quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Exilados: Marx e Semper na British Library

quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Reading Room, British Library, gravado em madeira por Richardson & Cox a partir de desenho de Henry Walter Herrick


Germain Bazin nos mostra em História da História da Arte o quanto Alois Riegl foi duro com Semper. Em pouquíssimas palavras, Riegl discordava da explicação materialista do estilo que Semper apresentava em seu Der Stil, propondo uma alternativa oposta, idealista, a kunstwollen (vontade de arte). Por conta dessa leitura inicial, feita durante minha graduação em Artes Visuais (li todo o livro de Bazin na época), tomei as dores de Riegl e partilhei, mesmo sem fundamento, de sua antipatia por Semper.

Muitos anos depois outras pesquisas me levaram novamente a Semper. Estudando Charles Hartt, tema de minha tese em História, me deparei com alguns antropólogos e arqueólogos americanos da segunda metade do século XIX que, entusiasmados, com as teorias de Semper, procuravam explicações materialistas para o surgimento da decoração cerâmica entre diversas tribos indígenas dos Estados Unidos. Assim, William Holmes (1846-1943), a partir da leitura de Semper, concluirá que a decoração da cerâmica de várias etnias indígenas americanas seria resultado da observação da impressão da trama dos cestos de vime na argila fresca. A cópia dessas marcas levaria ao desenvolvimento de diferentes padrões ornamentais. Esse tipo de determinismo ambiental obviamente diminui a margem para o exercício da criatividade indígena – a decoração cerâmica seria, assim, fruto de mero decalque. Dessa vez eu decidi vencer a má impressão inicial e ver com meus próprios olhos a obra de Semper. A questão é: como fazer isso?

Achei com facilidade o arquivo da edição original em alemão, mas confesso que ainda estou bem longe de ler com fluência nessa língua. Insistindo nas pesquisas, descobri uma maravilhosa edição americana, a primeira tradução para o inglês da obra máxima de Semper, Style in the technical and tectonic arts, or, Practical Aesthetics, edição financiada pelo Getty Research Institute, de Los Angeles, em 2004. A introdução da obra está a cargo do tradutor, Harry Mallgrave, que me apresentou ao Semper que eu não conhecia.

Gottfried Semper

Semper nasceu em Hamburgo, em 29 de novembro de 1803. Sua mãe, Joanna Marie, vinha de uma família francesa huguenote. Já o pai era um rico comerciante. Como os de sua geração, Semper estudou na escola grego e latim (o grego é a novidade romântica, para maiores informações sobre a institucionalização do ensino dessas línguas, em particular na Inglaterra, os livros de M. L. Clarke são sempre uma boa indicação). E se saiu muito bem nesses estudos clássicos. A carreira que escolhe é a de oficial de artilharia, em 1823. E os estudos prosseguem, agora universitários: na Universität Göttingen se dedica à matemática e à estatística...

Reli o que acabo de escrever e, de fato, “dedicação” não é a ideia adequada a passar acerca desse momento. Semper se deixou levar pela vida de estudante (ou talvez tenha se atirado nela com afinco e intencionalmente). Sua vida na década de 1820 é tumultuada (talvez devesse também aqui modificar o adjetivo, e escrever “animada”): jogos, duelos, bebedeiras, mulheres e bebedeiras outra vez. Para escapar da polícia, foge a pé para Paris, em 1826.

O mais surpreendente é que no momento em que Paris ferve, em 1829, às vésperas de outra revolução, Semper decide se concentrar nos estudos de arquitetura. É evidente que o entusiasmo pelas utopias socialistas do tipo Saint-simoniano o atinge em cheio, Semper era um republicano convicto.

Como disse há pouco, Semper agora estava decidido a estudar seriamente arquitetura. Para isso resolveu ir direto às fontes: depois de passar por Roma e Pompeia, rumou para a Grécia. O momento, contudo, não poderia ser pior. Semper chega à Grécia (ainda em guerra civil) precisamente no dia em que o presidente provisório, Ioánnis Kapodístrias, é assassinado.

Semper, de todo modo, aproveita bem a estadia: secretário pessoal do filólogo Friedrich Whilhelm Von Thiersch (1784-1860), faz pesquisas arqueológicas em Atenas e no Egito e ainda consegue escapar de uma tentativa de assassinato. Passados nove meses, volta à Itália, no verão de 1832. A viagem de volta também é cheia de aventuras:
um ataque de piratas, dessa vez, do qual Semper escapa novamente ileso.

No que diz respeito às ruínas antigas, havia um problema que deixou Semper particularmente estimulado: o da policromia. O debate em torno da policromia dos monumentos clássicos começa em 1830, quando Jacques Ignace Hittorf (1792-1867) apresentou a reconstituição de um heroon (um túmulo monumental construído para um herói, como esse de Agrigento, que mostro abaixo), toda colorida. Semper abraçou com fervor a causa da policromia: irá descobrir que a coluna de Trajano também era colorida (1833) e propor uma reconstituição das cores originais do Partenon de Atenas (um detalhe, feito por ele mesmo, pode ser visto abaixo).


Semper está outra vez na Alemanha, e instala-se em Dresden. Lá é responsável por várias obras, e uma das mais famosas é o Hoftheater, inaugurado em 1841. É nesse teatro que Wagner apresenta pela primeira vez obras como Tannhäuser. Semper faz muitos amigos: além de Wagner, com quem discutia nos cafés sobre qual período seria superior, a Idade Média (como queria Wagner) ou a Antiguidade Clássica (como queria Semper), também se relacionava com o pintor Caspar David Friedrich e com Clara e Robert Schumann.

Hoftheater

A vida confortável de Semper muda em 1848: republicano, ele se alinha aos oposiocionistas do regime e chega a ajudar na construção de barricadas. Acusado de traição, perde tudo: família, bens, prestígio, emprego. É forçado ao exílio em Paris, a partir de 1849. Ainda desempregado no final de 1850, decide tentar a sorte em Londres.

O começo da vida londrina também não foi fácil. Conseguiu uma posição como professor das artes do metal na nova School of Practical Art. O exílio, por outro lado, proporcionou tempo livre, tempo que Semper aproveitou realizando pesquisas todos os dias na sala de leitura da biblioteca do British Museum. A sala de leitura ainda não havia passado pela reforma que a tornaria mais confortável: era muito fria, e decorada com pássaros empalhados e antiguidades egípcias.

Em suas idas diárias à sala de leitura Semper, motivado pela crise do design declarada desde a Exposição Universal de 1851, organizava uma teoria do design capaz de enfrentar esse desafio. Ele não estava sozinho naquela sala. O igualmente exilado Karl Marx (1818-1883), também diariamente, sentava-se em uma mesa para estudar economistas políticos, pois queria entender o funcionamento do capitalismo. Conversariam eles? Trocariam cumprimentos? Ou nem sequer se conheciam? Eis as perguntas que podemos fazer aos mortos. Se eles soubessem que um seria o autor de Das Kapital (1867), e o outro de Der Stil (1861 e 1863), talvez tivessem tomado a iniciativa de atenuar os males da pobreza do exílio dividindo, também, uma mesa de café.