domingo, 23 de maio de 2010

Mercier e as artes na Paris de 2440

domingo, 23 de maio de 2010
Faz muitos anos que li Edição e Sedição, de Robert Darnton. Lembro de ter ficado empolgadíssima com o tema, um horizonte de especulação então totalmente novo para mim: como funcionava o comércio de livros proibidos no século XVIII? O que liam as massas e as classes mais privilegiadas? Quais eram as leituras proibidas e populares? De todo o material analisado por Darnton, um título para mim ficou mais gravado do que os outros: L’an 2440, de Louis-Sébastien Mercier (1740-1814), publicado em 1771, o primeiro romance utópico a projetar uma história no futuro – e que futuro! Mais de duzentos anos se passaram e ainda estamos longe de poder conferir a tal Paris de 2440. Eu tateava no francês na época em que li Darnton, e a internet ainda era uma realidade remota. Há algum tempo atrás, no entanto, em função das aulas que preparava para História da Arte II e também em função da minha tese em letras (com um capítulo inteiro sobre a literatura do XVIII) voltei a escarafunchar informações sobre Mercier (que merecerá um capítulo à parte; por ora, não o idealizemos) e sua obra. Descobri, e isso me pareceu milagroso, uma edição completa de L’an 2440, uma das primeiras, de 1772, na base de dados Eighteenth Century Online. Deu um trabalho daqueles baixá-la: a conexão era lenta e podia descarregar apenas 50 páginas de cada vez. De posse do livro, enfim, vi o que Darnton havia visto, a gloriosa e emocionante epígrafe extraída de Leibniz, “Le présent est gros de l'avenir” (“o presente está prenhe de futuro”), a projeção da Paris do futuro, de sua dimensão arquitetônica e cívica, mas também vi mais – uma descrição relativamente detalhada da nova Academia de Pintura, aberta ao povo (“precisei caminhar apenas alguns passos e logo me encontrava junto à Academia de Pintura. Entrei em vastos salões guarnecidos com quadros dos maiores mestres. Cada um oferecia o equivalente a um livro moral e instrutivo” – traduções sempre minhas), e as profecias que se realizaram, a defesa da autonomia do artista (“O gênio estava livre, seguia apenas suas próprias leis, e não mais se aviltava”), o elogio da reprodutibilidade técnica, evidentemente corporificada pela gravura (“porque uma gravura não é como um livro: um livro que não é bom, por isso mesmo é mau, enquanto uma gravura que se vê de uma passada de olhos sempre serve de comparação”) e da representação de temas contemporâneos, em detrimento dos clássicos, com base na justificativa de que é necessário buscar sempre a novidade, pois “As mais belas coisas com o passar do tempo se tornam comuns: o refrão é a língua dos burros”.

Em geral evito lentes cor-de-rosa para analisar o que quer que seja, mas devo dizer que esse acesso a uma quantidade inacreditável de fontes primárias que a internet possibilitou nos últimos anos tem sido, para mim, o que os americanos chamariam de uma “life changing experience”. Observar com meus próprios olhos aquilo que até então apenas via citado nos livros de outros autores, perceber a forma como todos esses livros dos séculos XIX, XVIII (e anteriores! Veremos alguns exemplos mais tarde, como o livreto publicado em homenagem à memória do falecido Agostino Carracci, no começo do século XVII) são interpretados, e mais do que tudo, poder eu mesma percorrer essa teia de idéias e aspirações congeladas no papel torna possível que, sem sair de minha casa (bem sei que por vários motivos quase sempre não é possível que seja de outro modo), eu realize as longas viagens, no tempo e no espaço, que considero realmente importantes. Como dar a ideia do que isso significa para alguém que, como eu, morre de curiosidade pelo passado?