasmado pela art nègre em 1906), na literatura e no teatro (que dizer de Ubu Roi, de Alfred Jarry?).

O primitivismo alimenta também a música: entre 1906 e 1917 Debussy, Stravinsky e Satie compõem peças musicais baseadas no jazz e no ragtime, estilos criados pelos afro-americanos do sul dos Estados Unidos e adotados pelos franceses a partir da Exposição Universal de 1900.

No final da Primeira Guerra Mundial os franceses contabilizaram mais de 1.400.000 homens mortos, e o jazz, espalhado pelo país através das bandas do exército americano, compostas muitas vezes por muitos grandes jazzistas sulistas, segregados, surge como um convite ao prazer de viver e à adoção do antigo verso de Horácio, “carpe diem”.

Baker é recebida em Paris, nesse contexto dos “anos loucos”, de braços abertos. O crítico de dança francês André Levison, que assistiu a suas primeiras exibições em Paris, assim a descreve, em uma das críticas que publica nos jornais da época:

“Algumas das poses da Senhorita Baker, costas arqueadas, quadris projetados, braços entrelaçados e erguidos em um símbolo fálico têm a envolvente força dos melhores exemplos da escultura negra. O senso plástico de uma raça de escultores ganha vida e o frenesi do Eros africano alcança a platéia. Não é mais uma grotesca dançarina que se apresenta diante deles, mas a Vênus negra que assombrava Baudelaire” (tradução minha).

Jeanne Duval desenhada por Baudelaire

Essa associação imediata feita pelo crítico francês entre Josephine Baker e Jeanne Duval, a célebre atriz, amante de Baudelaire, é tentadora e talvez, até, inescapável. Mas teriam essas duas Vênus negras, uma norte-americana e a outra da Ilha Maurício ou das Antilhas (Haiti ou São Domingo, não se sabe ao certo) algo mais em comum além do fato de serem ambas vedetes, negras e, por diferentes razões, famosas? Senão vejamos – e a partir de agora conto com a ajuda de Teresa Dolan e seu Skirting the issue: Manet’s portrait of Baudelaire’s mistress, reclining (1997) e Jacques Crépet, Charles Baudelaire (1907).

Jeanne Duval desenhada por Baudelaire

Jeanne Duval (1820 - ?) tornou-se amante de Baudelaire em 1842. O relacionamento é tumultuado, há inúmeras separações e reconciliações, ela o trai incontáveis vezes. Em março de 1852 Baudelaire, em carta a sua mãe, reclama amargamente da amante: ela é ingrata, o trata como servo, nada entende de política ou literatura, não o admira. Além disso, diz Baudelaire que ela seria capaz de “jogar meus manuscritos no fogo se isso lhe trouxesse mais dinheiro do que publicá-los” (tradução minha). Jeanne contrai sífilis e bebe demais. Ainda assim, Baudelaire, que a imortalizou como a sua Vênus negra em vários poemas das Flores do Mal, sempre aparece em seu socorro: em 1859 a interna no Hospice Dubois (ela fora acometida por uma paralisia devido ao excesso de bebida). Até um suposto irmão de Jeanne (há dúvidas quanto ao “parentesco”, talvez fosse um de seus amantes) Baudelaire chegou a sustentar. A mãe de Baudelaire, após a morte do filho em 1867, corrobora a visão negativa acerca de Duval em carta a Ancelle, um antigo amigo da família:

“Tenho um pacote prodigioso de cartas dela a Charles [...]. Em todas, vejo pedidos incessantes de dinheiro. Jamais uma palavra de carinho, nem mesmo agradecimentos. Sempre é dinheiro que ela precisa, e imediatamente. Vejo uma, a última, datada de abril de 1866, quando meu pobre filho estava em seu leito de dor e eu estava prestes a partir para encontrá-lo. E nessa carta, como nas precedentes, ela o atormentava, o perseguia devido ao dinheiro que ele deveria lhe enviar imediatamente" (tradução minha).


