
Retrato de Grandville por Émile Lassalle, 1840
Pois Lewis Carroll conhecia bem Un Autre Monde. Claro que eu não sabia disso quando vi, pela primeira vez, o álbum de Granville. Percebi a semelhança entre algumas ideias e conceitos visuais e só então fui atrás da confirmação de minhas suspeitas. Nesse fantástico álbum de 1844, que deve ter assustado Baudelaire (ferrenho crítico do caricaturista, aliás), o viajante Hahblle viaja de balão e conhece mundos surpreendentes. No capítulo Les Métamorphoses du Sommeil (As metamorfoses do sono – sim, sim, As Metamorfoses de Ovídio são uma assumida referência de Grandville), ele tem um sonho realmente surreal (sim, sim, os surrealistas, não por acaso, como eu amarão Grandville), no qual assiste a uma revolta das cartas, “que querem enfim levar adiante suas próprias querelas e não mais servir àquelas dos outros” (trad. minha). É dessa imagem criada por Grandville, a das cartas em guerra, que Carroll, e depois seu ilustrador, Sir John Tenniel (1820-1914), extraem a idéia do exército de cartas que apoia a malvada Rainha de Copas. Reproduzo aqui respectivamente as ilustrações de Grandville e as de Tenniel, para que possamos compará-las.
Grandville também será fonte de inspiração para os simbolistas franceses, como Odilon Redon (1840-1916), que explorou com particular consistência o capítulo Une Révolution Végétale, igualmente de Un autre monde. Nesse capítulo o narrador coloca na boca de uma das personagens o seguinte: “Um reino inteiro da natureza se revolta: eis a terrível notícia que devo te anunciar”. O reino rebelde aqui é o dos vegetais, que são antropomorfizados, como podemos ver na imagem Le reveil des plantes [O despertar das plantas]. Redon aproveitou em suas obras o potencial perturbador dessas “metamorfoses”, o que facilmente se observa em sua impactante Flor com cabeça de criança (c. 1885).
Há ainda muitas outras imagens instigantes em Un Autre Monde: as ilustrações do capítulo Cristallisations, Pétrifications, Stalagtites, como essa que mostra um jardim de dados, pirâmides e obeliscos, pois o narrador teoriza que “O homem colheu suas mais graciosas e mais engenhosas invenções nos caprichos da natureza”, ou seja, pirâmides e que tais são meramente cópias de formas naturais. Há também as engraçadas ilustrações para o capítulo Une journée à Rheculanum, em que Hahblle visita uma antiga cidade romana que curiosamente lembra muito a Paris de seu tempo – é assim que mostra um Zeus, à semelhança daquele de John Flaxman, depois citado por Ingres, bebendo em um café.
Faz muito que perdi a ilusão de que as escolhas feitas pelo tempo são todas justas e meritocráticas, ou seja, de que os cânones culturais que adotamos hoje de fato refletem tudo o que de melhor foi produzido nas diferentes áreas artísticas (literatura, artes, etc.). Acho mesmo chocante perceber o quanto o acaso e circunstâncias contingenciais são responsáveis pela eleição de uns e pelo esquecimento de outros. Grandville, com sua biografia de artista romântico (morreu louco, em um hospício), certamente foi injustiçado pelo tempo. A boa notícia é que não há mal que sempre dure: eu, aqui no inverno de Porto Alegre, o amo muito, e me uno em silêncio a todos aqueles que, por acaso, todos os dias, descobrem o seu maravilhoso trabalho.