segunda-feira, 28 de junho de 2010

De jacobina a girondina em três passos

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Primeiro Passo. Eu tinha dezoito anos quando cursei, no primeiro ano do curso de Artes Visuais, a disciplina Filosofia da Arte. Tínhamos aula na Arquitetura e para mim foi uma experiência encantadora, porque lemos Novalis, Mary Shelley e, principalmente, Rousseau, doses generosas de Rousseau (Discurso sobre a Ciência e as Artes, Discurso sobre a Desigualdade entre os Homens...). Um vizinho lá de Taquari já havia nos emprestado o Emílio ou da Educação. A professora alertou para o fato de que Rousseau era uma personalidade complicada, mas eu não liguei, tudo o que ele escrevia me parecia lindo. Antes disso eu já gostava da Revolução Francesa, e então Rousseau, e depois, quando lia sobre jacobinos e girondinos, eu comecei a me posicionar do lado dos jacobinos. Eu gostava de me engajar nas leituras, de algum lado haveria de ficar, e como poderia escolher algum que não fosse a esquerda?

Segundo Passo. Faz parte do linguajar comum dizermos que “não vemos o tempo passar”, forma de explicar a sensação de que o tempo passa rápido demais. Ainda que eu também diga isso, na prática não é bem verdade. Percebo em várias das minhas áreas de interesse o tempo passando e modificando várias convicções e preferências intelectuais. Hoje vemos o caso da minha relação imaginária com girondinos e jacobinos. Posso refazer o percurso e explicar o que mudou, e por qual motivo.

Quando estava pesquisando para minha tese, com um capítulo sobre Jane Austen, li mais do que de costume sobre escritoras inglesas do século XVIII. Foi nessa época que li A vindication of the rights of the women, de Mary Wollstonecraft (mãe de Mary Shelley, haverá uma postagem dedicada apenas às duas futuramente). Pois Wollstonecraft, sempre que podia, criticava muito Rousseau – ela não suportava a Nouvelle Heloïse e julgava as posições de Rousseau desfavoráveis às mulheres. Comecei a desconfiar. Me deparei também com a literatura antijacobina que toma de assalto a Inglaterra na década de 1790. Descobri que Edmund Burke, sim, o mesmo que formulara aquele lindo conceito do Sublime na metade do século XVIII, atacava duramente a Revolução, com argumentos à primeira vista razoáveis.

Bom, realmente as coisas não pararam por aí. Estive às voltas com os enciclopedistas no começo do ano passado, e mexi com muitos documentos de época, facilmente acessíveis agora através do site da Biblioteca Nacional da França. Marmontel criticava duramente Rousseau, e Rousseau era leitura de cabeceira dos jacobinos e de seu líder, Robespierre. Marmontel conta, em suas memórias, o comportamento destemperado de Rousseau com relação ao bem intencionado David Hume; muitos dos iluministas que se envolvem na Revolução como girondinos falam mal de Robespierre, que consideram populista e muitas vezes de pobre desempenho na tribuna. O que mais me incomoda é o tanto de antiintelectualismo que farejo, aqui e ali, entre muitos dos jacobinos – um comentário em alguma biografia, uma ou outra frase apanhada em um dos documentos da época, e ainda todos aqueles infames panfletos contra a família real da França, ou contra outros alvos igualmente visados. Eis que tudo isso me empurra, a cada dia, para o outro lado da Assembleia.

Mas eu ainda tinha dúvidas, talvez estivesse julgando mal. Talvez tudo fosse intriga dos inimigos contra os jacobinos, ainda que, cá entre nós, o Terror definitivamente não seja um bom cartão de visitas. Eu, como os girondinos, leitores de Voltaire, preferia que as crianças fossem educadas em parte na escola e em parte em casa – os jacobinos propunham um sistema “espartano”, no qual o Estado se encarregaria da educação completa das crianças, que não mais viveriam com seus próprios pais. Bom, e há também todas aquelas caricaturas antijacobinas (algumas mostro aqui), e o ensaio O ano II, de T. J. Clark, que mostra Marat e os jacobinos sob uma luz bem pouco dourada. Tudo isso é de confundir, como se vê, mas eu seguia na dúvida.

Terceiro Passo. O nome da minha gota d´água é Condorcet (1743-1794). Também li muito sobre ele no ano passado. Cientista político, filósofo e matemático, ele se opôs à morte de Luís XVI. Foi voto vencido, como sabemos, e não demoraria a ser considerado como inimigo da Revolução, durante o Terror. Conseguiu se esconder na casa de uma amiga por alguns meses, período no qual escreve sua obra-prima, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain (1793). Em março de 1794 é preso e, dois dias depois, encontrado morto na cela. Sophie de Grouchy (1764-1822), a viúva, juntamente com o amigo Pierre Daunou, irá se encarregar de publicar o manuscrito. Findo o Terror, o governo revolucionário compra toda a edição do livro, e li também o documento em que essa decisão é registrada. Tive a boa sensação de sentir que não sou um caso isolado ao folhear o meu novíssimo Cidadãos: uma crônica da Revolução Francesa, de Simon Schama, um crítico duro do Terror, que descreve a morte de Condorcet bem ao final de seu imenso texto.

Talvez possa parecer que é apenas uma brincadeira escolher ficar entre girondinos e jacobinos a essas alturas. O mundo real da revolução há muito já acabou, e o que resta agora são essas milhares de reconstituições individuais, puramente imaginárias. Mas eu não estou brincando. Esse mundo que agora apenas imaginamos já foi incrivelmente doloroso e real, e merece o mesmo respeito que Hans Castorp em A Montanha Mágica, de Thomas Mann, devota aos doentes e moribundos do sanatório no qual está internado. Por isso para mim especular sobre girondinos e jacobinos não é apenas uma brincadeira, como jogar cartas. Essa decisão já teve um peso de vida ou morte, e procuro sempre me lembrar disso quando, a cada dia em que envelheço um pouco mais, rumo em direção aos girondinos.