segunda-feira, 21 de junho de 2010

Como e por que amo Grandville

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Retrato de Grandville por Émile Lassalle, 1840

Esse ano muito se falou no livro Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 1. ed. 1865), de Lewis Carroll (1832-1898), devido ao lançamento do filme homônimo, de Tim Burton. Nas livrarias podemos encontrar várias edições novas do texto, maravilhosamente ilustradas. Mas o que a maioria de nós não sabe é que uma das fontes de inspiração para o extraordinário universo criado por Carroll é Jean Ignace Isidore Gérard Grandville (1803-1847), um caricaturista e ilustrador muito famoso nos primeiros tempos da República de Julho. Assim como Daumier, após as rigorosas leis de 1835, que coibiam as sátiras políticas, Grandville precisou encontrar outros temas para exercer sua criatividade. É assim que, primeiro, ilustrou as Fábulas de La Fontaine e, depois, criou álbuns com temas fantásticos, como Un Autre Monde [Um outro mundo], de 1844, que veremos aqui.

Pois Lewis Carroll conhecia bem Un Autre Monde. Claro que eu não sabia disso quando vi, pela primeira vez, o álbum de Granville. Percebi a semelhança entre algumas ideias e conceitos visuais e só então fui atrás da confirmação de minhas suspeitas. Nesse fantástico álbum de 1844, que deve ter assustado Baudelaire (ferrenho crítico do caricaturista, aliás), o viajante Hahblle viaja de balão e conhece mundos surpreendentes. No capítulo Les Métamorphoses du Sommeil (As metamorfoses do sono – sim, sim, As Metamorfoses de Ovídio são uma assumida referência de Grandville), ele tem um sonho realmente surreal (sim, sim, os surrealistas, não por acaso, como eu amarão Grandville), no qual assiste a uma revolta das cartas, “que querem enfim levar adiante suas próprias querelas e não mais servir àquelas dos outros” (trad. minha). É dessa imagem criada por Grandville, a das cartas em guerra, que Carroll, e depois seu ilustrador, Sir John Tenniel (1820-1914), extraem a idéia do exército de cartas que apoia a malvada Rainha de Copas. Reproduzo aqui respectivamente as ilustrações de Grandville e as de Tenniel, para que possamos compará-las.



Grandville também será fonte de inspiração para os simbolistas franceses, como Odilon Redon (1840-1916), que explorou com particular consistência o capítulo Une Révolution Végétale, igualmente de Un autre monde. Nesse capítulo o narrador coloca na boca de uma das personagens o seguinte: “Um reino inteiro da natureza se revolta: eis a terrível notícia que devo te anunciar”. O reino rebelde aqui é o dos vegetais, que são antropomorfizados, como podemos ver na imagem Le reveil des plantes [O despertar das plantas]. Redon aproveitou em suas obras o potencial perturbador dessas “metamorfoses”, o que facilmente se observa em sua impactante Flor com cabeça de criança (c. 1885).


Há ainda muitas outras imagens instigantes em Un Autre Monde: as ilustrações do capítulo Cristallisations, Pétrifications, Stalagtites, como essa que mostra um jardim de dados, pirâmides e obeliscos, pois o narrador teoriza que “O homem colheu suas mais graciosas e mais engenhosas invenções nos caprichos da natureza”, ou seja, pirâmides e que tais são meramente cópias de formas naturais. Há também as engraçadas ilustrações para o capítulo Une journée à Rheculanum, em que Hahblle visita uma antiga cidade romana que curiosamente lembra muito a Paris de seu tempo – é assim que mostra um Zeus, à semelhança daquele de John Flaxman, depois citado por Ingres, bebendo em um café.


Faz muito que perdi a ilusão de que as escolhas feitas pelo tempo são todas justas e meritocráticas, ou seja, de que os cânones culturais que adotamos hoje de fato refletem tudo o que de melhor foi produzido nas diferentes áreas artísticas (literatura, artes, etc.). Acho mesmo chocante perceber o quanto o acaso e circunstâncias contingenciais são responsáveis pela eleição de uns e pelo esquecimento de outros. Grandville, com sua biografia de artista romântico (morreu louco, em um hospício), certamente foi injustiçado pelo tempo. A boa notícia é que não há mal que sempre dure: eu, aqui no inverno de Porto Alegre, o amo muito, e me uno em silêncio a todos aqueles que, por acaso, todos os dias, descobrem o seu maravilhoso trabalho.