quinta-feira, 27 de maio de 2010

Uma bengalada no ar: Laurence Sterne

quinta-feira, 27 de maio de 2010
1831 foi um ano agridoce para o romancista Balzac. Escreve muito e começa a ganhar muito dinheiro, e assim como ganha, gasta, para não falar das imensas dívidas remanescentes de seu fracasso como editor (experiência que será o mote de Ilusões Perdidas). Nesse mesmo concorrido ano – lembremos que Victor Hugo lança seu retumbante sucesso, Notre-Dame de Paris, que seria o estopim para a restauração da catedral homônima – publica um romance que chamará a atenção do público: La Peau de Chagrin (A pele de Chagrém, uma espécie de amuleto mágico ao qual recorre o protagonista, Rastignac). Não nos interessa nesse momento o romance em si, mas sim a capa da primeira edição. Prestem atenção: uma linha sinuosa e, abaixo, a menção a Tristram Shandy. O que será isso? A linha sinuosa é uma bengalada mostrada pelo narrador de outro romance, A vida e as opiniões do CavalheiroTristram Shandy [The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman], de Laurence Sterne (1713-1768), que começou a ser publicado em 1760. Nesse romance coisas inusitadas aparecem: há capítulo suprimido por ser muito superior aos outros, há páginas pintadas de negro, há linhas traçadas das mais espetaculares maneiras que procuram mostrar os possíveis desdobramentos da narrativa e há, como já mencionei, o desenho da dita bengalada. Como descrever o elegante movimento de uma bengala no ar? Não é mais fácil desenhá-lo? Foi isso que Tristram Shandy, muito logicamente, pensou. O surpreendente é que não apenas pensou, como de fato desenhou. Balzac era desesperado por Sterne, e eu confesso que também sou. Tristram Shandy é o livro que eu levaria para a tal ilha deserta, e se todo o engenho e brilhantismo humano fosse um prédio e tivesse um teto, tenho certeza de que este último seria composto pelas páginas desse romance que foi best-seller na Inglaterra setecentista. Os formalistas russos também adoravam Sterne, e José Paulo Paes não disfarça seu próprio encantamento quando escreve o prefácio à sua tradução do romance para o português. Mas por que tanto alvoroço, afinal, em torno de um alentado romance do século XVIII? Porque para nós que valorizamos a originalidade e a criatividade literária, é difícil encontrar outra fonte tão borbulhante quanto Tristram Shandy, o gentleman inglês que decide escrever sua autobiografia nos mínimos pormenores (incluindo os eventos externos e ainda seus pensamentos): os detalhes sobre ele, seus pais, o tioToby e seus cavalinhos de pau, são tantos que nas 599 páginas do livro Tristram narra apenas seus cinco primeiros anos de vida (nas palavras do próprio Tristram: “Em suma, a coisa não tem fim; ---- de minha parte, declaro ter dedicado a isso estas últimas seis semanas, imprimindo-lhe toda a velocidade que me foi possível, - e ainda nem sequer nasci”). Entremeadas às narrações dos fatos o autor coloca na pena de Shandy as mais variadas divagações: uma defesa da digressão (“as digressões são incontestavelmente a luz do sol, - são a vida, a alma da leitura”), um ataque a regras (“Tivesse eu o diabo de qualquer outra regra para guiar-me neste assunto – e lá tenho alguma – como faço todas as coisas sem regra nenhuma – eu a entortaria e a faria em pedaços, atirando-a depois ao fogo. – Estou por acaso arrebatado? Estou sim, já que o assunto o exige. – Bela história! Cumpre ao homem seguir regras – ou às regras segui-lo?”), as inacreditáveis especulações de seu pai (vejamos uma delas, aquela sobre o urso branco: “UM URSO BRANCO! Muito bem. Vi jamais algum? Poderia eu jamais ter visto algum? Irei jamais ver algum? Deveria eu ter jamais visto algum? Ou posso jamais ver algum? Teria eu visto um urso branco! (pois como posso imaginá-lo?) Se eu chegasse a ver um urso branco, o que deveria eu dizer? Se eu jamais chegasse a ver um urso branco, então o quê? Se não posso, devo ou vou ver um urso branco vivo; terei jamais visto a pele de algum? Cheguei jamais a ver algum pintado? - descrito? Não terei jamais sonhado com algum? Será que meu pai, mãe, tio, tia, irmãos ou irmãs jamais viram um urso branco? O que dariam para vê-lo? Como se comportariam? Como se teria comportado o urso branco? É feroz? Domado? Terrível? Áspero? Suave? Vale a pena ver um urso branco?-- Haverá nisso algum pecado? - Será melhor que um URSO PRETO?"

Tristram Shandy é um livro impossível de ser resumido, dada a complexidade de sua estrutura. Cada página é tão variada, tão diversa da anterior, que acabamos lendo para ter a experiência única de percorrê-las em seu conjunto, mais do que para apreender a história. Não posso deixar de concluir lembrando que Machado de Assis também leu com lupa o romance de Sterne, o que se percebe, conforme já muitas vezes apontado pela crítica, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas... como dizer isso de maneira gentil? Bom, ele jogou água na dinamite.