segunda-feira, 31 de maio de 2010

Becoming popular: Shakespeare Gallery

segunda-feira, 31 de maio de 2010
Era primeiro de maio de 1789 e poucos poderiam imaginar na Inglaterra que a Revolução Francesa iria estourar dentro de pouco mais de dois meses. No próprio país, por outro lado, uma pequena revolução no domínio das artes já estava ocorrendo. Neste dia John Boydell (1720-1804) coloca o ponto final no Prefácio que elaborou para A Catalogue of the pictures, etc. in the Shakspeare Gallery, Pall-Mall, que seria publicado em Londres em 1793. Em novembro de 1786 Boydell teve a ideia de criar a Shakespeare Gallery, que envolveria a publicação das peças completas de Shakespeare em 8 volumes, a exposição de grandes pinturas (no mínimo 72) com cenas de peças do dramaturgo em uma galeria e a elaboração de duas série de gravuras a partir das pinturas, uma em grande formato, para colecionadores, e uma em pequeno formato, para acompanhar a nova edição das peças. Boydell pretendia aproveitar o crescimento industrial da Inglaterra e transformar a arte em negócio lucrativo – daí a ênfase em um meio reprodutível como a gravura, sobre o qual Boydell projetava grandes expectativas. Boydell na verdade é mais um dos que procura continuar a bem-sucedida trilha aberta por William Hogarth (1697-1764) décadas antes, a elaboração de pinturas e sua reprodução em gravuras para grande público. Mas em pelo menos um ponto Boydell procurava se distanciar de Hogarth: a temática.

Se Hogarth fez sucesso com suas críticas aos costumes e com seu constante recurso ao humor, Boydell abraça a causa da também recém-criada Royal Academy, ou seja, defende o estabelecimento e a consolidação da pintura histórica na Inglaterra. Onde poderiam os pintores históricos ingleses procurar por inspiração para suas obras? Deixemos que o próprio Boydell nos explique (traduções minhas ora em diante):

“Ainda que eu acredite que vá ser facilmente admitido que nenhum assunto parece mais apropriado para formar uma Escola Inglesa de Pintura Histórica como as cenas do imortal Shakespeare, ainda assim deve ser sempre relembrado que ele possui poderes que nenhuma pena pode alcançar, pois tal era a força de sua imaginação criativa que ainda que ele frequentemente vá além da natureza, ainda continua a ser natural, e parece apenas fazer o que a natureza teria feito se ultrapassasse seus limites usuais. Não deve então ser esperado que a arte do Pintor jamais possa igualar a sublimidade de nosso poeta”.

A idéia de escolher Shakespeare tem seus fortes motivos nesse período. Desde o começo do século XVIII as obras de Shakespeare vinham merecendo reedições cada vez mais cuidadosas. Na metade do século o ator David Garrick (1717-1779) causa furor com suas interpretações de personagens de Shakespeare. Hogarth o imortalizou como Richard III em 1745, em uma de suas telas, e Jacques-Louis David (1748-1825) chegou a ter a oportunidade de assistir a uma de suas interpretações em Paris, ficando profundamente impressionado. O teatro shakespeariano de Garrick, sua habilidosa exploração da pantomima impactavam os pintores da época. Além disso, o grande crítico Samuel Johnson também se ocupou de Shakespeare, encarregando-se de uma edição anotada do conjunto das peças. No Prefácio que escreve, então, para The Plays of William Shakespeare (1765), podemos identificar a provável fonte para os argumentos usados por Boydell em seu próprio prefácio:

“Outros escritores disfarçam as mais naturais paixões e os mais frequentes incidentes, de modo que aquele que os contempla no livro não vai conhecê-los no mundo; Shakespeare aproxima o remoto e familiariza o maravilhoso; o evento que ele representa não irá acontecer, mas se fosse possível, seus efeitos seriam tais como ele indicou; e pode ser dito que ele não apenas mostra a natureza humana tal como ela age sob exigências reais, mas como poderia ser encontrada em provações às quais não pode ser exposta”.

A iniciativa de Boylle teve, na prática, uma importância difícil de estimar para a arte inglesa que hoje chamamos de romântica. Colaboraram com o projeto os grandes pintores da época na Inglaterra, como Joshua Reynolds (1723-1792), Benjamin West (1738-1820) e Henry Fuseli (1741-1825), o tradutor de Winckelmann para o inglês. Os quadros de Fuseli estão entre meus preferidos, como este que mostra Macbeth com as três assustadoras bruxas, a pintura n. XIX do catálogo de Boydell, referente ao Ato I, Cena III da peça. Essa iconografia sombria de Shakespeare rendeu frutos ao longo do século XIX, e continua a render hoje. Quantos filmes não podemos assistir nesse “tom”?

Quanto ao negócio de Boydell, que nos melhores momentos chegou a contar com 1300 assinantes, ele naufragou em 1803, mergulhado em dívidas. O modelo proposto pela Shakespeare Gallery, no entanto, continuou a ser imitado. Tão cedo quanto 1792 já havia uma Shakespeare Gallery em Dublin, para a qual também colaborou com obras Fuseli – ele, diga-se de passagem, também por algum tempo tentou uma galeria própria, a Milton Gallery. Houve ainda um Historical Gallery, a Indian Gallery de Catlin, no século XIX, que veremos em outra oportunidade, e muitas outras variações da Shakespeare Gallery sob a forma de livro, como uma Shakespeare Gallery publicada apenas com ilustrações de personagens femininas das peças do dramaturgo (ao lado escolhi, entre as tantas possibilidades disponíveis, Ofélia) e a Gallery to Shakespeare’s Dramatic Works publicada em segunda edição em Nova York, em 1853, de autoria de Moritz Retzsch (1779-1857) – um evidente emulador do traço limpo do escultor e desenhista John Flaxman (1755-1826), que por sua vez buscava inspiração na decoração da cerâmica da Grécia antiga. Dessa eu escolhi, também de Hamlet, a cena da representação teatral, aqui construída de um modo tão tranqüilo quanto o de um desenho de colorir.