terça-feira, 25 de maio de 2010

Como posso te fazer ler?

terça-feira, 25 de maio de 2010
Adianto a resposta à minha própria pergunta: não posso te fazer ler. No ensino superior, se fores meu aluno, posso exigir trabalhos a partir das leituras indicadas e podes realizá-los através de uma leitura burocrática. Mas não me refiro a isso propriamente. Usamos essa palavra geral, leitura, para abranger uma gama de experiências incrivelmente diversas. Posso passar os olhos pelas linhas de um livro em um momento de devaneio, e não registrar nada do que li. Posso ler com atenção, e nada compreender, porque o texto escolhido parece escrito em grego para mim – menciona nomes que desconheço, lugares em que nunca estive, ou expõe idéias que não me agradam, ou ainda idéias que não consigo entender, independente do ângulo pelo qual as aborde. Eu posso ler e considerar essa leitura em particular irrelevante e inútil, ou, radicalizando um pouco, posso considerar toda e qualquer leitura desnecessária para minha felicidade nesta vida. De fato a leitura não traz necessariamente felicidade, eis aí algo que ela não pode prometer. A leitura, sendo bem franca, em certas circunstâncias pode mesmo ser nociva. Mas ainda assim, como posso te fazer ler? As pessoas desabituadas ao exercício da leitura (sim, sim, trata-se de um exercício físico também, ler exige e ler cansa) podem ficar com sono ainda no primeiro parágrafo. O sono pode surgir também quando lidamos com um texto diferente daqueles com os quais estamos acostumados. Tudo o que eu escrevi até aqui se aplica a textos em geral, mas agora precisarei afunilar os argumentos. Como eu posso te fazer ler textos considerados eruditos se não estás acostumado a eles? Por exemplo, Baudelaire escrevia para jornais, e hoje faz parte de nosso cânone erudito. O que posso te dizer para te convencer a lê-lo? Pensa bem, são muitos os empecilhos. Ele cita muitas pessoas que talvez não conheças, e o pior de tudo, usa ironia. Ele hoje é uma autoridade póstuma e talvez comeces a leitura (caso te decidas por esse passo difícil) com um ar reverente, disposto a levar a sério tudo o que o autor diz. Assim sendo, como vais perceber a ironia se não consegues destrinchar bem nem o que ele claramente parece estar levando a sério? Não é impossível que a primeira leitura de um texto como esse pareça aborrecida, cansativa, atordoante. O texto parece confuso, o autor não escreve tão bem quanto dizem, pode ser teu pensamento inicial. Mas não sei exatamente por que, podes insistir. Lês o texto de novo. Não, não, as coisas não melhoram, continuas sem entender. Imaginemos um pouco. Suponhamos que voltes ao texto anos depois, depois de passar por várias leituras de outros autores. Posso prometer que dessa vez vais ter sucesso? Não, de modo algum. O texto pode continuar a te parecer sem sentido e aborrecido. Não posso nem mesmo te prometer que a leitura metódica e continuada possa te garantir uma alta competência de leitura. Isso porque a leitura é apenas a ponta do iceberg. A leitura pode te servir como combustível para a construção de um mundo imaginário, e esse mundo pode ou não ter relação com os universos puramente livrescos. Sem essa tua franca atividade de ler atentamente e selecionar do que lês o que te importa no momento (ou o que não te importa mas, por algum motivo, te intriga), sem a constante comparação desses elementos com aqueles que destacarás nas leituras do futuro, pelo menos para uma leitura erudita não estarás preparado. Tal leitura, no entanto, como podes deduzir, é uma ínfima parcela de todas as leituras possíveis. De todo modo, devo te dizer que essa trabalhosa experiência, por alguns momentos (ainda que eu nem mesmo possa assegurar que eles ocorram para todos) pode te proporcionar o tipo de experiência sublime que talvez conseguisses alcançar, por exemplo, convivendo com as pessoas – podes te deparar com uma nuance inesperada que te fará meditar sobre o que pensavas conhecer; podes entender uma ironia por séculos esquecida, e trazer de volta à vida por alguns segundos o pensamento que estava morto; podes te irritar, te enfurecer e ter vontade de responder ao autor grosseiramente. Podes terminar a leitura com sono, como já disse, mas também podes te sentir mais vivo do que nunca. Não posso te obrigar a ler, absolutamente. Reitero que há a possibilidade de ser uma má experiência. Ainda assim, e talvez isso desperte o jogador que há em ti, não é de pouca importância a constatação de que... pode ser bom.