Jeanne Duval desenhada por Baudelaire

Mas não terminemos nossa incursão pela vida dessas duas impactantes mulheres que causaram frisson em Paris com nota tão amarga, por mais verdadeira que seja. Nadar, amigo de longa data de Baudelaire, inicia o seu Charles Baudelaire intime: Le poete vierge (1911) com uma descrição de Jeanne Duval. Afinal, ele, jovem crítico, a assistiu enquanto atuava nos pequenos teatros de Paris, na época em que ainda não havia se tornado amigo de Baudelaire. Antes que Jeanne tivesse qualquer fama (nunca foi prestigiada por seu talento, que era pouco, a crer na crítica de seus contemporâneos), Nadar a admirou pelo exotismo e pela beleza negra, antecipando a reação que outros tantos “modernos” teriam diante de Baker, nos palcos de Paris:

“Vestida de criada de quarto [...], uma mulher grande, grande demais, que supera bem em uma cabeça as proporções ordinárias [...] já é algo para surpreender. Isso não é nada: essa criada de extradimensão é uma negra, uma negra de verdade, uma mulata incontestável [...]. A criatura além disso é bela, de uma beleza especial, que não se importa com Fídias, um prato especial para os refinados”
(tradução minha).

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ah, se eu desenhasse como Victor Hugo!

segunda-feira, 19 de julho de 2010


Também por acaso conheci os desenhos de Victor Hugo (1802-1885). Quando me pus a traduzir os textos de Baudelaire sobre paisagem para meu livro Paisagem Moderna: Baudelaire e Ruskin, fiquei obcecada com a seção Paisagem do Salão de 1859. Em seu último parágrafo, Baudelaire afirma preferir, às paisagens dos paisagistas franceses modernos (como Troyon, especialista em gado), entre outras obras, os nanquins de Victor Hugo. Pois então ele desenhava? Li Notre-Dame de Paris aos 14 anos e sou admiradora fervorosa do musical homônimo de Luc Plamondon e Richard Coccianti, cresci tendo pena da pobre Cosette, de Os Miseráveis (1861), que via em desenho animado. No entanto, não sabia que ele também desenhava.

E como desenhava! Delacroix, certa feita, disse que não haveria artista maior no século XIX se Victor Hugo tivesse se dedicado por completo às artes visuais. Mordida, outra vez, pela curiosidade, pesquisei com mais vagar os seus desenhos e aquarelas, que veremos aqui em ordem cronológica, sempre que possível. Minhas fontes básicas: La vie de Victor Hugo, de Alfred Barbou (1902), com desenhos de Victor Hugo gravados por Méaulle; Vision et pensée chez Victor Hugo, de L. Emery (s/d), Victor Hugo, dessinateur génial et halluciné (1964), de Jean Delalandee (uma bela e entusiasmada sistematização da produção visual do poeta), o imprescindível Victor Hugo na arena política, de Michel Winock, e, enfim, os sites do Musée Litéraire Victor Hugo (http://www.victor-hugo.lu) e o sempre maravilhoso Europeana.



Um dos desenhos mais antigos que achei data de 1816, esboçado pelo poeta aos 14 anos, na primeira página de um caderno de versos, acompanhado do seguinte título: “Les bêtises que je faisais avant ma naissance” (“As besteiras que fazia antes de meu nascimento”). Há vários outros desenhos caricatos da mesma “família”: a geração da qual fazia parte Victor Hugo cresceu exercitando as armas românticas da caricatura. Em Un classique ele debocha da empolação dos amantes do clássico (ele é porta-voz dos românticos, os clássicos, que ocupam posições institucionais de destaque na Paris de sua época, são seu alvo primordial) ao estufar exageradamente o peito do tipo que retrata. A monarquia também é caracterizada por outra caricatura sua (não sei tampouco a data), A carruagem da Monarquia: em um desenho de traços ágeis, rápidos, enérgicos – reparemos a economia de sua representação do solo-, desenho que visualmente perturba a harmonia da linha clássica, os nobres franceses estão ocultos em uma carruagem puxada por um magro pangaré.


