terça-feira, 31 de agosto de 2010

Vasari inventa o Gótico

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Le Stryge (1854), gravura de Charles Meryon,
um dos símbolos do revival gótico do século XIX



Os primeiros textos que li sobre Giorgio Vasari (1512-1574) o apresentavam como o pai da história da arte. Ele escreveu as volumosas Vidas (ainda não traduzidas para o português, até onde sei) e organizou, em muitos tomos, uma preciosa coleção de desenhos de artistas. Essa visão unidimensional dos manuais pouco a pouco foi modificada pela experiência com as mais diversas fontes. Continuando minhas pesquisas, quase sempre motivadas pela necessidade de preparar material para as aulas de história da arte ou da cultura, passei a conhecer cada vez mais dimensões do famoso “patriarca” dos historiadores da arte.

Giorgio Vasari

Pesquisando documentos de época pode-se ver que ele, no que diz respeito à escrita sobre o universo das artes, de modo algum foi um autor isolado, ainda que contemporâneos seus como Paolo Pino (Dialogo di pittura, 1548) e Antonio Francesco Doni (Disegno, 1549) não tenham atingido a mesma fama póstuma. Tampouco foi realmente o primeiro de uma série: no Quattrocento, conforme Anthony Blunt, em seu clássico Teoria artística na Itália, se escreveu mais sobre arte na Itália do que no Cinquecento, e encontramos vários autores que abordaram alguns dos pontos que iriam caracterizar a obra de Vasari. Deste modo, Cennino Cennini (1370-1440) se ocuparia das diferentes técnicas artísticas em Il libro dell’arte (c. 1390); Lorenzo Ghiberti (1378-1455), em seus Commentarii (1447-1455), demonstraria um importante grau de preocupação com a história da arte, ao apresentar especulações de autores antigos sobre a origem do desenho (egípcia ou grega) e ao discorrer sobre artistas da Antiguidade Clássica; Bartolomeo Fazio (? – 1457), enfim, aproveitando um modelo anteriormente já praticado por Boccaccio, escreveria De Viris Ilustribus (1453-1457), e entre os homens ilustres cuja biografia apresentou incluiu alguns artistas, como Gentile da Fabriano e Pisano de Verona.

Vasculhando na base de dados Europeana pude ver reproduções de muitas obras de Vasari, desenhos com planejamento de esquemas decorativos e pinturas (algumas tão “engessadas” que chega a ser chocante o contraste entre a fama do historiador da arte e a habilidade do pintor...). Dois exemplos: um Cristo morto, esverdeado como o de Pontormo (mas sem a mesma graça) ou o de Holbein o Jovem (mas sem a mesma dramaticidade), e o desenho de uma cabeça de mulher. Ainda que habilidoso, como podemos ver especialmente no desenho, Vasari podia ser bastante protocolar, como nos mostra a pintura.

Pietà con San Francesco d'Assisi, Vasari

Cabeça de mulher, Vasari

Também li um excelente artigo sobre a opinião de Vasari a respeito da gravura, Vasari, prints and prejudice, de David Landau. O autor, interessado pela gravura criativa no Renascimento, chama a atenção para o fato de Vasari quase sempre mencionar, nas Vidas, a gravura de tradução, ou seja, aquela destinada à reprodução de outras obras de arte. Exceção é o comentário que faz no final da vida de Domenico Beccafumi (1486-1551), no qual destaca algumas gravuras originais do artista sienense.

Morte de Coligny, Vasari

Li ainda outro artigo, de E. Howe, Architecture in Vasari’s Massacre of the Huguenots, publicado no Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, que trata especificamente das três telas que o artista pintou para a Sala Regia, no Vaticano, sobre o massacre dos huguenotes em Paris, ocorrido em 24 de agosto de 1572. Os huguenotes (calvinistas franceses) eram perseguidos desde a década de 1550, e o massacre, com o cruel assassinato do líder huguenote, Coligny, é o ápice do conflito francês entre católicos e reformistas. A Curia Romana recebeu (e comemorou) a notícia do massacre em setembro, e em dezembro Vasari começou os trabalhos. O “pai da História da Arte” engajado em encomendas contra-reformistas e capaz de conceber quadros como Ferimento do Almirante Coligny, Morte de Coligny, Charles IX diante do Parlamento (mostro uma delas acima), eis outro ângulo que eu não conhecia.



Contudo, o que mais me surpreendeu foi uma determinada invenção atribuída a Vasari. A primeira edição das Vidas, de 1550, foi sucedida por uma reedição ampliada, de 1568. Como prefácio dessa nova edição há um extenso texto de Vasari sobre técnicas artísticas, publicado pela primeira vez em inglês em 1907 graças a G. Baldwin Brown. Em nota de rodapé, Brown comenta que Vasari atribuiu aos godos a “maneira tedesca” que tanto detestava, introduzida pela primeira vez na Itália, segundo se acreditava na época, em uma igreja franciscana. No subcapítulo intitulado Obra alemã (o estilo Gótico), assim, Vasari desopila o fígado ao descrever de modo nada amigável a recém-batizada arquitetura gótica:

“Essa maneira foi invenção dos Godos, pois, depois de haverem arruinado os antigos prédios e matado os arquitetos nas guerras, aqueles que restarem construíram os prédios nesse estilo. Eles viravam os arcos com segmentos pontiagudos, e encheram toda a Itália com essas abomináveis construções, logo, para não ter mais nenhuma delas o estilo deles foi abandonado. Possa Deus proteger todos os países de tais idéias e estilo de construções! Elas são tais deformidades em comparação com a beleza de nossos prédios que não merecem que fale mais delas” (tradução indireta minha, a partir da tradução para o inglês de Louisa MacLehose).

A ideia de que o biógrafo máximo dos artistas renascentistas também é aquele que cunhou o termo gótico é tão envolvente que me pergunto se alguém por acaso já descobriu se não foi outro o inventor. O que achei a respeito foi o artigo de E. S. de Beer, publicado no Journal of the Warburg and Courtauld Institutes em 1948, a saber, Gothic: Origin and Diffusion of the Term: The Idea of Style in Architecture. Segundo Beer, no entanto, foi mesmo Vasari o responsável por essa criação, ainda que apresente no artigo seus antecessors e sucessores. Pois bem, o defensor do classicismo, ao conceituar os “bárbaros do norte”, lançou as bases para o estabelecimento do gótico como estilo, cujo revival veremos com força no século XIX. Mais uma prova do destino muitas vezes incontrolável de nossas realizações: se Vasari soubesse o que haveria de ocorrer com seu termo, acho que, como se costuma falar hoje estaria se revirando na cova.