Há bastante tempo estou às voltas com Baudelaire. Na adolescência li algumas das Flores do Mal, mas me impressionei mesmo com os Pequenos Poemas em Prosa (Os olhos dos pobres é insuperável). No meu pós-doutorado em artes visuais dei mais atenção, como seria de se esperar, aos Salões de 1845, 1846, 1855 e 1859. Quando era chegada a hora de preparar aulas para turmas de graduação e de pós-graduação, eu procurava extrair trechos interessantes desses Salões para “ilustrar” o pensamento de Baudelaire sobre artes, evitando assim me deter apenas em seu texto mais famoso, O pintor da vida moderna (1863 – não consigo evitar a associação do título com o Modern Painters de John Ruskin, da década de 1840, é provável que seja uma alusão, pois é quase certo que Baudelaire era leitor de Ruskin; aliás, como escapar de Ruskin quando se é leitor habitual do Illustrated London News?). Assim, primeiro fiz a seleção, mas só depois, revendo, remexendo nos meus velhos power points (que faço sempre com fundo negro e letras brancas, em uma eterna referência às aberturas dos meus queridos filmes de Woody Allen), percebi a lógica algo folhetinesca que regia boa parte dos trechos que escolhi: eu privilegiei o ódio de Baudelaire, destaquei momentos passionais, frases de efeito e afirmações bombásticas, justamente aquilo que corrobora em muito a imagem de enfant terrible que hoje continuamos a fazer dele. Alguns exemplos práticos: em 1846 um Baudelaire ainda jovenzinho, desejoso de arriver no meio intelectual parisiense como os Rastignac e os Lucien de Rubempré balzaquianos, ainda treinando a si mesmo na crítica através de cópias e por vezes pequenos plágios dos Salões de Diderot, ataca com extrema virulência a pintura de Horace Vernet, o popularíssimo especialista em cenas militares que, conforme o próprio Baudelaire, decorava “a cabana do pobre aldeão e a mansarda do alegre estudante, a sala das casas de tolerância mais miseráveis e os palácios de nossos reis” (tradução minha, como todas as outras que aparecerão aqui). Pouco mais adiante Baudelaire nomeia seus sentimentos para com Vernet: “O Sr. Horace Vernet é um militar que pinta. Eu odeio essa arte improvisada ao toque do tambor, [...] essa pintura fabricada a golpes de pistola”. Não deixa de ser libertador ler agora essas palavras, ver um ódio estético ser afirmado assim, de modo tão direto e ao mesmo tempo tão engenhoso. Mesmo agora requer alguma coragem dizer, de algum artista nosso contemporâneo, que sua arte é “uma masturbação ágil e frequente, uma irritação da epiderme” (esclareçamos esse ponto: na época de Baudelaire, trata-se de uma ofensa). Neste caso em particular, justiça seja feita, o ódio tem algo de juvenil – em O pintor da vida moderna, escrito, como já mencionei, quase vinte anos depois do Salão de 1846, Baudelaire cita Vernet novamente, dessa vez recorrendo a termos bem mais conciliadores.
Em 1859 a amizade entre Baudelaire e os realistas (em sentido amplo) já havia esfriado. Sob o rótulo de realistas pensemos não apenas em Champfleury e Courbet, mas também naqueles membros da École de Barbizon que praticavam o que se entendia como arte “socialista”, tal como Millet. Eis o pecado de Millet, nas “etéreas” palavras de Baudelaire: “Seus camponeses são pedantes que possuem uma alta opinião de si mesmos. Eles exibem uma maneira de embrutecimento pesada e fatal que me dá a vontade de odiá-los”. Outra vez o ódio enunciado. Baudelaire odeia essa romantização das classes que hoje chamamos de “oprimidas” - nelas parece frequentemente ver apenas broncos que são o exato oposto do dândi. E se essas classes tomassem o poder? Qual seria o destino da cultura e da sofisticação do “homem cosmopolita”? Que tipo de arte teríamos, se tal temeridade ocorresse? Segundo o próprio Baudelaire, em Pobre Bélgica!, um de seus últimos escritos, cujo teor agressivo parte da crítica prefere atribuir à galopante doença do poeta e ao desagrado com o auto-imposto exílio belga, teríamos, nesse caso, nada menos do que o que se podia encontrar na Bélgica: “Na Bélgica, não há arte: a arte se retirou do país. Não há artistas [...]. A composição, coisa desconhecida. Filosofia desses brutos, filosofia à Courbet. Pintar apenas ao que se vê (Logo você não pintará o que eu não vejo)”. O prosaísmo popular, no entendimento de Baudelaire, é inimigo da qualidade máxima da grande arte e do grande artista, a imaginação, daí o ódio. Perturbador observar o quanto o medo de Baudelaire, sua suspeita com relação ao “popular” (um dos motivos de seu rompimento com Courbet e Champfleury, diga-se de passagem) ainda nos assombra.