No começo da década de 1830 Victor Hugo publica, com retumbante sucesso, Notre-Dame de Paris. Em 1838 ele encena a peça Ruy Blas, mais uma oportunidade para exercitar seu traço, como podemos ver no seu pantagruélico Goulatromba, um dos personagens de sua peça. Seus desenhos por essa época já circulavam entre um pequeno grupo de artistas e intelectuais, e eram muito disputados. Chifflart, um artista acadêmico que, segundo Delalande, venceu o Prix de Rome, escreveu o seguinte sobre os desenhos de Victor Hugo:

“Vi na grande quantidade de desenhos do Mestre um desenho de tal modo pungente, de tal modo alegre, de tal modo bem concebido, com um traço conduzido pelo instinto de modo tão feliz que não encontro nada como ele. Trate de ver isso” (tradução minha).

Em janeiro de 1841 Victor Hugo é eleito para a Academia Francesa, ele está no auge. Seus livros vendem muito e lhe rendem excelentes contratos com as casas editoras. Victor Hugo fica rico. Outras mudanças importantes ocorrem: Victor Hugo dia a dia se torna menos monarquista. A conversão ao Republicanismo ocorre com os eventos de 1848: ele será eleito membro da Assembleia Constituinte. Defende bandeiras como a instrução primária obrigatória e o ensino laico. A educação é um assunto intensamente discutido na França desde a Revolução Francesa – jacobinos propunham uma educação integralmente nas mãos do Estado, a criança é tirada dos pais; já os girondinos defendiam o modelo que prevaleceu, aquele em que a criança vai para a escola e retorna para casa.




O republicanismo irá custar caro a Victor Hugo. Em dezembro de 1851 ele é obrigado a deixar a França com a família, e busca asilo na Bélgica. A nova situação de exilado, no entanto, será propícia a sua atividade como artista visual. De 1854 é essa silhueta fantástica. Desconcertante, se estamos entre os que acreditam que toda a produção plástica do século XIX é “acadêmica”. Victor Hugo experimenta formalmente, brinca com manchas de tinta, raspa, respinga, dobra o papel. A mesma lógica de experimentação encontramos em sua Composição abstrata (sem data), nas Manchas com impressões digitais (1864-1865) e na Composição com manchas (1875).


O que acho espetacular é o modo como Victor Hugo concilia esse traço intensamente pessoal e sua enorme criatividade tanto com a mais pura experimentação formal quanto com a preocupação em se posicionar “graficamente” sobre eventos políticos de seu tempo. Desolador é o desenho de 1859 em que mostra o corpo putrefato de John Brown (1800-1859), abolicionista americano. Brown militava pelo armamento dos escravos no sul, uma solução radical que culminou no Massacre de Pottawatomie, em maio de 1856, com o assassinato de cinco escravocratas. Brown, apoiado por Emerson e Toureau, foi enforcado em Charles Town, Virginia, justamente em 1859.


Outro desenho que manda um recado político (tão rico formalmente, que possibilita uma leitura autônoma, bem mais “contente” se desconhecemos o subtexto) é Salle des séances du conseil municipal de Thionville (après l’entrée des Prussiens en 1871), desenho de 31 de agosto de 1871 que mostra a sala reduzida a ruínas, emblema do domínio da França pelos prussianos – Thionville era uma cidade da Alsácia Lorena disputada pelas duas nações.



Victor Hugo vagou por vários países durante o exílio. Muitos desenhos e aquarelas resultam de suas estadias em Vianden, Luxemburgo, frequentes entre 1862 a 1871. A obra que reproduzo logo no começo desse texto é a curiosa Vianden à travers une toile d’araignée, uma de minhas preferidas, e aqui embaixo podemos ver Vianden au Clair de Lune. Victor Hugo volta à França em 1871 e não abandona os pincéis e os lápis. Os que têm a sorte de partilhar sua amizade conseguem alguns de seus desenhos. Os que não têm, podem conhecê-los através de algumas gravuras de tradução já publicadas na época. Bom, mais uma vez aqui me rendo à presciente crítica de arte de Baudelaire: entre Troyon (e suas vaquinhas) e Victor Hugo, mil vezes o “desenho delirante” do poeta...



