quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Daumier "Escultor"

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

d'Argout




Estabelecer um cânone artístico sempre é um problema. Não temos como escapar dele quando somos professores: há um número limitado de aulas por semestre, e mesmo quando trabalhamos em História da Arte com temas (a paisagem, a abstração, etc.), é preciso escolher quais artistas e quais obras mostrar. Na extinta disciplina de História da Arte II (à qual já fiz referência no texto Alexandre Cabanel: uma força subterrânea) senti a necessidade de insistir um pouco mais nas artes gráficas e, quando possível, na fotografia e na escultura. O tempo curto e a natureza do material mais facilmente acessível às vezes nos impelem a tratar apenas de pintura. Com esse objetivo em mente, além de Nadar, Camille Claudel, Rodin e do hoje menos popular escultor francês James Pradier (amante de Juliette Druet, por sua vez a futura amante oficial de Victor Hugo), escolhi também, como tema de aula, a obra do caricaturista Honoré Daumier (1808-1879).


Daumier


Naquela época eu ainda não era usuária contumaz do Portal de Periódicos da Capes, tampouco existia uma base de dados pública como a Europeana. Minhas pesquisas de imagem atingiam dimensões bem mais modestas: perdi as contas de quantas vezes busquei as imagens disponíveis na Olga’s Gallery, organizadas por artista, em ordem cronológica. Pois foi nessa galeria virtual que, ao pesquisar Daumier, deparei-me com as suas esculturas em argila. Admito que minhas leituras anteriores não me haviam preparado para o que encontrei: onde encaixar aquelas “caricaturas em três dimensões”, feitas com uma planejada displicência no começo da década de 1830? Os alunos também se impressionavam (e riam muito) quando passávamos por elas em aula.

A disciplina, como eu já havia dito, foi extinta, mas continuei a ler sobre Daumier – até por ser uma das preferências de Baudelaire, que sonhava escrever um livro apenas sobre caricatura (projeto levado adiante por Champfleury, que, como mencionei anteriormente em Como e por que amo Grandville, redigiu uma História da Caricatura em cinco volumes). Mas a questão das esculturas dificilmente surgia.


Foi então que achei, peregrinando pelo JStor, a resenha de S. Lane Faison Jr. sobre o catálogo Daumier Sculpture: a critical and comparative study, de Jeanne Wasserman, publicado pelo Fogg Art Museum em 1969. Esse catálogo acompanhava uma importante exposição das esculturas de Daumier no mencionado museu. Faison Jr. aponta algumas conclusões de Wasserman sobre essas obras: a série Celebridades da Monarquia de Julho, constituída de trinta e seis bustos pequenos, pintados em argila, de 1833 (e hoje abrigada pelo Musée D’Orsay), foi feita livremente por Daumier a partir das caricaturas de eminentes políticos franceses que publicou, concomitantemente, no periódico La caricature.


Como não tenho acesso ao catálogo, e a curiosidade persiste, tomei algumas providências: obtive o volume com as edições de La Caricature de 1833 (gloriosamente disponível no site Gallica), pesquisei alguns dos políticos satirizados por Daumier e li um trecho das memórias de um deles. Vamos ver o que irá resultar disso.


No alto desse texto, como se pode ver, coloquei, respectivamente, o busto em argila e a caricatura (publicada em La caricature) do conde Antoine-Maurice-Apollinaire d'Argout (1782-1858), que seria o responsável pelo Banco de França a partir de 1834. Daumier se diverte com o nariz do conde, que apresenta em duas possibilidades, mais exagerado na polida litografia, mas mais agressivo na escultura em argila, que revela toda a sua feitura através das marcas propositais, do inacabamento – característica padrão desse conjunto de peças, que obviamente se perde nas cópias fundidas em bronze.



Prunelle


A diversão continua com Clément-François-Victor-Gabriel Prunelle (1774-1853), deputado que se tornará prefeito de Lyon. A experiência de contemplar seu quadrado busto em argila ganha em graça quando podemos fazer como seus contemporâneos, e comparar a imagem caricaturada com a lembrança do rosto real e dos retratos oficiais.



Guizot


Daumier foi impiedoso com o historiador François-Pierre-Guillaume Guizot (1787-1874), uma figura muito impopular e com fama de orgulhoso, que foi ministro da educação entre 1832 e 1834: as sobrancelhas arqueadas do busto em argila são a metáfora dessa sua alegada arrogância.



Dupin

Também André-Marie-Jean-Jacques Dupin (1783-1865), advogado e deputado de destacada atuação política, não escapou da sátira de Daumier. Dupin, “traduzido” de um modo particularmente mordaz por Daumier na argila, foi presidente da Câmara dos Deputados em 1832 e tinha aguda consciência das críticas que sofria por parte da imprensa. Ao recordar o clima das eleições de julho de 1831, Dupin escreveu sobre essas críticas no segundo volume de suas Memórias (1827-1833), publicadas em 1856:

“No que me diz respeito, sofri em meu departamento os ataques dos delegados do partido insurreto – um novo jornal foi criado em Clamecy, unicamente para combater minha candidatura; os panfletos, as reclamações se alastravam; o Courrier Français colocou sob seu patrocínio especial o candidato que a mim se opunha [...]. Diante dessas articulações de meus adversários políticos, permaneci calmo e silencioso; não respondi a nenhum panfleto, a nenhum artigo de jornal. Fiel à regra que me impus, aguardei com confiança o dia da eleição, como se espera o dia do julgamento” (tradução minha).


Barthe

Dizem que Daumier foi longe demais ao comparar Luís Filipe com uma pêra e com Gargantua, o faminto personagem de Rabelais, e que isso teria lhe rendido meses de prisão. Mas meditemos um pouco: Daumier cutucou um farto vespeiro. De sua pedra litográfica e de sua fúria escultórica não escapou nem mesmo o perigoso Felix Barthe (1796-1863), o muito estrábico ministro da justiça da França. Mesmo em La Caricature podemos ler essa reveladora descrição do ministro (acompanhada de sua caricatura, por evidente):


“Com essa vasta pasta que você vê sob seu braço, você adivinha que esse personagem é um ministro; com esses olhos vesgos, esse sorriso falso, esse semblante espesso, essa figura desconfiada, você adivinha que esse ministro é Barthe. Ali há apenas a administração da justiça na França, e você teria dificuldade em reconhecer o ex-carbonaro da Restauração; mas o que você quer? É assim que a monarquia os ama” (tradução minha).

Barthe, um carbonaro, isto é, membro de uma sociedade secreta francesa que lutava pela república desde o século XIX, é mostrado por Daumier no auge de seu estrabismo (diziam os jornais satíricos que ele tinha um olho voltado para os republicanos e outro para os legitimistas). Logo, é justo considerar que,se Daumier é preso por conta de Luís Filipe, Barthe será aquele que, na prática, o obrigará a procurar outros temas menos ”incisivos”, quando passa a vigorar a nova lei por ele criada: a famigerada lei da censura de 1834.