sexta-feira, 30 de julho de 2010

Como não rir dos Pré-Rafaelitas

sexta-feira, 30 de julho de 2010

An Education (2009), cena do leilão

Há alguns dias atrás assisti a um filme britânico muito comentado, An Education, dirigido por Lone Scherfig. O roteiro de Nick Hornby (autor do romance que rendeu o memorável filme Alta Fidelidade) baseia-se no relato autobiográfico da jornalista britânica Lynn Barber. O filme é realmente impactante, mas a cena que mais me deu o que pensar talvez não seja a mais óbvia. A jovem Jenny Miller, de 16 anos, que se prepara para estudar em Oxford, acaba de conhecer um homem bem mais velho, David Goldman, que lhe abre as portas de um “mundo encantado”: a fervilhante vida social londrina do início dos anos 60. Eles vão juntos a um leilão de arte, e David pede a Jenny que dê os lances a fim de adquirirem uma tela a óleo de Edward Burne Jones (1833-1898), Tree of Forgiveness, que hoje se encontra, aliás, no Liverpool Museum. Jenny, radiante, arremata a tela, e David comenta que poucos anos antes seria possível comprar um pré-rafaelita por uma ninharia, mas que agora eles estavam cada vez mais valorizados.

Há duas informações importantes na cena do leilão, a primeira intrínseca: a tela de Burne Jones tematiza a lenda em torno de Demophon e Phyllis (Burne Jones, pré-rafaelita tardio, fez também uma obra justamente intitulada Demophon and Phyllis, guache sobre papel). Demophon, rei de Atenas e filho de Teseu, se casa com Phyllis, filha do rei da Trácia, Licurgo. No entanto, após certo tempo abandona a esposa, e Phyllis fica inconsolável. Como deixar de associar o destino da pobre Phyllis com o daquele da inexperiente Jenny, também abandonada por David quando descobre que ele era casado?


Tree of forgiveness, 1882

A segunda informação é extrínseca: nos anos 60 ocorre a valorização dos pré-rafaelitas, mas por que não seriam eles tão valorizados antes? Me interessa não a acuidade histórica sobre as oscilações dos valores de mercado da arte inglesa, mas o paralelo metafórico em torno da tumultuada carreira dos pré-rafaelitas.

A Pre-Raphaelite Brotherhood surge em 1848, propondo uma arte atenta às minúcias das superfícies reais do mundo, livre das idealizações herdadas de Rafael e de seus seguidores acadêmicos. A Irmandade também propunha uma temática fortemente ancorada em discussões éticas. O movimento foi recebido com agressividade e escárnio por muitos formadores de opinião, caso de Charles Dickens, que em 15 de junho de 1850 publica em Household Words o artigo Old Lamps for New Ones. Dickens ataca duramente os Pré-Rafaelitas, aos quais chama de “terrível Polícia que pretende dispersar todos os ofensores Pós-Rafaelitas”. Dickens prevê ainda a formação de outras inusitadas “Irmandades”:

Irmandade Pré-Newtoniana: para aqueles que se recusam a seguir as leis da gravitação.


Irmandade Pré-Galileu: para os que se recusam a proceder à revolução solar anual.

Irmandade Pré-Harvey (organizada por estudantes ligados ao Colégio Real de Cirurgiões): para os que “protestam contra a circulação do sangue”.


Irmandade Pré-Gower e Pré-Chaucer: organizada para a restauração do inglês arcaico, e para combater “todos os impostores posteriores, como uma pessoa de caráter duvidoso chamada SHAKESPEARE”.

Irmandade Pré-Laurentius: estabelecida para a abolição de todos os livros que não sejam manuscritos.

Irmandade Pré-Agincourt: visa expurgar da música “Mozart, Beethoven, Handel, e todos os outros com tais ridículas reputações”.

Irmandade Pré-Henrique-VII: luta pela extinção de todas as vantagens sociais obtidas na Inglaterra nos últimos quatrocentos anos.

O estrago de críticas como essa, em um primeiro momento, foi grande, como podemos ver no artigo Pre-Raphaelites in Caricature: “The choice of Paris: an Idyll”, de Florence Claxton, publicado por William E. Fredeman precisamente naquele momento de retomada do interesse pelos pré-rafaelitas, em 1960. O autor analisa com vagar a complexa iconologia da caricatura de Claxton, primeira mulher a criar gravuras em madeira para jornais, e que abandonou a carreira após o casamento. Uma das caricaturas reproduzidas no texto (sem autoria identificada) podemos ver abaixo.


Essa caricatura satiriza um dos quadros mais criticados do movimento pré-rafaelita, The awakening conscience, de William Holman Hunt (1827-1910), o único dos “irmãos” a se manter fiel ao estilo até o final da carreira. Se prestarmos muita atenção na caricatura poderemos perceber uma mulher apavorada, que está prestes a ser seduzida por um não tão galante cavaleiro. Vejamos agora o quadro original, de 1853: o rosto da senhorita prestes a ser “desencaminhada” não apresenta uma expressão muito clara, isso porque Hunt começou a atenuá-lo a pedido do comprador da obra, o rico industrial Thomas Fairbairn. Dito de outro modo, não vemos agora exatamente o que chocou os contemporâneos de Hunt: em um quarto, nas palavras de Ruskin, ardente defensor da obra, “comum, moderno, vulgar”, que tem o ar de “novidade fatal” e que, com seus papéis de parede e móveis produzidos em massa é minuciosamente representado, uma jovem, inicialmente seduzida pelo conforto do “materialismo moderno”, se dá conta de que está prestes a perder sua reputação para sempre.

The awakening conscience

A tela, da qual muito ri antes de entender do que se tratava (e parte de minha compreensão devo a David Peters Corbett e seu The world in paint: Modern Art and visuality in England 1848-1914), abriga uma triste história, o momento em que uma jovem se desilude, e pensando sobre isso me pego outra vez meditando sobre o filme protagonizado pela personagem que me fez começar a escrever esse texto. A auto-reflexiva e seduzida Jenny Miller, arrematadora de um quadro pré-rafaelita... Não, eu não riria dela.