sábado, 29 de maio de 2010

Folheando L'Artiste

sábado, 29 de maio de 2010
Cá estou eu com outra velha revista, o primeiro ano do L’Artiste, Journal de la Littérature et des Beaux-Arts, publicado em 1831. Hoje, com a Internet, qualquer um pode olhá-lo em casa (http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k199553.r=). Além do domínio do francês, o grande problema continua sendo tudo o que se precisa saber para que seja possível perceber o valor daquelas páginas. Deixemos mais clara minha constatação, “flanando” pela revista: o artigo inaugural é de Etienne-Jean Delécluze (1781-1863), crítico de arte adepto do clássico e ex-aluno de David, que comenta vários quadros de Antoine-Jean Gros (1771-1835), pintor que justamente ocupou o posto sonhado por David, aquele de pintor oficial das campanhas de Napoleão. Um dos quadros a que Delécluze dá mais ênfase é a Peste de Jaffa (Napoleão visita os soldados que contraíram a peste pouco após a derrota no Egito), de 1804. Para ele Gros mereceu ser reconhecido por essa obra porque a pintou com a visão de um historiador, e soube dar ênfase também aos desvalidos – essa posição artística para ele é a ideal, tanto que conclui a crítica incitando os jovens artistas a continuar a cuidar, na composição, “como seus predecessores, dos pobres, dos desafortunados e dos vencidos” (traduções sempre minhas). Lembremos que o entusiasmo gerado pelas causas populares estava no ar em 1831. A Revolução de Julho de 1830 ainda era recente na memória e Luís-Filipe ainda deixava uma boa margem de liberdade à imprensa. Tal Revolução significava, entre tantas outras coisas, a vitória do Romantismo e a redenção de seu máximo herói, Napoleão. Assim sendo, não estranha que Gros apareça já na primeira página, nem que algumas páginas após surja a própria imagem de Napoleão em 1814, reproduzida em uma litografia da Imprimerie Lemercier (a maior casa de impressões litográficas da França na primeira metade do século XIX). A nota sombria é o destino de Gros, uma espécie de metáfora do destino da própria Revolução de Julho: em 1835 ele se joga no Sena, alegando estar farto da vida e dos problemas de subsistência.

Continuemos a flanar, mais rápido agora: encontramos a seguir uma resenha de Rouge et Noir (O vermelho e o negro, de Stendhal, facílimo de encontrar em português), que havia acabado de ser publicado, no final de 1830. O resenhista anônimo (Jules Janin, principal editor à época, talvez?) é profético: “É um livro que talvez um dia faça sucesso, e que está no mundo há grandes três meses. As publicações do autor envelhecem lentamente. Ele será sem dúvida conhecido pela posteridade, mas seus contemporâneos o ignoram”.

Há muito mais: uma descrição de La Bataille de Navarin, o panorama de Langlois que muito sucesso fazia à época, de autoria de A. Jal.; Kressler, conte fantastique, um inédito de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), escritor e músico alemão falecido havia pouco, idolatrado pelos românticos; uma resenha de Plik et Plok, de Eugène Sue (1804-1857), que com George Sand e Balzac formaria o triunvirato do romance social das décadas de 1830 e 1840; a ousada republicação de trechos dos Salões de Diderot; a resenha do recém-lançado romance Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo; a primeira parte de outro conte phantastique, dessa vez de Balzac, Le chef-d’oeuvre inconnu (A obra-prima desconhecida), em sua versão inicial (o final que lemos hoje foi acrescentado mais tarde); comentários sobre os dioramas de Daguerre, criados por ele em 1822, e sobre a moderna técnica da litografia, e ainda uma carta de Eugène Delacroix (1798-1863) intitulada Ao Diretor de l’Artiste, carta sobre os concursos, em que o pintor critica o entusiasmo que toma conta da classe artística com o incentivo às premiações do Salão. Delacroix conclui sua argumentação com um elogio ao Diretor: “Você nos oferece suas colunas para nelas depositarmos nossas queixas, você é praticamente o único que a política não invadiu. Mantenha-se firme, senhor; resista a essa torrente; falemos de música, de pintura, de poesia, o senhor verá chegar até nós todos os que conferem o primeiro posto aos prazeres da imaginação”.

Nancy Ann Roth, em um artigo chamado “L’Artiste” and “L’Art pour l’Art”: The New Cultural Journalism in the July Monarchy, a partir da análise de manifestações como as de Delacroix, pretende que L’Artiste tenha sido o primeiro modelo de periódico exclusivamente dedicado às artes em seu sentido romântico, como campo isolado de todos os outros, especialmente da política. Entendamos isso em sentido bem amplo. Como pudemos ver, através das seleções de textos com maior ênfase em crítica social ou institucional, e das menções textuais e iconográficas a Napoleão, para não falar em outras litografias, como a última que reproduzo, “Eu não sei ler”, a política continua lá, evidentemente, mas agora vinculada à utopia social e situada, portanto, um pouco mais à esquerda.