terça-feira, 15 de junho de 2010

Hipátia de Alexandria e seus fãs

terça-feira, 15 de junho de 2010
Hipátia segundo Rafael, Escola de Atenas, 1509-1510

Neste semestre, em História da Cultura I, um de nossos temas foi Hipátia de Alexandria. Tomei conhecimento de sua impressionante história lendo Um ofício perigoso, de Luciano Canfora. O capítulo que dá nome ao livro é justamente sobre ela. A Hipátia de Canfora tem tudo para arrebatar as imaginações dos amantes da cultura e do conhecimento: bonita e brilhante, professora na escola neoplatônica de Alexandria, amiga de Orestes, tolerante com relação aos pagãos e prefeito da cidade, virtuosa, perita em matemática e astronomia, inventora do astrolábio (aqui não posso deixar de pensar, também de modo romanesco, que Heloísa, ao batizar de Astrolábio seu filho com Abelardo, tinha em mente a filósofa alexandrina), filha de Téon de Alexandria, provavelmente o último intelectual ligado ao famoso Museum. Assim como me interessou, conclui que sua história poderia também interessar aos alunos. Há ainda o apaixonante componente melodramático da trama: Orestes, o prefeito, tinha por inimigo São Cirilo que, julgando culpa de Hipátia tal inimizade, teria enviado um grupo de fanáticos monges do deserto, os parabolanos, atrás da filósofa, que terminou sendo por eles cruelmente linchada a golpes de cacos de tijolos ou pedaços de conchas (os relatos divergem), até ter o corpo todo feito em pedaços e depois queimado. Canfora recorre às fontes disponíveis, que são bem poucas: a História Eclesiástica de Sócrates o Escolástico, a Vida de Isidoro de Damáscio, um extrato da História Eclesiástica de Filostórgio, preservada na Biblioteca do patriarca Fócio. Desses foram contemporâneos dos fatos Sócrates e Filostórgio, e Canfora cita também um texto bem mais recente e amplamente conhecido (nem que seja de oitiva): a History of decline and fall of Roman Empire, de Edward Gibbon (1776), que igualmente culpa Cirilo pelo assassinato.

Decidi investigar um pouco mais. Trabalho com literatura, logo reconheço a encantadora beleza das tramas “redondas” do melodrama, baseadas no esquema, popular depois de Richardson, da virtude perseguida pelo vício. Mas, por outro lado, também trabalho com história, o que me deixa sempre com a pulga atrás da orelha, porque essas formas “nocionais”, perfeitamente redondas não são facilmente encontradas na natureza, tampouco nos “eventos históricos”. Em poucas palavras, o que fiz? Resolvi ler um tanto mais sobre Hipátia. Adianto que a tarefa é hercúlea, porque muito se escreveu sobre ela, especialmente a partir do XVIII, então fiz uma pequena seleção. Vejamos, agora, que imagem de Hipátia surgirá dessas novas leituras.

Descobri um texto muito curioso do começo do século XVIII (não sei a data precisa, tenho a cópia de uma edição de 1720), chamado Hipátia, ou a história da mais bela, virtuosa, erudita, e em todos os sentidos brilhante Dama, que foi feita em pedaços pelo Clero de Alexandria, para gratificar o orgulho, emulação e crueldade de seu arcebispo, comumente mas imerecidamente chamado de São Cirilo. O autor de tal bombástico título é John Toland (1670-1722), um livre-pensador irlandês, influenciado por Locke, que defendia várias ideias esclarecidas em sua época e que atacava sistematicamente a religião, como pouco depois também fariam iluministas como Voltaire. Pois Toland afirma que Hipátia era instruída nas ciências mais difíceis, segundo o senso comum destinadas apenas à capacidade intelectual dos homens, e que tal noção não passa, na verdade, de um “prejuízo vulgar, o vasto número de Damas que em cada época se distinguiram por suas profissões ou performances no Estudo, oferece um argumento incontestável” (tradução minha). Condena também o clero alexandrino por sua morte, e aproveita para ressaltar que a corrupção e ignorância do clero continuavam fortes, por exemplo, na Inglaterra de seus dias. Toland não ficou sem resposta. Thomas Lewis reagiu, em 1721, com A História de Hipátia, a mais despudorada professora de Alexandria: assassinada e reduzida a pedaços pelo populacho, em defesa de São Cirilo e do Clero Alexandrino. Thomas Lewis, como Toland, também consultou as fontes, e descobriu no Suda (a famosa enciclopédia medieval do século X) um episódio que, segundo ele, confirmaria o mau caráter da filósofa. É a seguinte a história que nos conta: cortejada por um aluno,

“sem tentar argumentar com ele como uma [filósofa] platônica, recorreu a um estratagema para por fim à corte que acredito que teria ruborizado a mais comum prostituta de Veneza [...]. Tal era a modéstia, tal era a Virtude de Madame Hipátia” (tradução minha).

Thomas Lewis não ousou explicitar que estratagema era esse, mas aqui não teremos tantos pudores: Hipátia teria tirado os panos que usava para conter o sangue menstrual e os mostrado ao perplexo estudante, a fim de deixar evidente o quão impuros eram esses contatos carnais que o jovem pretendia levar a cabo. Lewis se chocou com semelhante “metáfora”.

No século XIX, o romance mais famoso sobre Hipátia é o de Charles Kingsley (1819-1875), Hypatia (1852-1853), que transforma São Cirilo em uma arquimaquiavélica figura do mal, mas que procura, como bom produto vitoriano, atenuar o paganismo da heroína, através do envolvimento imaginário entre ela e um cristão.

Em nossos dias, além de Canfora, temos inúmeras tentativas de conhecer a Hipátia histórica, e destaco a de Michael Deakin, Hypatia and her mathematics (1994), em que procurou recensear o que realmente se sabe sobre sua atuação como matemática e os fatos essenciais sobre sua vida, como datas de nascimento e morte (c. 350-c. 415, segundo a estimativa do autor). Deakin conclui que Hipátia provavelmente seguiu os passos do pai, um famoso comentador de textos científicos, e que, mais do que criar teorias, comentava e analisava aquelas já existentes, a fim de discuti-las com seus alunos. O astrolábio, por exemplo, ela reformulou, mas não inventou.

Mesmo São Cirilo, bem pouco popular na fortuna crítica sobre Hipátia, ganhou alguns defensores contemporâneos. Assim, J. A. McGucvkin, em Saint Cyril of Alexandria and the Christological Controversy, atribui o ônus da violência da qual Hipátia seria vítima a Orestes. Inimigo de Cirilo, como já vimos, Orestes teria torturado em praça pública um cristão seguidor de São Cirilo. Vários outros cristãos também teriam sido assim martirizados, o que por sua vez teria ocasionado o levante da população cristã que culminou com a morte de Hipátia. São Cirilo e seus seguidores parabolanos, portanto, nada teriam a ver com isso.

Agora que sei que talvez Hipátia tenha sido uma brilhante professora, mas não necessariamente uma brilhante teórica da matemática, que o astrolábio não é uma invenção exclusiva sua, que talvez ela tenha sido morta com mais de 60 anos, e não na flor de idade, que talvez Cirilo não tenha sido seu algoz, confesso, ainda assim, que continuo me alinhando entre seus fãs, e dessa posição não sairei mesmo que descubram, algum dia, como ocorreu com Cleópatra, que ela não era tão bonita quanto se dizia.