sábado, 17 de julho de 2010

Mercier e o Terror

sábado, 17 de julho de 2010

No verão de 2009 eu estive às voltas com a realização da biografia de Pierre Daunou (1761-1840), um girondino que, entre tantas outras coisas, publicou, em 1795, a obra Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain de Condorcet, misteriosamente morto na prisão. Entre todos os textos que li no transcorrer da minha pesquisa, uma passagem da Notice sur M. Daunou (1855) me chamou especialmente a atenção. Nela, Gerard nos conta como Daunou, um dos 73 deputados da Convenção presos em 1793, durante o Terror, tomou conhecimento da morte de Robespierre. Daunou e outros companheiros, entre eles Louis-Sébastien Mercier (já escrevi sobre ele em Mercier e as artes na Paris de 2440), aguardavam a morte na prisão de Port-Libre. Em 28 de julho de 1794 o inesperado acontece: Mercier recebe na prisão um pão embrulhado em um pedaço de papel que continha a notícia da morte do líder jacobino. É Mercier, portanto, um revolucionário não girondino que detestava os jacobinos, aquele que transmite as boas novas aos demais presos.

O inusitado da cena me lembrou o procedimento poético da singularização, municiosamente analisado por Chklovski em A arte como procedimento (1917). O antológico exemplo que Chklovski, um dos principais expoentes do Formalismo Russo, nos oferece em seu texto é o do cavalo transformado por Tolstoi em narrador na novela Kholstomer. Há outros tantos exemplos da mesma estirpe que me ocorrem agora, mas citarei apenas mais dois: Kachtanka, o belo conto de Tchekhov que mostra o mundo visto pelos olhos de uma cadelinha, e a Cartuxa de Parma, romance de Stendhal (1783-1842) em que o jovem e inexperiente Fabrizio Del Dongo passeia pela Batalha de Waterloo sem fazer a mais vaga ideia daquilo que está presenciando.


Pois para mim a imagem de alguém como Mercier recebendo a notícia da morte de Robespierre através de um papel de embrulho é tão inusitada quanto aquela de cavalos e cadelinhas pensantes, ou de jovens italianos incapazes de decodificar um grande momento histórico, quando por acaso participam de um.


Mercier escrevia muito, publicava compulsivamente. Tal característica sua não passou despercebida a seus contemporâneos, e foi satirizada em caricaturas como a que vemos acima. Quanto às suas obras, o best-seller L’An 2440 e as muitas peças de teatro são anteriores à Revolução. Depois de 1789 ele resolve explorar alguns gêneros novos, que julgava agradar aos novos tempos. Em 1791 publica, em Lyon, os Costumes des Moeurs et de l’Esprit François avant la grande Révolution à la fin du dix-huitième siècle, ilustrado com 96 caricaturas. Algumas delas reproduzo aqui: um problema que às vezes assolava as vias públicas de Paris, a “chuva” de floreiras que despencavam dos andares mais altos de algumas casas; dois tipos urbanos, uma moça passeando com um menino; Mercier diante do Mont Blanc suíço, imaginando as muitas obras (aladas, como podemos observar) que ainda haveriam de sair de sua pena.


Em 1792 Mercier publica os Fragmens de politique et d’histoire. No segundo tomo um dos fragmentos (o de n. 67, para ser mais precisa) intitula-se Des femmes chez les anciens. Mercier acredita que, na Antiguidade, as mulheres eram mais livres entre os bárbaros, e subjugadas entre os povos do Mediterrâneo. Mercier não desiste de tentar prever o futuro (o que já havia feito em L'An 2440, como bem se sabe), pensando agora em como seria a recepção às obras de Voltaire por parte das próximas gerações (ele havia sido editor das obras de Rousseau, e dizia que “Rousseau é o corretivo de Voltaire”):

“A geração que vai nascer verá todos os nossos livros de modo bem diferente daquele com que os vemos; ressuscitamos muitos livros antigos desconhecidos, desdenhados. Quem ousaria dizer afirmativamente o que restaria de Voltaire nesses anos? Querer pesar uma cabeça humana é o cúmulo da temeridade; porque o tempo dá os mais formais elementos a todos esses intrépidos juízes” (tradução minha).


