sexta-feira, 21 de maio de 2010

Odiando com Baudelaire

sexta-feira, 21 de maio de 2010
Há bastante tempo estou às voltas com Baudelaire. Na adolescência li algumas das Flores do Mal, mas me impressionei mesmo com os Pequenos Poemas em Prosa (Os olhos dos pobres é insuperável). No meu pós-doutorado em artes visuais dei mais atenção, como seria de se esperar, aos Salões de 1845, 1846, 1855 e 1859. Quando era chegada a hora de preparar aulas para turmas de graduação e de pós-graduação, eu procurava extrair trechos interessantes desses Salões para “ilustrar” o pensamento de Baudelaire sobre artes, evitando assim me deter apenas em seu texto mais famoso, O pintor da vida moderna (1863 – não consigo evitar a associação do título com o Modern Painters de John Ruskin, da década de 1840, é provável que seja uma alusão, pois é quase certo que Baudelaire era leitor de Ruskin; aliás, como escapar de Ruskin quando se é leitor habitual do Illustrated London News?). Assim, primeiro fiz a seleção, mas só depois, revendo, remexendo nos meus velhos power points (que faço sempre com fundo negro e letras brancas, em uma eterna referência às aberturas dos meus queridos filmes de Woody Allen), percebi a lógica algo folhetinesca que regia boa parte dos trechos que escolhi: eu privilegiei o ódio de Baudelaire, destaquei momentos passionais, frases de efeito e afirmações bombásticas, justamente aquilo que corrobora em muito a imagem de enfant terrible que hoje continuamos a fazer dele. Alguns exemplos práticos: em 1846 um Baudelaire ainda jovenzinho, desejoso de arriver no meio intelectual parisiense como os Rastignac e os Lucien de Rubempré balzaquianos, ainda treinando a si mesmo na crítica através de cópias e por vezes pequenos plágios dos Salões de Diderot, ataca com extrema virulência a pintura de Horace Vernet, o popularíssimo especialista em cenas militares que, conforme o próprio Baudelaire, decorava “a cabana do pobre aldeão e a mansarda do alegre estudante, a sala das casas de tolerância mais miseráveis e os palácios de nossos reis” (tradução minha, como todas as outras que aparecerão aqui). Pouco mais adiante Baudelaire nomeia seus sentimentos para com Vernet: “O Sr. Horace Vernet é um militar que pinta. Eu odeio essa arte improvisada ao toque do tambor, [...] essa pintura fabricada a golpes de pistola”. Não deixa de ser libertador ler agora essas palavras, ver um ódio estético ser afirmado assim, de modo tão direto e ao mesmo tempo tão engenhoso. Mesmo agora requer alguma coragem dizer, de algum artista nosso contemporâneo, que sua arte é “uma masturbação ágil e frequente, uma irritação da epiderme” (esclareçamos esse ponto: na época de Baudelaire, trata-se de uma ofensa). Neste caso em particular, justiça seja feita, o ódio tem algo de juvenil – em O pintor da vida moderna, escrito, como já mencionei, quase vinte anos depois do Salão de 1846, Baudelaire cita Vernet novamente, dessa vez recorrendo a termos bem mais conciliadores.

Em 1859 a amizade entre Baudelaire e os realistas (em sentido amplo) já havia esfriado. Sob o rótulo de realistas pensemos não apenas em Champfleury e Courbet, mas também naqueles membros da École de Barbizon que praticavam o que se entendia como arte “socialista”, tal como Millet. Eis o pecado de Millet, nas “etéreas” palavras de Baudelaire: “Seus camponeses são pedantes que possuem uma alta opinião de si mesmos. Eles exibem uma maneira de embrutecimento pesada e fatal que me dá a vontade de odiá-los”. Outra vez o ódio enunciado. Baudelaire odeia essa romantização das classes que hoje chamamos de “oprimidas” - nelas parece frequentemente ver apenas broncos que são o exato oposto do dândi. E se essas classes tomassem o poder? Qual seria o destino da cultura e da sofisticação do “homem cosmopolita”? Que tipo de arte teríamos, se tal temeridade ocorresse? Segundo o próprio Baudelaire, em Pobre Bélgica!, um de seus últimos escritos, cujo teor agressivo parte da crítica prefere atribuir à galopante doença do poeta e ao desagrado com o auto-imposto exílio belga, teríamos, nesse caso, nada menos do que o que se podia encontrar na Bélgica: “Na Bélgica, não há arte: a arte se retirou do país. Não há artistas [...]. A composição, coisa desconhecida. Filosofia desses brutos, filosofia à Courbet. Pintar apenas ao que se vê (Logo você não pintará o que eu não vejo)”. O prosaísmo popular, no entendimento de Baudelaire, é inimigo da qualidade máxima da grande arte e do grande artista, a imaginação, daí o ódio. Perturbador observar o quanto o medo de Baudelaire, sua suspeita com relação ao “popular” (um dos motivos de seu rompimento com Courbet e Champfleury, diga-se de passagem) ainda nos assombra.

Até aqui odiamos com Baudelaire, mas façamos esse sempre hercúleo esforço de sermos justos. Baudelaire podia odiar como persona pública, mas não confundamos alhos com bugalhos: partilhando do paradoxo de Nietzsche, poucas vezes se pôde ver alguém tão doce e gentil no trato pessoal, pelo menos a crer no retrato traçado por um de seus grandes amigos, o fotógrafo Nadar, em Charles Baudelaire Intime – Le poète vierge: Baudelaire odeia as vias de fato, e seus ódios literários e estéticos são mais um dos exercícios probabilísticos possibilitado pela mãe de todas as artes, a imaginação.