sábado, 5 de junho de 2010

Loutherbourg e o cinema “à corda”

sábado, 5 de junho de 2010

Como eu já havia mencionado em outra postagem (Becoming Popular...), o ator shakespeariano David Garrick morreu em 1779. Em seus últimos anos de palco ele contou com a inestimável ajuda de Philippe-Jacques de Loutherbourg (1740-1812), pintor suíço radicado na Inglaterra que desde 1771, além de se dedicar à criação de paisagens (seu pai também pintava, era miniaturista), inventava ainda engenhocas mecânicas na tentativa de dar vida ao que parecia apenas pintura. Melhor do que “dar vida”, eu deveria escrever “tornar real”. Estava em voga a busca por paisagens exuberantes, as pessoas ansiavam perder o fôlego diante da natureza, o que se fazia sentir com especial força na Suíça. Muitos eram os viajantes que buscavam nos Alpes esses sentimentos vertiginosos. Alguns estavam preparados virtualmente para tal busca por terem se alimentado com pinturas de paisagens, caso de Johann Ludwig Aberli, gravador especializado em vistas da Suíça, que foi aos Alpes em 1774: “Em nossas viagens às vezes ocorria que todos nós gritávamos ao mesmo tempo: Salvator Rosa! Poussin! Saveri! Ruisdael! Ou Claude (Lorrain)!, conforme os temas diante de nossos olhos nos lembrassem a maneira e escolha de um ou outro dos mestres nomeados” (tradução minha). Para ilustrar esse momento particular da relação imaginária com as paisagens virtuais e reais, coloco aqui uma litografia aquarelada intitulada Vue de la source de l’Arveron, de Carl Ludwig Hackert (1740-1796), outro artista suíço apaixonado pelos Alpes, e que nasceu no mesmo ano de Loutherbourg.

Tornemos, pois, ao próprio Loutherbourg. Esse precoce artista da iluminação (sua arte consistia justamente em iluminar as pinturas, feitas em tecidos transparentes, de modo que suas cores parecessem acompanhar a passagem da luz do dia) foi descoberto por Garrick, que o contratou para cuidar do cenário de suas peças. Entre outras providências, Loutherbourg cuidou para que os trajes usados pelos atores fossem historicamente corretos. O palco assim preparado causava grande impacto junto ao público. Macbeth iluminado com uma “luz misteriosa”, fantasmas de luz, ambientes sombrios nos quais focos e luz surgiam em momentos estratégicos da cena, tudo isso encantou aqueles que, desde pelo menos os escritos de Edmund Burke
(A philosophical inquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful, de 1757) aspiravam ao sublime. Esse mundo noturno fantasmagoricamente iluminado irá repercutir intensamente nas pinturas dos membros da jovem Royal Academy (em especial nas obras de Fuseli).

Bom, repito que Garrick deixa os palcos, e morre em 1779. Seus sucessores no negócio fizeram uma tentativa de manter Loutherbourg como cenógrafo das peças, mas a proposta foi realmente pouco atraente: metade do valor que recebia de Garrick, pela mesma quantidade de trabalho. Loutherbourg teve outra idéia, abrir o próprio espetáculo, recorrendo ao que de mais moderno havia em termos de iluminação na época, e também a outros efeitos especiais ainda pouco explorados. Surge assim, em Londres, no ano de 1782, o Eidophusikon (“imagem da natureza”). O sucesso não poderia ter sido maior. O público, conduzido por esse “artista que deu movimento e realidade às cenas” (palavras de Ephrain Hardcastle, logo trataremos dele), se via em meio, por exemplo, a uma tempestade que parecia real: podiam ouvir os trovões (Loutherbourg acionava mecanismos que tangiam serrotes e tambores, a fim de obter as sonoridades desejadas), podiam observar ondas e o barco em movimento (acionados por outra das invenções de Loutherbourg, mecanismo composto de roldanas e cordas) e ainda acompanhar, no cenário, os efeitos da iluminação indireta das novíssimas lâmpadas de Argand (lembremos que elas haviam sido patenteadas em 1780), colocadas atrás dos panos transparentes pintados. As luzes das lâmpadas também eram modificadas com a adição de lentes de vidro coloridas, que faziam as vezes de filtros. Essa era, em suma, uma experiência total, capaz de envolver o conjunto de nossos sentidos, que atendia plenamente as expectativas românticas de imersão em uma realidade ao mesmo tempo mais nítida, mais intensa e mais profunda. Depois viriam, por essa mesma rota da experiência sublime total, os dioramas, os panoramas, o cinema.

O Eidophusikon e uma cena de Pandemonium
Aquarela de Edward Francis Burney

No meio artístico e intelectual vários eram os fãs do espetáculo: Joshua Reynolds, presidente da Royal Academy, e ainda os paisagistas, respectivamente em final e começo de carreira, Gainsborough e Turner. Tal admiração não bastou, porém, para impedir que o Eidophusikon tivesse de fechar suas portas em 1785. Certamente se tratava de um espetáculo muito cansativo para Loutherbourg – todos os efeitos precisavam ser acionados por ele, o que exigia um esforço atlético. Mas ao que consta o motivo do fechamento foi mais corriqueiro, mais banal: não havia público suficiente para custear o espetáculo, bastante dispensioso devido à iluminação de ponta utilizada. Loutherbourg continuou pintando, como podemos ver em suas telas Derrota da Armada Espanhola, 8 de agosto de 1588 (1796) e Uma avalanche (1803), e a sua história chegou até nós em grande medida através do relato de Ephrain Hardcastle, que publicou em 1821 suas memórias, Wine and Walnuts; or, after Dinner Chit-Chat, em dois volumes.


Derrota da Armada Espanhola



Uma avalanche

Uma última observação sobre Hardcastle: há uma série de dúvidas quanto à precisão das informações que apresenta nas memórias. Em primeiro lugar, seu nome verdadeiro é William Henry Pyne (1769-1843), um ilustrador e escritor inglês, autor de obras como The world in miniature, de onde tiro a litografia que fez de um bote salva-vidas. Teria mesmo assistido ele ao espetáculo de Loutherbourg, na adolescência? Além disso, vários dos “fatos” mencionados em suas memórias ele não poderia ter presenciado, pois alguns são até anteriores a seu nascimento. De todo modo, se não viveu, fato é que conviveu com várias figuras que podem ter lhe contado anedotas e histórias desse período. Em 1808 começa a escrever The Costumes of Great Britain, um empreendimento do editor de origem alemã Rudolph Ackermann (1764-1834), ilustrado por Thomas Rowlandson (1756-1827), responsável pelas figuras, e Auguste Charles Pugin (1762-1832), responsável pelos elementos de arquitetura. Rowlandson, por exemplo, assumido epicurista, conhecia a vida artística de Londres em suas múltiplas dimensões, das mais eruditas às mais boêmias. Como saber se não foi uma das fontes do anedotário de Hardcastle/Pyne? Independentemente do grau de precisão de Pyne, fiquemos tranquilos: Loutherbourg e o Eidophusikon não são, de modo algum, criações ficcionais.