domingo, 4 de julho de 2010

Uma nova chance a Champfleury

domingo, 4 de julho de 2010

Carta de Baudelaire a sua mãe, 1862


Quanto será que teríamos de pagar por uma carta de Baudelaire em um leilão, hoje? Sou incapaz de fazer uma estimativa. As cartas de Baudelaire, como o restante de seus manuscritos, são relíquias, verdadeiro patrimônio da humanidade, e algumas podem ser cultuadas em Paris, no Musée des Lettres (Cf. http://www.museedeslettres.fr/public/sous-thematique/charles-baudelaire/53), como essa de 1862, que escreveu a sua mãe, pedindo dinheiro para pagar seu aluguel e apresentando seus projetos literários em curso. A carta permite que vislumbremos a luta do escritor contra os recorrentes problemas que enfrenta, a perseguição da justiça, os excessos boêmios, a constrangedora falta de dinheiro: “Te garanto que não há mais desordem na minha vida. Nela a ordem a cada dia assume um lugar maior. Estou triste, resignado a tudo” (tradução minha).


Mas uma carta de Jules Champfleury (1820-1889), por muito tempo um dos melhores amigos de Baudelaire (em 1848, no calor da Revolução, chegaram a redigir juntos o jornal Le Salut Public), carta, como a de Baudelaire, escrita na maturidade, quanto poderia valer hoje? Neste caso tive como descobrir. No popular site de livros usados da Abebooks aquele que dispuser de 300,00 dólares poderá se tornar o proprietário de uma carta de Champfleury redigida em Sèvres (Champfleury, desde 1872, era chefe das Coleções da renomada fábrica das porcelanas de Sèvres). Em 19 de outubro de 1879, Champfleury escreveu a um amigo desconhecido: “O tempo urge; conto já com quatro ou cinco membros do Comitê, incluindo eu mesmo, que não gostariam de deixar escapar um voto em uma questão de tal modo importante”. O vendedor da carta explica que Champfleury queria apoio na oposição a um grupo de jornalistas franceses. 300,00 dólares não é uma soma expressiva, quando consideramos que o autor da carta, conforme já disse, era amigo de Baudelaire, e também de Courbet, foi considerado o porta-voz do Realismo francês, trocou cartas com George Sand e dormiu com a Estrangeira, a viúva russa de Balzac. O que justifica, então, essa intrigante e mesurável distância, a enorme distância entre um sebo e um museu, que percebemos entre esses dois manuscritos escritos por homens que, um dia, foram tão próximos?


A fama póstuma trilha caminhos muito caprichosos. Faz pouco tempo que Champfleury voltou a atrair o interesse da crítica. Em 2001 Amal Asfour, da Universidade de Viena, publicou Champfleury: Meaning in the Popular Arts in Nineteenth-Century France, em que procura resgatar a importância do trabalho de Champfleury para a valorização das artes populares. Colocando em prática o ideário romântico de reconhecimento das manifestações culturais populares, Champfleury, desde a juventude, viajou pelo interior da França coletando ilustrações, gravuras d’Épinal (reunidas em Histoire de l’imagerie populaire, de 1869; escolhi como exemplo um tema popular nas gravuras de Épinal, a morte do crédito), peças de cerâmica (em especial aquelas louças feitas durante a Revolução Francesa, repletas de motivos patrióticos e mesmo de caricaturas, como a imagem que reproduzo aqui, extraída da Histoire des Faïences patriotiques sous la Révolution, livro de 1875) e tudo o mais que julgasse representativo de uma cultura ameaçada pela paulatina industrialização do país. Champfleury dedicou ainda cinco volumes a uma história da caricatura (um dos temas diletos de sua geração), foi um dos incentivadores do Théâtre des Funambules, um teatro de pantomimas que fez incrível sucesso em Paris a partir da década de 1840, e até as vinhetas publicadas nas obras dos poetas românticos franceses (quem pensaria nisso?) se deu ao trabalho de colecionar e analisar, em Les vignettes romantiques (1883).

Vozes antigas continuam a se erguer contra ele: Nadar, muito amigo de Baudelaire, desconfiava de seu caráter; muitos são os que dizem que ele era uma figura “de direita”, que se vendeu ao governo de Napoleão III (e aos próximos) em troca de cargos públicos e estabilidade financeira (essa é mais ou menos a opinião de T. J. Clark), que sua obra literária é medíocre, que sua visão sobre a cultura popular é “folclorizante”. Acho engraçada essa ideia (bastante autoritária, no meu modo de ver) de que, quando não concordamos ou não gostamos de algo, devemos ignorá-lo ou ainda eliminá-lo. Champfleury, pioneiro na ilustração de livros que tratam de arte, deixou uma caudalosa e original obra que merece estudo. Seu lugar, definitivamente, não é embaixo do tapete.