Passada a Revolução Mercier reúne textos e apontamentos feitos no período em uma obra em dois tomos, Paris pendant la Révolution (1789-1798) ou Le Nouveau Paris. Na introdução da reedição de 1862 é citada uma frase atribuída a Mercier, que caracteriza a ambiguidade ideológica que ele mesmo via em si e que era criticada por vários contemporâneos: “[...] sou tentado a queimar o que adorei e adorar o que queimei”. Também na introdução é citada uma passagem em que Mercier novamente deixa transparecer sua visão liberal com relação às mulheres, uma vez que se recusava a caluniá-las (prática comum durante a Revolução, basta lembrarmos dos terríveis e ofensivos panfletos que circulavam sobre Maria Antonieta e seus alegados “furores uterinos”):

“A maior covardia [...] é escrever contra uma mulher. Nossos ancestrais consideravam essa covardia um verdadeiro delito... Compus passavelmente madrigais em sua honra; mas em toda a minha vida não fiz, graças a Deus, o menor epigrama contra elas” (tradução minha).


Folheando o primeiro tomo de Paris pendant la Révolution encontrei no capítulo Chevelures Blondes a crítica de Mercier à decisão de se dissolver a Convenção, que está na base do Terror. Em 31 de maio de 1793 os girondinos dela são expulsos, e não levará muito tempo para que Mercier seja mandado para a prisão.


No tomo segundo Mercier inclui o capítulo Supplice de Robespierre, em que narra detalhadamente a morte do líder jacobino. Como já havia dito antes, Mercier odeia jacobinos, como se percebe em uma série de imagens – esta, por exemplo: “[...] eles são como a mulher de Macbeth, eles não podem fazer desaparecer nem desviar a vista dessas manchas inapagáveis” (tradução minha – não posso deixar de considerar significativo o fato de Shakespeare ser mencionado nesse momento). Mercier chega a comentar que estava preso nessa época; ainda sim, mesmo não tendo testemunhado a morte de seu pior inimigo, fez questão de descrevê-la como se a tivesse visto, e de julgá-lo moralmente com muita severidade:

“Seu nome carregado de imprecações está em todas as bocas: não é mais o incorruptível, o virtuoso Robespierre; a máscara caiu; ele é execrado; ele é transformado em responsável por todos os crimes dos dois comitês” (tradução minha).

Assim, é possível concluir que Mercier, que “viveu” na prisão um legítimo episódio de singularização (a morte de Robespierre em papel de pão), não a utilizou como recurso literário em seu relato sobre os últimos momentos do Terror. Mas não nos iludamos: a singela narração do que verdadeiramente aconteceu a Mercier em seus derradeiro dias de Terror, mesmo que explicitasse esse peculiar episódio de singularização, dificilmente o tornaria mais interessante do que Voltaire aos olhos do leitor contemporâneo.

domingo, 11 de julho de 2010

George Sand Bombshell

domingo, 11 de julho de 2010

A jovem George Sand

O que haveria em George Sand que tanto atraía os homens? Olhando para os muitos retratos de Amandine-Aurore-Lucile Dupin (1804-1876) não é tão fácil descobrir. A moda feminina da década de 1830 está bem longe da ousadia que caracterizará, muitíssimo mais tarde, as charmosas Bombshell. Em 1830 os vestidos de baile por vezes deixavam os ombros à mostra, e talvez já fosse isso ousadia suficiente para uma alma romântica. Mas o segredo de George Sand, pseudônimo famoso de Amandine, certamente se encontrava, sobretudo, em sua complexa personalidade.

Venho me deparando com informações conflitantes sobre George Sand há muitos anos, oriundas das mais desencontradas fontes. Quando me interessei pelo Marechal Maurice de Saxe (grande militar francês do século XVIII, conhecido também pelas muitas amantes, uma delas disputada com o enciclopedista Marmontel) descobri que Sand era sua bisneta. George Sand, aliás, tinha bastante orgulho das origens nobres, pois dedicou um volume inteiro de suas memórias à própria árvore genealógica.