Até aqui odiamos com Baudelaire, mas façamos esse sempre hercúleo esforço de sermos justos. Baudelaire podia odiar como persona pública, mas não confundamos alhos com bugalhos: partilhando do paradoxo de Nietzsche, poucas vezes se pôde ver alguém tão doce e gentil no trato pessoal, pelo menos a crer no retrato traçado por um de seus grandes amigos, o fotógrafo Nadar, em Charles Baudelaire Intime – Le poète vierge: Baudelaire odeia as vias de fato, e seus ódios literários e estéticos são mais um dos exercícios probabilísticos possibilitado pela mãe de todas as artes, a imaginação.
Em 1859 a amizade entre Baudelaire e os realistas (em sentido amplo) já havia esfriado. Sob o rótulo de realistas pensemos não apenas em Champfleury e Courbet, mas também naqueles membros da École de Barbizon que praticavam o que se entendia como arte “socialista”, tal como Millet. Eis o pecado de Millet, nas “etéreas” palavras de Baudelaire: “Seus camponeses são pedantes que possuem uma alta opinião de si mesmos. Eles exibem uma maneira de embrutecimento pesada e fatal que me dá a vontade de odiá-los”. Outra vez o ódio enunciado. Baudelaire odeia essa romantização das classes que hoje chamamos de “oprimidas” - nelas parece frequentemente ver apenas broncos que são o exato oposto do dândi. E se essas classes tomassem o poder? Qual seria o destino da cultura e da sofisticação do “homem cosmopolita”? Que tipo de arte teríamos, se tal temeridade ocorresse? Segundo o próprio Baudelaire, em Pobre Bélgica!, um de seus últimos escritos, cujo teor agressivo parte da crítica prefere atribuir à galopante doença do poeta e ao desagrado com o auto-imposto exílio belga, teríamos, nesse caso, nada menos do que o que se podia encontrar na Bélgica: “Na Bélgica, não há arte: a arte se retirou do país. Não há artistas [...]. A composição, coisa desconhecida. Filosofia desses brutos, filosofia à Courbet. Pintar apenas ao que se vê (Logo você não pintará o que eu não vejo)”. O prosaísmo popular, no entendimento de Baudelaire, é inimigo da qualidade máxima da grande arte e do grande artista, a imaginação, daí o ódio. Perturbador observar o quanto o medo de Baudelaire, sua suspeita com relação ao “popular” (um dos motivos de seu rompimento com Courbet e Champfleury, diga-se de passagem) ainda nos assombra.
Até aqui odiamos com Baudelaire, mas façamos esse sempre hercúleo esforço de sermos justos. Baudelaire podia odiar como persona pública, mas não confundamos alhos com bugalhos: partilhando do paradoxo de Nietzsche, poucas vezes se pôde ver alguém tão doce e gentil no trato pessoal, pelo menos a crer no retrato traçado por um de seus grandes amigos, o fotógrafo Nadar, em Charles Baudelaire Intime – Le poète vierge: Baudelaire odeia as vias de fato, e seus ódios literários e estéticos são mais um dos exercícios probabilísticos possibilitado pela mãe de todas as artes, a imaginação.