segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Uma modesta proposta: leiamos Swift

segunda-feira, 9 de agosto de 2010
A Batalha dos Livros

Eu já havia passado, na rua, por muitas pessoas que usavam óculos, mas realmente comecei a reparar nelas quando minha miopia foi diagnosticada. Mesma coisa com relação às grávidas: por quantas eu já havia passado? E por que apenas depois que eu mesma engravidei elas pareceram, aos meus olhos, multiplicarem-se exponencialmente pelas ruas? Eu tenho ainda uma lista muito grande de exemplos como esses, que, em suma, passam a mesma mensagem: os conceitos aos quais nos ligamos pelos laços do amor, da curiosidade ou, simplesmente, da necessidade, são nossos cães-guia, sem eles vagamos às cegas pelo mundo. Informada sobre a minha gravidez e minha miopia, passei a enxergar as grávidas e os míopes.

O mesmo se dá com a experiência literária. Por quanto tempo Semper, Cabanel, George Sand, Champfleury, Baudelaire, todo esse pequeno panteão do passado sobre o qual escrevo, simplesmente nada significaram para mim? Quantas vezes passei os olhos por seus nomes sem me deter, sem atrelar a eles uma imagem, um conjunto de experiências, uma gama de cores, de versos ou ideias, uma rede de relações mais rica? Impossível saber. Pois há pouco esbarrei, mais uma vez, em meu ponto cego, enquanto estive às voltas com Swift. Minha modesta proposta é: descubramos o que aconteceu nessa minha insólita aventura de leitura.


Tirei da estante aquele muito maravilhoso livro intitulado Panfletos Satíricos, traduzido por Leonardo Froés, uma excelente coleção de textos polêmicos de Jonathan Swift (1667-1). Swift eu conheço há muitos anos, e felizmente nunca o confundi com a marca de salsichas local. Conheço-o das Aventuras de Gulliver, e de Uma modesta proposta, ainda que, admito, tenha lido muito mais extensamente um contemporâneo seu, Daniel Defoe (1660-1731) (Diário do Ano da Peste, Moll Flandres, contos sobre fantasmas, tudo o que me caiu nas mãos). Pois dessa vez queria ler A Batalha dos Livros, panfleto publicado anonimamente em 1704, junto com Uma História de um Tonel.


Pois bem: o texto é divertidíssimo do início ao fim, uma Disneylândia para aqueles que, como eu, são amantes da ironia (acho que mesmo Paladas de Alexandria, se ressuscitasse, encontraria aqui um pouco daquele doce mel ático que julgava inexistente entre os cristãos). Em tempos mais recuados os livros controversos eram mantidos separados dos outros nas Bibliotecas. O narrador explica por que motivo essa curiosa prática foi adotada:

“O Motivo original dessa Invenção [o nicho separado] foi este: ao saírem pela primeira vez as obras de Scotus, levaram-nas a uma grande Biblioteca e determinaram um Nicho para elas; mas o autor, tão logo instalado, foi visitar Aristóteles, seu Mestre, e os dois combinaram agarrar Platão à força para tirá-lo do seu antigo Posto entre os Teólogos, onde placidamente ele ficara por quase Oitocentos Anos. A Tentativa deu certo e os dois usurpadores têm reinado desde então no lugar dele; mas para manter a tranquilidade no futuro, decretou-se que todas as Polêmicas de maior formato ficassem presas com correntes”.

Tal prática preventiva, no entanto, apesar das admoestações do narrador, foi abandonada na St James Library, o que acabou por ocasionar, no momento em que uma nova geração de livros controversos ingressa na biblioteca, uma verdadeira batalha dos livros. O guardião da Biblioteca Real defendia os Modernos e perseguia os Antigos. Os livros, em tal contexto belicoso, se organizam de maneiras improváveis: Descartes e Aristóteles, Platão e Hobbes. Os livros modernos se alinham em tropas, e os antigos ouvem a interpretação que Esopo, o pai da fábula, faz dos fatos:

“Quanto a nós, os antigos, contentamo-nos, como a Abelha, em Nada pretender de Nosso, além das Asas e a Voz; ou seja, os nossos vôos e a nossa Linguagem; pois o Resto, de tudo quanto temos, foi conseguido por Labor infinito, e busca, e andanças por todos os recantos da Natureza: a Diferença é que ao invés de Imundície e Veneno, preferimos Mel e Cera para encher as nossas Colmeias, fornecendo assim à humanidade as duas coisas mais nobres, que são a Doçura e a Luz”.

Doçura e luz, doçura e luz... Os modernos, como as aranhas, dominam a nova indústria dos venenos químicos, os antigos se ligam à natureza e ao mel que ela produz, e doçura e luz, doçura e luz... Pois eu já havia visto isso antes, em um lugar que me pareceu improvável: Matthew Arnold (1822-1888). O crítico literário vitoriano que falava grego desde pequeno transformou essa expressão em símbolo de uma época quando com ela batizou um dos capítulos do seu muito influente livro Culture and Anarchy (1869). Corri ao livro para me certificar da origem da expressão, e eis o que encontro:


“Isso é admirável e, de fato, a palavra grega eufuía, uma natureza finamente equilibrada, dá exatamente a noção de perfeição tal qual a cultura nos leva a concebê-la: uma perfeição harmoniosa, uma perfeição na qual as qualidades de beleza e inteligência estão ambas presentes, que une 'as duas coisas mais nobres’ – como Swift, que de uma das duas em qualquer medida, tem ele mesmo muito pouco, com muita felicidade as chama em sua A Batalha dos Livros (Battle of the Books) – 'as duas coisas mais nobres, doçura e luz'. O eufués é o homem que tende à doçura e luz; o afués, por outro lado, é o nosso Filisteu” (tradução minha).

Matthew Arnold já havia mencionado Swift quando introduziu a expressão em seu texto, e eu, mais uma vez, passei os olhos sem de fato atentar para esse pequeno detalhe, da primeira vez que li... A lição que posso tirar de mais esse episódio de reconhecimento feito na velocidade das faíscas atrasadas é: que bom, pelo menos não mais estou cega com relação à doçura e à luz.