sábado, 12 de junho de 2010

A história se repete: jovens rebeldes dos anos 1860 e 1960

sábado, 12 de junho de 2010

Podemos ver na foto que reproduzo acima alguns anarco-situacionistas instalando uma cópia de uma estátua de Charles Fourier (1772-1837) na Place Clichy, em Paris. Eles podem ser considerados como ícones dos jovens rebeldes dos anos 1960, pois integravam um grupo marxista criado na França em 1957, a Internacional Situacionista, que apresentava Guy Debord (1931-1994) como porta-voz e que teria fundamental importância nos tão conhecidos eventos de maio de 1968. Mas prestemos atenção em um detalhe, também ele emblemático: de quem era mesmo a estátua que instalavam? De Fourier, um socialista utópico francês que começa a publicar suas teorias acerca de uma sociedade ideal em 1808. Jovens rebeldes dos anos 1960 cultuando uma figura do século XIX, não é curioso? Na verdade, rigorosamente falando, não, se cometermos aqui um pequeno truísmo: Marx também é do mesmo século.

De todo modo, insistamos nesse ponto, na relação intelectual entre velhas e novas gerações. Timothy James Clark, o historiador da arte hoje tão conhecido pelos brasileiros, uma vez que várias de suas obras foram traduzidas para o português, também foi jovem nos anos sessenta. E jovem politicamente engajado: nascido em 1943, em 1966, aos 23 anos, entra para o braço inglês da Internacional Situacionista. Em maio de 1968 Clark estava na França, coletando material para sua pesquisa de doutorado, que renderia dois livros bombásticos, responsáveis pelo início de sua fama como historiador de arte, The Absolute Bourgeois: Artists and Politics in France, 1848-1851 e Image of the People: Gustav Courbet and the Second French Republic, 1848-1851 (infelizmente ainda não traduzidos para o português). Clark faz vaga alusão a esse contexto político no Prefácio de Image of the People, mas seu texto é mais explícito: quando acompanhamos sua análise da atuação e da obra do jovem pintor realista Courbet, engajado na Revolução de 1848 (e que mais tarde se engajaria também na Comuna de Paris), torna-se evidente que o jovem intelectual esquerdista dos anos 60 deixa um pouco de si em seu objeto de estudo, e cria uma espécie de ligação metafórica e subliminar entre esses dois apaixonados momentos políticos. Mas Clark está naquele período sintonizado com os jovens rebeldes das décadas de 1840 e 1850, e eu, simplesmente talvez pelo gosto de detectar padrões, essa garantia formal da beleza do pensamento, irei me deter ora em diante nos jovens rebeldes da década de 1860, os que integram minha modesta coleção, cujas semelhanças com aqueles seus famosos sucessores já algumas vezes me deram o que pensar.

Angelo Agostini (1843-1910) não costuma ser apresentado como rebelde, mas consideremos fatos, e não rótulos. Criado em Paris, ele chega ao Brasil em 1859, acompanhando a mãe, Raquel Agostini, uma cantora lírica. Com apenas 21 anos cria o primeiro periódico em que irá veicular suas ilustrações e caricaturas, O Diabo Coxo (1864-1865) – impossível não sentir no título o eco do irreverente Le Diable à Paris, publicado em Paris na década de 1840 e depois reeditado na década de 1860, que também dedicava generoso espaço às caricaturas. Aos 24, está às voltas com novo periódico, O Cabrião (1866-1867), mais de uma vez empastelado pelos incomodados com as críticas sardônicas, em geral de fundo político, veiculadas nas caricaturas. Em 30 de janeiro de 1869 Agostini edita o primeiro capítulo desse personagem tipicamente brasileiro, o Nhô Quim, cuja graça vem do espanto que sente diante das inovações que chegam ao Brasil com velocidade cada vez maior – aqui podemos ver como se sai diante desse grande símbolo do progresso industrial, o trem.


A rebeldia dos jovens dos anos sessenta pode não ser política e exteriorizada. Ela pode ser interior, filosófica. William James (1842-1910) nasceu apenas um ano antes de Agostini, e em 1 de abril de 1865 embarcou em Nova York rumo ao Brasil aos 23 anos, junto com a Expedição Thayer, liderada por Louis Agassiz e sua esposa, Elizabeth. James estava no segundo ano da Ano da Harvard University’s Medical School, pagou a viagem do próprio bolso e apresentou-se como coletor voluntário. James não era um tipo exatamente atlético, e decidir empreender uma grande viagem a um local tido como “selvagem” certamente exigiu um notável espírito de aventura. Essa viagem, que quase lhe custou a vida, pois contraiu no Brasil varíola, foi registrada em seus diários e cartas (como se pode conferir na excelente edição bilíngüe organizada por Maria Helena P. T. Machado, Brazil through the eyes of William James: Letters, Diaries and Drawings 1865-1866), e teve impacto na mudança de rumo em sua carreira e na posterior formulação de sua filosofia (ele é o pai do pluralismo – quem já não viu essa palavra empregada em nossos dias, especialmente nos textos sobre arte?), impacto que ainda está por ser dimensionado.


