sábado, 28 de agosto de 2010

Aphra Behn e a Dama Cega

sábado, 28 de agosto de 2010


“Adquirir conhecimento”, não adianta, não consigo deixar de pensar assim, é apenas um eufemismo para “tomar conhecimento da extensão ilimitada da própria ignorância”. Estava arrumando meus papéis no armário que fica atrás de minha mesa, e encontrei, sufocada por uma montanha de artigos, a minha tese de doutorado em Letras. Não faz tanto que a defendi, mas relendo agora, já encontro o que repensar. Meus comentários sobre Aphra Behn, por exemplo, no subcapítulo (2.2) “A virtude recompensada”: Pamela.

Aphra Behn

Aphra Behn (1640-1689) foi a primeira dramaturga inglesa (até que se prove o contrário) a viver de seus escritos. “Viver” não significa necessariamente “viver bem”, pois ela chegou a ser presa por dívidas. Também não significa que ela não recorresse a outros “bicos” para prover o seu sustento. Um dos “bicos” mais famosos foi o de espiã de Carlos II nos Países Baixos, entre 1666 e 1667. Lembremos que, por essa época, havia uma intensa disputa entre Inglaterra e Holanda. De acordo com o Tratado de Breda, os ingleses ficariam com a colônia holandesa na América do Norte, cuja capital, Nova Amsterdã, seria rebatizada como Nova York, e os holandeses garantiriam o Suriname, na América do Sul.

Aphra escreveu várias peças – a primeira a ser encenada, The Forced Mariage (1670), e a mais famosa, The Rover (1681). Foi reconhecida em vida e contava, entre seus amigos, com dramaturgos como Thomas Otway (1652-1685), que chegou a atuar em uma de suas peças como ator, teve pânico de palco e morreu em extrema pobreza; George Etherege (1635-1692), que fez muito sucesso em Londres e que assistiu a peças de Molière em Paris, e John Dryden (1631-1700), a grande figura literária da Restauração inglesa. Em 1689 Aphra morre, e é enterrada na Abadia de Westminster.

Em minha tese eu apresento uma breve análise do conto The unfortunate Bride or the blind lady a beauty, de publicação póstuma (1698). Esse conto narra o amor entre Frankwit e Belvira. Estavam prestes a consumar seu amor quando Frankwit precisa ir a Cambridge. Nesse meio tempo, uma “tragédia dos erros” se arma: Belvira, acreditando-se abandonada, casa-se com Wildvill, amigo de Frankwit, que por sua vez retorna na noite de núpcias e acaba matando os recém-casados. Como penitência, casa-se com a prima cega de Belvira, Celésia, que, apesar de intitular o conto, tem uma participação muito modesta na trama. Eu concluo a análise afirmando que “Aphra não se ocupa da vida moral e psicológica das personagens”.

Meu erro nessa afirmação foi ter generalizado antes de haver lido o conjunto dos escritos de Aphra. Se essa hipótese se aplica ao conto da Dama Cega (e continuo acreditando que sim), no entanto não se encaixa muito bem a um texto como Oroonoko, or The Royal Slave, conforme descobri mais tarde.


Aphra era monarquista, e se casou com um escravagista de origem holandesa, Johan Behn. Sabe-se que entre 1663 e 1664 ela esteve no Suriname, então colônia inglesa. Na colônia os ingleses decidem plantar cana-de-açúcar, e como mão-de-obra importam escravos africanos. Pois Aphra apresenta, em sua novela, um desses escravos, Oroonoko (um escravo fictício, bem entendido). Neto de rei africano, Oroonoko se apaixona por Imoinda, filha do general do reino. O rei local, contudo, se interessa por Imoinda, ela não cede a seus desejos e acaba se tornando escrava. O mesmo fim tem Oroonoko, e os dois são enviados ao Suriname. O governador da colônia, Byam, também se interessa por Imoinda, e o cenário trágico está montado: Oroonoko lidera uma rebelião dos escravos, em uma cena tocante mata Imoinda (com o consentimento dela), para evitar que caia nas mãos dos inimigos, e é enfim preso. A cena final é aquela de seu suplício, descrita de modo a destacar a bravura do escravo e, também, a extrema crueldade dos colonizadores:

“Ele aprendeu a fumar Tabaco, e quando lhe garantiram que ele deveria morrer, desejou que colocassem um Cachimbo em sua Boca, imediatamente aceso, o que fizeram; e os Carrascos chegaram, e primeiro cortaram seus Membros, e os jogaram no fogo; e depois disso, com uma Faca afiada, cortaram suas Orelhas e seu Nariz, e os queimaram; ele ainda fumava, como se nada o houvesse tocado; então arrancaram um de seus Braços, e ele ainda [...] mantinha seu Cachimbo; mas quando cortaram o outro Braço, sua cabeça inclinou e seu Cachimbo caiu, e ele entregou seu Espírito, sem um Gemido, ou Recriminação. [...]. Assim morreu esse grande Homem, digno de melhor Destino, e de uma Inteligência mais Sublime do que a minha para escrever seu Elogio: Ainda assim, espero, a Reputação de minha Pena é considerável o bastante para fazer com que esse glorioso Nome sobreviva em todas as Eras, com aquele da brava, bela e constante Imoinda” (tradução minha).

Oroonoko é considerado um dos primeiros protestos, na literatura inglesa, contra o tráfico de escravos africanos (ainda que Aphra não fosse totalmente contra a escravidão, me parece que sua causa era mais do que defender os escravos, criticar a administração da colônia), e foi escrito em 1688, no final da vida da dramaturga.
Desse meu erro paradigmático, erro típico dos generalistas (entre os quais certamente me incluo) tiro, então, pelo menos uma constatação: generalizar é uma arte difícil, a quantidade de informações necessárias para permitir uma boa visão de conjunto facilita o acúmulo de avaliações equivocadas. Ainda assim, isso não significa que a generalização deva ser evitada – pelo contrário, que triste seria o mundo se não houvesse os que desenhassem não as árvores, mas as florestas, por mais imprecisos que fossem seus rabiscos.