quarta-feira, 2 de junho de 2010

Meus alunos não leram a Bíblia!

quarta-feira, 2 de junho de 2010
Estou trabalhando com o símbolo na arte este semestre (em outras palavras, podemos dizer, sempre modestamente, que meu tema abrange Deus e sua criação) e, a fim de que os alunos tivessem a oportunidade de trilhar alguns dos velhos caminhos da arte, tive a idéia de pedir que desenhassem a partir de três “estímulos” diferentes: uma passagem do Gênesis, do Velho Testamento (que deveriam representar didaticamente, imaginando um grande público), uma alegoria contida na Iconologia (1603) de Cesare Rippa (que deveriam converter a alguma temática contemporânea) e uma das vidas de santos da Legenda Aurea (séc. XIII), de Jacopo da Varazze (que deveriam representar sem ironia – para complicar as coisas, escolhi apenas mártires dos primeiros tempos do Cristianismo). Pois muito bem, fizeram tudo direitinho, procuraram se controlar nas vidas dos santos e as histórias da Bíblia não foram necessariamente uma surpresa mas... perguntam daqui e perguntam dali, notei que estavam estranhando o vocabulário do Gênesis. Minha aluna V., por exemplo, muito riu (e eu com ela, depois) quando se deparou no meio da história em que Jacó luta com Deus, com a descrição da “juntura da coxa”. Conheciam as histórias, mas não o texto? Eu, não sem razão confundida com Poliana Moça quando pequena, pedi que levantassem o braço aqueles que nunca haviam lido a Bíblia. Na turma de mais de 30 alunos, quase todos levantaram os braços. “Me caíram os butiás do bolso”, como se diz. Já li muitos livros da Bíblia (não todos) e até aquele dia julgava os outros por mim, imaginava que esse era um conhecimento corriqueiro, que todo mundo, em algum momento, teria de se deparar com a Bíblia, independentemente de fé, porque ela é inescapável e está na própria base de nossa cultura. Bom, vi que eu estava redondamente enganada e que há sim como escapar, se não das histórias da Bíblia, ao menos do texto bíblico. Tive aula com outra turma na semana seguinte e resolvi tirar a teima: tínhamos de discutir, entre outros monumentos culturais, a Bíblia, e pedi outra vez que os que haviam lido a Bíblia erguessem os braços. Nessa alguns alunos (como A. L. e M., por exemplo) ergueram e demonstraram um bom conhecimento do texto, mas ainda assim eram minoria. Mais uma vez, a maioria ou havia lido muito pouco, ou absolutamente não havia lido a Bíblia.

Que argumentos eu poderia usar para mostrar como a leitura da Bíblia continua sendo relevante? Os espirituais seriam os mais óbvios e, em nossos dias, os mais propensos à rejeição. Há ainda o caminho da compreensão da Bíblia como obra de arte, cuja leitura pode nos dar muito prazer estético. Théophile Gautier e os irmãos Goncourt que me perdoem, mas não sou adepta da l’art pour l’art. Vou usar apenas um argumento muito breve e muito prático, tirado tanto da minha experiência quanto da linha de raciocínio do crítico canadense Northrop Frye: a Bíblia é uma chave-mestra cultural ou, tomando de empréstimo a Frye o título de seu livro, ela é o Código dos Códigos, ela estará lá, seja qual for a direção para a qual nos voltemos, de maneiras explícitas ou sutis, em autores estrangeiros como Shakespeare, Melville ou Dostoiévski (como entender O Idiota sem conhecer a Bíblia?), ou nacionais, como Machado de Assis (Esaú e Jacó) ou Murilo Rubião (todos os seus contos têm por epígrafes um versículo bíblico). Nas artes visuais não é diferente: não escapamos dela de modo algum nas obras criadas até o século XIX, e nos séculos XX e XXI há tantos artista que a problematizam ou persistentemente a tematizam que apenas teríamos a ganhar com o contato direto com seu texto.




Isso tudo está muito abstrato, não? Que tal um pequeno exemplo bem concreto? Vejamos Lucas 10, versículos 38 a 42: ali Jesus foi hospedado por Marta, que se mantinha muito atarefada, cuidando da casa. Sua irmã Maria, ao invés de ajudá-la, preferiu ouvir os ensinamentos de Jesus. Marta reclamou a Jesus e ele deu razão a Maria. Essa pequena história pode ter desdobramentos inusitados. Pieter Aertsen, o avô dos pintores de gênero, pintou pelo menos dois Cristo na casa de Marta e Maria entre 1560 e 1570, enfatizando, digamos assim, o clima de festa da cena. Uma das pinturas está aqui reproduzida. Pouquíssimo tempo mais tarde, Johannes Molanus, o chamado Vasari do Norte, em De Picturis et Imaginibus Sacris (Louvain 1571), critica amargamente a opção de Aertsen. A tradução indireta é minha, não percamos nenhuma palavra:

“Por exemplo, quando pintam Nosso Senhor recebendo para a ceia na casa de Marta e Maria, mostram o jovem João secretamente cochichando em um canto com Marta, e Pedro virando uma caneca de cerveja enquanto Ele fala com Maria. E mais uma vez, na ceia, mostram Marta sentada atrás de João com uma mão apoiada nas costas dele e a outra como se estivesse fazendo graça de Cristo, que está alheio a tudo isso. Também há Pedro quase bêbado ainda levando uma caneca de cerveja a seus lábios. E ainda que essas coisas sejam blasfemas e ímpias, elas ainda passam por humor”.

Séculos depois, em 1932, para sermos mais precisos, Karel Tchápek retomará essa história em seu pequeno livro Histórias Apócrifas. Em seu conto, intitulado justamente Marta e Maria, cuja epígrafe são os necessários versículos de Lucas, o foco narrativo está em Marta, a atarefada Marta, que busca consolo na improvável amiga, a Sra. Grünfeld: ela tanto trabalhou para oferecer todo o conforto a Jesus e ele apenas conversa com sua preguiçosa irmã, Maria. Isso lá é correto? O tom do conto é irônico, mas no final, em que Marta seca as lágrimas e retoma diligentemente suas tantas tarefas práticas (“Marta assoou o nariz com força e disse, fungando: - Bem, senhora Grünfeld, vamos lá; deixe eu trocar o seu nenê...”), é simplesmente tocante quando relembramos dos versículos de Lucas e nos damos conta de todo o potencial drama contido na escolha feita por Jesus, a cigarra Maria ao invés da formiga Marta.

A Bíblia, pois. É mesmo um livro muito velho e podemos, sim, passar sem ele. De todo modo, se tivermos o desprendimento de lê-lo, uma pequena parte que seja, enxergaremos um pouco melhor e um pouco mais longe. Ou pelo menos essa é a minha experiência.