segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Memórias Póstumas de Sally Mara

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Sally Mara nasceu no domingo de Páscoa de 1916. Teria agora, portanto, 94 anos. Não é impossível que, com esta idade, esteja viva. Mas é improvável. Caso o pior tenha acontecido, gostaria sinceramente que, seguindo o exemplo de Brás Cubas, ela escrevesse suas Memórias Póstumas. É que ficamos carentes depois de passar pelo brilhante conjunto de sua obra... Era preciso haver mais Sally.

Tenho Les oeuvres complètes de Sally Mara, uma publicação da Gallimard, menos volumosa do que poderia ser (é isso mesmo, insisto em esperar pelas Memórias Póstumas). Vamos principiar pelo Journal (Diário), que se inicia em 1934. Sally, uma jovem irlandesa que estuda francês e que ainda não domina completamente a língua (como eu também era na época em que li seu diário, uma estudante de francês ainda nos primeiros níveis, com a diferença de não ser irlandesa e, como veremos, de não aceitar ajuda para atravessar pequenas passarelas), narra em seu diário como foi a despedida de seu professor de francês, que embarcou para a França, imagino eu. Depois de se despedir dele, Sally Mara deve atravessar uma passarela para voltar para casa. Um rapaz lhe oferece ajuda. Estamos em 13 de janeiro. Sally nos conta o que aconteceu:

“E eu ouvi uma voz doce e polida me sussurrar ao ouvido essas palavras confortantes: Segure o corrimão, senhorita. Ao mesmo tempo coloca efetivamente na minha mão ainda livre um objeto que tinha simultaneamente a rigidez de uma barra de aço e a doçura do veludo. Eu o segurava convulsivamente e, surpreendendo-me que esse corrimão permanecesse quente, apesar da ventania que soprava de modo ainda invernal, pude, graças a sua ajuda, chegar sã e salva à outra margem” (tradução minha – há uma tradução para o português de Portugal muito antiga, em algum lugar desse apartamento, mas como ela é excessivamente insalubre, prefiro traduzir eu mesma).

Como eu disse, não dominava muito bem o idioma naquela época. Li e percebi algo errado com essa passagem. Reli. Fui ao dicionário. Era isso mesmo que eu havia pensado, Sally Mara, sem dolo algum (ainda que mais tarde eu começasse a me perguntar: será mesmo?) segurou de fato o "corrimão" do rapaz para atravessar a passarela, uma cena insólita.

Continuei, e encontrei outra pérola de Sally: “Mas enfim posso me permitir isso em minha journalintimité”, do dia 4 de fevereiro. Journalintimité, como traduzir isso? Intimidade de Diário? Perde toda a graça. Mais adiante um pouco, outro raciocínio formidável:

“Além disso, não gostei das camisas azuis de nosso general O’Duffy e, de resto, completamente purgada de todo sentimento patriótico depois que ele me disse que a Irlanda é uma ilha menor do que a Terra Nova: o que nos escondem sempre” (tradução minha).

Essa mistura de intensa investigação interior e da mais genuína obtusidade é simplesmente encantadora. Em 18 de fevereiro Sally filosofa sobre os seus ciclos:

“O tempo passa. Me entedio e me sinto toda esquisita. Não é, no entanto, a proximidade da menopausa (uma palavra cujo sentido ainda preciso verificar no dicionário) mensal que me atormenta” (tradução minha).

Em 5 de abril o motivo do "corrimão", de algum modo, ressurge, em tom aparentemente desinteressado:

“Vou de descoberta em descoberta. Um golpe de vista, um simples golpe de vista, pode mesmo despertar em um cavalheiro uma espiritualidade até então latente. É mesmo muito curioso de se observar. Não seria mesmo necessário que meu olho estivesse sempre a rondar as calças dos cidadãos, que isso se tornasse uma obsessão e que eu caísse em uma espécie de misticismo com falucinações. Devo também sonhar com a matéria: mármore, bronze, todos esses materiais duros e lisos utilizados para as obras de arte” (tradução minha).

Uma menina de 16 anos com menopausa eu não havia ainda visto. Já as falucinações são bem mais verossímeis. Pois essa charmosa pensadora decide, mais tarde, deixar o campo autobiográfico e dedicar-se ao romance. É assim que escreve On est toujours trop bon avec les femmes (Somos sempre bons demais com as mulheres), um agitado romance sobre republicanos irlandeses entrincheirados em uma agência de correios, rebeldes cujo grito de guerra é Finnegans Wake! Eles, em um momento de desvario, permitem que moças tão inocentes quanto Sally os acompanhem na trincheira improvisada, o que acabará por custar-lhes a vida.

Ainda que negue veementemente a autoria, no prefácio às Oeuvres completes de Sally Mara, Sally Plus Intime é também, ao que parece, obra da nossa, a essas alturas, cada vez menos jovem irlandesa. Densas como haikais, abaixo coloco algumas das reflexões de Sally sobre temas perenes, sempre em tradução minha:

Deus: o não-ser mais bem-sucedido em fazer falar de si mesmo.

A morte: a fraqueza do forte.

Do uso das palavras: amamos o camembert e não dizemos a um camembert: eu te amo.

Enfim, a mais transcendental de todas, a que sempre me comove quando a leio:

É a vida:
O pássaro cru faz crás-crás
O pássaro cozido não o faz mais.
Raymond Queneau

Claro que as histórias têm mais de um lado. Podemos encontrar a informação de que Sally é, por sua vez, obra de Raymond Queneau (1903-1976), que teria escrito On est toujours trop bom avec les femmes em 1947, o Journal em 1950 e as Oeuvres Complètes, em 1962. Eu, particularmente, custo a crer na possibilidade que, em algum momento, Sally não estivesse viva. Me parece mais plausível, nesse caso, que Queneau tenha psicografado suas obras – o que significaria, em última instância, ou que a data de nascimento de Sally estava errada, ou que teve uma lamentável morte precoce. É a vida...