Em Paris, outras rebeldias, agora de gênero. Berthe Morisot (1841-1895) aplicou sua juventude à pintura, e não àquela de temas necessariamente femininos. Jovens pintoras começam a surgir em quantidade cada vez maior, e essa informação é digna de nota, em geral contando com o suporte moral e financeiro de suas famílias. As palavras do professor de pintura de Morisot, em carta dirigida à mãe da artista, resumem bem o impasse que se fazia sentir na escolha de semelhante carreira por parte de uma mulher:

"Considerando o caráter de suas filhas, meu ensinamento não irá dotá-las de habilidades menores para desenho de salão; elas irão se tornar pintoras. Você percebe o que isso significa? Para a classe alta a que você pertence, isso será revolucionário. Eu deveria quase dizer catastrófico. Você está certa de que não amaldiçoará o dia em que a arte, tendo sido admitida em sua casa, agora tão respeitável e pacífica, se tornará o único árbitro do destino de duas de suas filhas?"

Finalmente, passemos à Rússia. Difícil encontrar um lugar mais favorável à nossa busca por jovens rebeldes dos anos 1860. Vou me restringir a duas irmãs. Dostoiévski (por sua vez um jovem rebelde dos anos 1840, que como todos sabem pagou muito caro por sua rebeldia ao ser enviado para a Sibéria – experiência relatada em Recordações da Casa dos Mortos) se apaixonou em 1865 pela mais velha delas, Anna Korvin-Krukovsky (1843-1887), escritora, filha de um general, que abraçou a filosofia dos “Homens Novos”, os raznochintsy, ou niilistas, defensores da razão e da ciência contra o idealismo romântico – na França, mal e mal podemos considerar como equivalente a geração realista de Courbet e Champfleury, um pouco anterior. Pois Anna, algum tempo após dispensar Dostoiévski (que a imortalizará como a impetuosa e ao mesmo tempo impertinente Aglaia de O Idiota), irá se casar com um radical francês chamado Victor Jaclard (1840-1903), amigo de Marx – Anna (agora Anna Jaclard) chegou a traduzir partes de O Capital para o russo. Ambos participarão ativamente da Comuna de Paris e terão de partir para o exílio.

A irmã mais nova, Sophia Korvin-Krukovsky (1850-1891), era apaixonada por Dostoiévski que, como vimos, tinha olhos apenas para Anna. Pois foi Sophia que se tornou a personagem mais famosa de seu meio: vencendo a resistência da família, conseguiu proporcionar a si mesma uma educação científica muito rara para a época, e se tornou a primeira mulher a obter doutorado em Matemática na Rússia. Casou-se com o editor niilista Vladimir Onifreivich Kovalevsky e defendeu com insistência o acesso das mulheres ao ensino superior.

Olhando para essas fotos gastas, antigas, em preto e branco, posadas, de perfil, é difícil imaginar qualquer tipo de rebeldia nesses jovens de 1860. Mas acabamos de notar que a rebeldia está lá – eis mais um exemplo de como a imagem pode ser limitada quando se trata de mostrar não o corpo, mas o pensamento. Tampouco conseguimos ver nas imagens a infantilidade e inconseqüência de que essa geração será por alguns acusada (Dostoiévski está entre os acusadores, bem entendido). Os jovens de 1960 receberão críticas semelhantes, mas bem colocados academicamente (cem anos, afinal, fazem alguma diferença, os de 1960 aparentemente obtiveram prestígio mais rapidamente e com mais facilidade do que os de 1860), terão a oportunidade de a elas responder. É o que fazem o há pouco citado T. J. Clark e Donald Nicholson-Smith em um artigo publicado na October n. 79 (1997), intitulado Why art can’t kill the Situationist International [Por que a arte não pode matar a Internacional Situacionista], onde recusam veementemente que se aplique ao movimento do qual participaram na juventude o rótulo de “esquerdismo infantil”.