Também li, e isso é bem óbvio, que ela gostava na juventude de usar roupas masculinas, o que causava escândalo. Ao estudar Dostoiévski constatei o quanto o romancista russo a admirava como escritora, e ao estudar Baudelaire constatei também o quanto o poeta a detestava. George Sand era amiga de Balzac, mas Champfleury também não gostava dela. Ela era amiga de muitos artistas, como Calamatta, o renomado gravador, tradutor de Ingres. Ao mesmo tempo, não prestou atenção aos jovens artistas que consagrariam a arte francesa, à geração de Manet (Courbet ela já não tolerava). Como defini-la? Como entendê-la? E não reclamo por falta de informação, porque Sand era particularmente afeita aos escritos autobiográficos.

Detenho-me brevemente, então, no assunto que me fez começar esse texto, a vida amorosa de George Sand. Seria tentador aproximá-la a uma personagem literária conhecida de todos, Madame Bovary: Sand casou-se com Casimir Dudevant em 1822 e algum tempo depois, como Bovary, queixou-se de tédio no casamento. Em 9 de novembro de 1825 escreve ao marido: “[...] tédio – uso essa palavra, ainda que seja vazia de sentido, para expressar a tristeza secreta que me consome” (tradução minha).


Sand desenhada por Musset

Mas há uma grande diferença entre as duas: Bovary se deixava levar pela imaginação, enquanto Sand era cheia de iniciativa e muito prática. Bovary, endividada, morreu de culpa, enquanto Sand deixou o marido e começou uma nova vida, com a recém-descoberta vocação de escritora e com muitos novos amores. O primeiro deles foi Jules Sandeau (1811-1883), com quem dividiu a pena – sua carreira de escritora começa aí, nos escritos que assinavam juntos. Mas Sandeau a trai com uma criada, e Sand encontra consolo em Alfred de Musset (1810-1857). Poeta romântico, Musset se apaixona perdidamente por Sand (o que não o impede de seguir a vida boêmia e esperar, naturalmente, que ela providencie todos os cuidados de que necessita – refeições, roupas, etc.). A parceria literária se revela profícua: George Sand escreve uma cena chamada Uma conspiração em 1537, sobre o assassinato do tirano duque Alexandre (1510-1537) por seu primo, Lorenzo de Médici (1514-1548), em Florença. Essa cena será transformada por Musset em uma de suas obras mais famosas, Lorenzaccio (que tenho aqui, em francês – um exemplar descartado pela biblioteca da Alliance Française no tempo em que eu estudava lá; chamo a atenção para o fato de que praticamente ninguém o retirava).

A parceria amorosa entre Sand e Musset, no entanto, logo se desintegra. Eles viajaram juntos para a Itália, Musset segue a vida desregrada e adoece, Sand cuida dele e, ao mesmo tempo, se torna amante do médico que o atende, Pagello. Esse episódio italiano merecerá um curioso “duelo de penas” mais tarde. Logo após a morte de Musset, Sand publica um relato autobiográfico romanceado, Elle et lui (1859), em que narra como teria sido o caso entre os dois e a viagem à Itália. Sand se transforma em Thèrese e Musset em Laurent. É Thèrese que decide terminar com o relacionamento, o que é justificado do seguinte modo: “Ela teve a felicidade egoísta; ela não pensa mais no que será de Laurent sem ela. Ela era mãe, e a mãe havia irrevogavelmente matado a amante” (tradução minha).

Seis meses depois o irmão de Musset, Paul de Musset (1804-1880), também escritor, publica uma ruidosa paródia do romance de Sand, Lui et Elle (1860). Aqui Sand se chama Olympe, e Musset, Edouard. Olympe é uma criatura intragável, que faz gato e sapato do amante. Em quem acreditar?

