segunda-feira, 7 de junho de 2010

Pierre Bayle, como contê-lo?

segunda-feira, 7 de junho de 2010
Até ler As origens trágicas da erudição – Pequeno tratado sobre a nota de rodapé, de Anthony Grafton, há quase dez anos atrás, eu era perfeitamente ignorante acerca da existência de Pierre Bayle. Grafton, mais um autor que não sai de minha cabeceira, neste livro teve a inusitada idéia de analisar as caudalosas notas de rodapé redigidas por Bayle. E nós com isso? Que relação pode ter o literariamente incontido Pierre Bayle com a história da arte e da cultura? Não percam a paciência, há uma certa lógica aqui.

Pierre Bayle (1647-1706) é um dos pais da crítica moderna, nada menos do que isso. Com uma energia verdadeiramente messiânica que eu apenas tornaria a ver em Balzac, ele, protestante francês, achou necessário responder ao ambicioso dicionário do católico Louis Moréri (1643-1680), com um dicionário ainda mais ambicioso, um dicionário que fosse ao mesmo tempo “contra-dicionário”, que apontasse todos os erros cometidos por variados pesquisadores (especialmente os católicos) no registro e relato de personagens e enredos históricos. Outros já haviam criticado minuciosamente textos, como Thomas Morus (1478-1635), de quem Bayle era grande admirador. Mas um dicionário em muitos volumes, compulsivamente escrito e discutido (a rede de correspondentes de Bayle era impressionante), em que cada discrepância de dados ou nomes é descrita em detalhes em quilométricas notas de rodapé, esse seria um feito para causar espécie e entrar para a história.


Em 1692 Bayle, então com 45 anos, esboça o projeto da obra, intitulado Projet et fragments d’un dictionnaire critique, que dedica ao Sr. Du Rondel, “Professor de Belas-Letras em Maestrich”. Já no primeiro parágrafo anuncia com clareza a que veio:

“Senhor, o Sr. sem dúvida se surpreenderá com as resoluções que acabo de tomar. Coloquei na cabeça compilar a maior antologia que me for possível dos erros que se encontram nos Dicionários, e de não me restringir a esses espaços por mais vastos que sejam, mas também percorrer todos os tipos de Autores, quando se apresentar a ocasião”.

Talvez coremos um pouco com a vastidão dos campos intelectuais que Bayle pretendia explorar naquela época, nós, que temos de nos confinar aos cercadinhos de nossos projetos de graduação, de dissertação e de tese. Pois esse foi o tempo heróico dos desbravadores intelectuais, tão audaciosos quanto Marco Polo explorando a China.

Mas não pensemos que Bayle encarava ingenuamente essa tarefa ciclópica. Ele antecipa as críticas (traduções sempre minhas): “[procurar tantos erros nos textos históricos] é pior do que combater monstros; é querer extirpar as cabeças da Hidra, é ao menos querer limpar os estábulos de Augias”. Recapitulando, essa era uma das tarefas de Hércules, limpar pela primeira vez os estábulos do rei Augias, com seus muitíssimos hectares de estrume.


Mesmo assim, Bayle prosseguiu com seu intento, igualmente consciente de que sua tarefa não se resumiria a uma ou duas páginas – o que fica claro na historieta contada na primeira nota de rodapé do Projeto, que reproduzo abaixo, na íntegra:

“Ouviu-se dizer que o Sr., tendo pedido um dia a um sábio, entre seus amigos, que marcasse sobre algum pequeno pedaço de papel os erros que notasse em seu Dicionário [o de Moréri], teve por resposta que seria preciso mãos e resmas de papel, e não pequenos pedaços”.


O resultado do esforço febril de pouco mais de dez anos de trabalho foram os vários volumes do Dictionnaire Historique et Critique, reeditado incontáveis vezes no século XVIII e leitura obrigatória dos filósofos iluministas. No primeiro volume, o primeiro verbete é dedicado a Aarão, irmão de Moisés, e entre os tantos erros encontrados nos relatos sobre o personagem, Bayle elenca um bastante curioso:

“De modo algum creio que se deva dizer que Deus suspendeu em favor de Aarão a ação do fogo, assim como a favor dos três hebreus que foram lançados na fornalha da Babilônia” (tradução minha, de novo, as notas de rodapé, maiores que o verbete, ficam de fora).

Eis a síntese de seu espírito crítico. Nenhuma idéia sem verificação, nenhum fato que não seja virado do avesso para facilitar a análise. Difícil avaliar o peso da sua influência. O que nos interessa especialmente é saber que Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) leu o Dictionnaire inteiro (não apenas leu, mas anotou todos os volumes – tornarei a esse assunto futuramente, em Sim, Winckelmann lia Bayle). E Winckelmann foi traduzido por Fuseli, e usado por todos os historiadores da arte britânicos que se prezassem, até Walter Pater; Ernst Gombrich, por sua vez, é o elo mais recente dessa tradição, o que mais diretamente nos toca. Mas lá no fundo sempre está o caudaloso Bayle. Como contê-lo?. E, por outro lado, como evitá-lo? A História da arte e da cultura passeia no “vasto campo” da crítica, e quem lá rodopiou pela primeira vez, medindo e demarcando o terreno, com mais leveza e ao mesmo tempo com mais fúria, foi Bayle.