quinta-feira, 29 de julho de 2010

As saias de Camille Claudel

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Eu também, como milhões de espectadores pelo mundo, passei ame interessar por Camille Claudel por causa de Isabelle Adjani, que a interpretou no cinema, em 1988. Isabelle foi ainda Adèle Hugo em outro filme, a bela filha de Victor Hugo que foge de casa e corre o mundo atrás do homem que amava obsessivamente, e acaba seus dias em um hospício. Olhando assim, à distância, as duas histórias parecem guardar uma certa semelhança, mas basta pesquisarmos um pouco mais para que as diferenças gritem. Guardo Adèle para uma próxima oportunidade, hoje ficaremos apenas com Camille.

Professores de história da arte têm, entre outras missões, a de despertar o interesse dos alunos por essas obras de outras épocas, às vezes ainda facilmente encantadoras, às vezes herméticas. Para cumprir minha função, em uma aula de história da arte do século XIX que deveria ser dada na disciplina de História da Arte II, em 2007, resolvi abordar exclusivamente as vidas e as obras desse casal que a mídia haveria de transformar em espetáculo (basta conferir a chamada de exposição que reproduzo aqui), Auguste Rodin e Camille Claudel.


Nessa época eu já não acreditava mais na versão da história que havia sido contada pelo filme, a de que a pobre Camille havia sido a passiva vítima do ególatra Rodin. Acabara de ler Camille Claudel: a life (2002), de Odile Ayral-Clause, a primeira biografia da artista a tratar em minúcia também o período final da vida, em que esteve internada em um asilo. Eu acabara de descobrir, portanto, que se havia algo que Camille jamais seria era “vítima”.

Camille mostrou vocação para a escultura muito cedo. Vivia no interior da França. Que fazer com uma bela menina com vocação para a escultura na segunda metade do século XIX? Camille teve sorte, seu pai mudou-se com a família para Paris, a fim de que ela pudesse continuar seus estudos de arte. A biografia de Ayral-Clause nos mostra uma série de detalhes curiosos sobre esse universo das jovens artistas em começo de carreira na França: Camille, ainda que politicamente conservadora (ela seria anti-Dreyfusard, como Rodin), admirava Louise Michel (1830-1905), a professora que se correspondia com Victor Hugo e que se tornou uma das maiores figuras políticas da Comuna de Paris – lutou nas barricadas vestida como soldado, e depois foi deportada para a Nova Caledônia. Mas Camille, e essa pequena observação me dá o que pensar, nunca pensou em usar calças. E para ela seria mais confortável, porque realizar esculturas com longos vestidos é ainda mais desgastante. Por outro lado, viver sempre de calças como Rosa Bonheur (1822-1899, a reconhecida pintora de cavalos) exigiria uma cansativa rotina de pedidos de autorizações especiais à Polícia de Paris.



Louise Michel e Rosa Bonheur

De fato não era esse tipo de liberdade que Camille almejava. Ela queria se equiparar aos homens no reconhecimento da carreira artística. Recusava-se a participar das exposições para mulheres escultoras, que começavam a ser organizadas. Estudou na Academia Colarossi, que aceitava homens e mulheres, permitindo que todos realizassem desenhos a partir de modelo nu (os desenhos de Camille, como podemos ver no retrato de sua amiga Florence Jeans, refletem, de modo muito contundente, um pensamento escultórico do espaço).
Retrato de Florence Jeans, 1886

Camille queria disputar com os homens no terreno deles: realizava o trabalho pesado em suas esculturas (polia com osso de carneiro algumas delas), procurava participar dos eventos oficiais do circuito “masculino”, tentava vender suas obras ao Estado (muitas vezes sem sucesso). Ela não podia aspirar ao Prix de Rome, então não concedido às mulheres, nem à École des Beaux-Arts (o próprio Rodin não conseguiu cursá-la). Camille viu em Rodin, aliás, não apenas um amante, mas alguém que poderia auxiliá-la no árduo caminho do reconhecimento público de seu trabalho.


Les Causeuses, 1897, e La Vague, 1897

O percurso, no entanto, talvez tenha se mostrado mais duro do que ela seria capaz de prever na juventude. A relação com Rodin se desgastou (ele não abandonou Rose, a sua companheira desde os tempos de pobreza), sua família se voltou contra ela, seu trabalho não lhe rendia grande lucro. Camille, nada passiva, reduziu o tamanho de suas obras (que dizer do encantador grupo Les causeuses, ou de La vague? Nunca vi nada parecido, essas pequenas cenas em pedras translúcidas deixam para trás toda a carga clássica de obras anteriores), para que não a acusassem de plagiar Rodin, e provocou o ex-amante quando esculpiu L’âge mur (uma fina peça de retórica escultórica: a jovem Camille implorando, o maduro Rodin dividido entre ela e a velha e assustadora esposa, que acaba por escolher – Rodin ficou furioso). Em 1900, na Exposição Universal de Paris, quão melancólico deve ter sido acompanhar o Pavilhão especial dedicado a Rodin e a ausência das obras de Camille, recusadas.

L'âge Mûr, 1902

A doença de Camille, como sabemos, se manifestou com cada vez mais força desde então. Tivesse nascido um pouco depois, uma década ou duas, apenas, e a escultora não teria tido tantos problemas por querer ascender nessa carreira usando saias. Tivesse nascido um pouco antes e talvez houvesse poupado o pedaço de papel, que hoje se encontra no Museu Rodin, de confissões tão desoladoras (tradução minha):

“Na verdade, eu teria preferido ter um trabalho mais interessante, que atraísse as pessoas ao invés de colocá-las a correr. Se eu ainda pudesse trocar de carreira, teria preferido isso. Teria feito melhor em comprar belos vestidos e belos chapéus que destacassem minhas qualidades naturais do que em me devotar a minha paixão por construções duvidosas e grupos algo proibidos. Essa desafortunada arte é feita para longas barbas e faces feias, e não para uma mulher de relativa boa aparência. Perdoe esses pensamentos amargos [...]: eles não irão atenuar os feios monstros que me enviam a esse caminho perigoso”.