Sand pintada por Delacroix, parte de retrato em que também aparece Chopin

O próximo amante famoso de Sand será Chopin. Ficam juntos vários anos (ela reclama da excessiva sensibilidade dele, de seu difícil temperamento) e a ruptura ocorre ao que tudo indica em função do casamento da filha dela, Solange, com o escultor Clésinger. Sand desaprovava a união (Clésinger era muito mais velho e tinha fama de ser violento e boêmio), e Chopin, que queria Solange como a uma filha, deu todo o seu apoio. Solange escreve a Chopin, em 30 de setembro de 1847: “Por um lado, problemas financeiros, por outro, uma mãe que me abandonou mesmo quanto eu não tinha experiência de vida [...]” (tradução minha). Já o irmão de Solange, Maurice, foi por toda a vida intimamente ligado à mãe (o que chegou a prejudicar seu casamento).


George Sand idosa

Se resta por vezes ambígua a atuação de Sand como amante e mãe, bem mais tranqüila é a sua imagem de avó, dedicada e amorosa, recebendo os netos na bela casa em Nohant. Estará alguém com a razão? Devemos confiar ou não nos relatos autobiográficos de George Sand, em sua versão dos fatos? Por outro lado, será que essa pergunta é relevante? Sand desempenhou uma boa quantidade de diferentes papeis em sua vida, o que por vezes torna difícil entendê-los em conjunto. Não há mesmo sentido em procurar coerência.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Catlin e a causa perdida

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Ojibbeway. Pois passei um dia inteiro da minha vida atrás dos Ojibbeway. Eu nem suspeitava de sua existência antes de começar a trabalhar na pesquisa Paisagem Moderna: Baudelaire e Ruskin. Estava lendo os primeiros Salões de Baudelaire, e em meio ao material de apoio que encontrei, me deparei com o nome dessa tribo indígena da América do Norte: os Ojibbeway. Fiquei siderada quando descobri que um grupo deles havia sido levado para a Europa e que se tornara grande sensação de público na metade da década de 1840. Não foi muito fácil encontrar referências a respeito. De tanto insistir acabei encontrando a principal fonte sobre o assunto, os livros de George Catlin (1796-1872).

Já li algumas descrições de Catlin: um homem alto e muito forte, transbordante de energia. Não duvido por um minuto dessa leitura. No começo da década de 1830 ele passou a percorrer todo o território americano, e a registrar em pinturas os modos de vida, os rituais, e as principais figuras das diferentes tribos americanas, todas elas em perigo eminente de desaparecimento, diante da implacável expansão dos brancos para o Oeste. Pois Catlin subia e descia rios de canoa, entrevistava índios e os fazia posar para retratos, dava um passo atrás e os pintava habitando, ocupando as vastas planícies do Mississipi. Fez isso incansavelmente, até o começo da década de 1840. Não que não tivesse família. Era casado e tinha muitos filhos, cinco, se não me engano.


Bom, ele era americano, e, ainda que inspirado pelos ideais igualitários do iluminismo, e pela crença de que os hábitos selvagens em boa medida poderiam ser “aperfeiçoados” pela civilização, tinha o sonho americano de transformar essa sua intensa relação com as tribos em um negócio lucrativo, que agradasse a ambas as partes – ele e os índios.

Sua ideia, temos de admitir, olhando agora em retrospecto, foi mesmo brilhante: tomou o modelo pronto e popular da Shakespeare Gallery (que comentei em outra postagem, Becoming Popular...) e fez uma ligeira adaptação. Foi assim que criou a itinerante Indian Gallery: no lugar de quadros baseados em Shakeaspeare, retratos de índios e da cultura indígena norte-americana – também pintados a óleo e depois transformados em gravura. Ao invés da encenação de peças de Shakespeare, a atuação de um grupo de índios Ojibbeway (e depois Yoway).

Catlin levou sua trupe a Paris, e o sucesso foi imediato. Victor Hugo, George Sand, Chopin, Baudelaire, é longa a lista das personalidades que visitaram a exposição. George Sand escreveu um alentado texto sobre ela (que também li, mas ele mereceria um comentário à parte, que jogo para o futuro). Baudelaire igualmente comentou uma obra de Catlin em seu Salão de 1846. Os índios de Catlin logo foram transferidos para o Louvre, conforme a vontade de Luís Felipe, que com eles muito se divertiu. Podemos não apenas ler sobre isso, mas também “ver” um pouco desse “fenômeno” na obra em três volumes que Catlin dedicou a sua aventura européia: Adventures of the Ojibbeway and Yoway indians in England, France and Belgium (Londres, 1852).

