sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ruskin, algoz dos Carracci

sexta-feira, 18 de junho de 2010

No ano de 1603, na cidade de Bolonha, é publicado às expensas “Dagli Incaminati, Academici dei disegno”, um livreto intitulado Il funerale d’Agostin Carraccio, contendo os projetos para o monumento funerário em homenagem a Agostino Carracci (1557-1602) – alguns dos desenhos ilustrativos, parte do planejamento da iconografia que deveria ser utilizada na obra, podem ser vistos aqui – e também a Oratione de Lutio Faberio, Academico Gelato in morte d’Agostin Carraccio. É nesta última, o elogio fúnebre formulado pelo acadêmico Faberio, que irei a princípio me deter. Faberio nos mostra, sempre com o tom de admiração que convém à ocasião em linhas gerais, os mais importantes momentos da carreira de Agostino: seus estudos iniciais e o amor pelo desenho, as aulas que teve com Prospero Fontana (1512-1597), pai da célebre pintora Lavinia Fontana (1552-1614), o aprendizado da escultura, o amor pelas mais variadas ciências, pela matemática, filosofia e astrologia, e também pela geografia, o talento musical, com o qual animava os momentos de recreação junto aos amigos. Em 1582, o jovem Agostino, então com 25 anos, funda, juntamente com o irmão Annibale (1560-1609) e com o primo Lodovico (1555-1619), uma escola de desenho que seria conhecida como Academia degli desiderosi [Academia dos Desejosos], devido à renomada curiosidade artística e intelectual desse “triunvirato”. Tal Academia mais tarde se converteria na Academia dagli Incaminati, a mesma que, como vimos acima, promove as homenagens póstumas a Agostino.


Assim como seus outros companheiros de Academia (entre eles Annibale, seu irmão, que irá se tornar o mais famoso dos acadêmicos), Agostino adotava a prática de pintar a partir da observação direta da natureza, algo que ainda não era tão facilmente aceito. Na época predominava a noção de que o verdadeiro artista deveria ser capaz de desenhar de memória, e veremos, aliás, essa disputa entre observação e memória avançar o século XIX. Essa prevenção esclarece a necessidade sentida por Faberio de justificar o fato de Agostino ser um “imitador”:

“uma coisa apenas me bastará para o argumento do grande engenho do Carracci, isto é, que para ter sido julgado em sua honrosa profissão judicioso imitador das coisas artificiais e naturais, mereceu o nome de grande e admirável pintor. Não sem cuidado o chamo de judicioso imitador: porque ele, considerando que a Pintura é objeto dileto do olho humano, aplicava sempre a imitação do melhor modo, guardando-se do erro de muitos que amam sobretudo a semelhança [...]” (tradução minha).


Podemos olhar para algumas obras de Agostino Carracci a fim de compreendermos melhor, na prática, o alcance desse conceito de imitação: na folha de estudos, nos esboços de paisagem e de animais como o cavalo, na pintura que retrata servos e cães vemos os resultados do desenho de observação, mediado, no entanto, pelo juízo do artista, que segue com a liberdade de atenuar aspectos considerados inadequados, ou reforçar pontos que julgue merecer destaque, a bem da composição, conforme insistirá, em sua Oração, o próprio Faberio.


Pois Agostino, além de pintor, amante das ciências, da filosofia e tudo o mais que já vimos, também compunha poemas. Em um deles, afirma que “aquele que quiser ser um bom pintor deve adquirir o desenho da forma, a sombra e a ação veneziana, e as dignas cores da Lombardia; a terrível maneira de Michelangelo, a verdade natural de Ticiano, etc.” (tradução minha).



Bom, mal sabia ele o tipo de fama que esse trecho ainda haveria de lhe trazer. Ao invés de imitador/observador da natureza, ele e seus companheiros de academia serão rapidamente classificados, já por alguns contemporâneos, como aqueles que imitam a maneira dos velhos mestres, tomando em cada um deles alguns traços estilísticos. Em outras palavras, desprovidas de estilo próprio marcante, suas obras seriam caracterizadas como uma verdadeira colcha de citações de artistas do passado. Tal interpretação resultaria no nascimento, no âmbito da crítica e da história da arte, do rótulo “Escola Eclética de Bolonha”.

De todo modo, a fama dos pintores de Bolonha continuará forte até o século XVIII. Mas no século XIX surgem algumas pedras no caminho. Uma delas atende pelo nome de John Ruskin (1819-1900), o maior crítico de arte inglês do período vitoriano. Pois Ruskin, desde a juventude, será um dos mais ardentes defensores da retomada do gótico nas artes. Apoiará os Pré-Rafaelitas, lerá Auguste Pugin, e chegará mesmo a se converter ao catolicismo. Pois Ruskin tinha horror à Escola Eclética de Bolonha, o que fica manifesto em alguns trechos de sua vasta obra: no segundo volume de Modern Painters (1845), em que menciona pejorativamente o “ecletismo de Guido e dos Carracci”, e na resenha ao livro de Lord Lindsay, The history of Christian art (1847), em que a certa altura escreve, também depreciativamente, “Isso é mero ecletismo bolonhês, em outras palavras…”. Em primeiro lugar, Ruskin pretende elaborar uma abordagem científica da paisagem e da observação e representação da natureza, e não consegue ver nada além de maneirismo e ecletismo nas paisagens dos Carracci. Em segundo lugar, para Ruskin a grande arte é a arte religiosa, e a dimensão profana de parte das obras dos Carracci (Agostino ficou conhecido pelas gravuras eróticas, como essa que reproduzo aqui), conhecida de todos, dificilmente o agradaria.

Ruskin, com essas rápidas menções, causou grandes danos à fama dos Carracci e dos bolonheses, e também a pintores posteriores, como Salvator Rosa (1615-1673), que também execrava. Ruskin foi uma das figuras-chave para a formação do cânone das grandes obras que consumimos até hoje, seja em livros didáticos, seja em revistas e material de divulgação. Ele tem algo a ver com o fato de ouvirmos falar mais até dos pré-rafaelitas do que dos Carracci.

Mais uma vez, contudo, justiça seja feita: no século XX paulatinamente os Carracci tornaram a ser alvos privilegiados dos estudos (pelo menos dos eruditos) de história da arte, na mesma medida em que a crítica de Ruskin passou a ser relativizada. Já em 1906 Camillo Von Klenze, em The growth of interest in the early italian marsters from Tischbein to Ruskin, critica a arbitrariedade do julgamento de Ruskin no que se refere aos Bolonheses, e em 1953 Denis Mahon, em um artigo publicado pelo jornal do Instituto Warburg, Ecleticism and the Carracci: further reflections on the validity of a label, irá procurar afastar de vez o rótulo de ecléticos, comumente aplicado aos Carracci, através do exemplo de Annibale, segundo ele menos bem-sucedido do que Caravaggio no estabelecimento de um marketing pessoal que tornasse evidente, a seus contemporâneos, as características únicas de seu estilo artístico – a tradução novamente é minha: “O que o próprio Annibale desejava era ser julgado por si mesmo, sem referência aos velhos mestres”.