Para tanto, prestemos atenção em algumas de suas ilustrações. Nesses belos, tranquilos desenhos, podemos entender melhor como funcionava a galeria: paredes repletas dos quatros com motivos indígenas pintados por Catlin (em torno de 500) e ainda objetos indígenas, e mesmo tendas, dispostos no espaço. Junto aos quadros por vezes os índios faziam exibições, que atraíam a curiosidade do público, ao mesmo tempo em que despertavam medo (sentimento muito bem descrito por George Sand em seu texto sobre a Indian Gallery).


Os índios também se apresentavam ao ar livre, para o público em geral ou ainda para nobres franceses, belgas e ingleses (Catlin excursionou pela Bélgica e pela Inglaterra), como podemos ver nas duas próximas ilustrações.



Os índios eram, finalmente, recebidos em algumas ocasiões por Luís Felipe, a quem Catlin ofereceu a possibilidade de comprar todo o acervo da Indian Gallery. Os índios deixaram registradas muitas de suas opiniões sobre essa experiência elegante nos Salões franceses, e também sobre assuntos variados, como o passeio pelos corredores do Louvre – não entendiam eles, por exemplo, qual o sentido de passarmos o dia a olhar centenas de quadros, se quando chegasse a vez de olharmos os últimos nem mais nos lembraríamos dos primeiros.


Catlin, amigo de sua trupe, também transformava em gravura os desenhos que alguns dos membros das tribos faziam para ocupar o tempo durante as folgas na turnê europeia. Eis os que escolhi: um deles, o modo como dois índios imaginaram que deveria ser o céu dos brancos, com suas seis diferentes formas de acesso; e o outro, um desenho de Say-Say-gon, o amigo de Catlin há pouco falecido, mostrando ironicamente o primeiro encontro entre um branco e um Ojibbeway.



A tranquilidade e a delicadeza das linhas das ilustrações, a ausência de cor, a composição harmoniosa, tudo isso cria uma encantadora sensação de paz que contrasta, e muito, com o que ocorria na vida de Catlin e dos índios naquele período. Mesmo cobrando ingressos, o negócio idealizado por Catlin se mostrou muitíssimo dispendioso: havia os vários índios a sustentar, e os gastos com hospedagem, alimentação e transporte. Os espetáculos eram bem-recebidos, mas os quadros, nem tanto – Luís Felipe, mesmo tendo a chance, não se interessou em comprar a Indian Gallery. Muitos dos índios do grupo de Catlin adoeceram na Bélgica e morreram de varíola – caso de seu amigo Ojibbeway. Catlin perdeu a esposa também nessa época, e de uma hora para outra se viu a cuidar sozinho de cinco crianças pequenas. Incríveis as provações, a quantidade de trabalho, e a insistência em tratar de um tema que costumava atrair menos admiração do que desprezo.

Catlin voltou para os Estados Unidos, voltou a viajar (dessa vez para conhecer os índios da América do Sul, e esteve até no Brasil), continuou a publicar seus livros, como O-Kee-Pa: a religious ceremony; and other customs of the Mandans (1867) e Illustrations of the manners, customs & Conditions of North American Indians (1876). Tentou ainda, mais algumas vezes, levar adiante sua causa, e vender sua coleção de quadros – como Van Gogh, sem o menor sucesso. Morreu bem idoso e bem pobre, justamente no momento em que os índios começavam a ser registrados em fotografias, anônimos, seriados como espécimes de museu. Os retratados de Catlin, estocados depois na Smithsonian Institution, não podemos esquecer nem deixar de perceber toda a melancolia que há nessa constatação, eram bem diferentes: únicos, altivos e orgulhosos, eles mantinham, cada um, o seu nome próprio.