quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Sim, Winckelmann lia Bayle

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011



Lembro de ter mencionado, no texto Pierre Bayle, como contê-lo?, que trataria da relação intelectual entre Winckelmann e Bayle (relação póstuma, é claro) em Sim, Winckelmann lia Bayle. É chegada a hora de cumprir o prometido.


Tenho uma cópia digital da Histoire de l’art chez les anciens, edição francesa de Yverdon, de 1784. O prefácio de Winckelmann que consta nessa edição é um verdadeiro presente para os que amam a historiografia em geral, e a historiografia da arte, em particular, e também uma fonte de inesgotáveis paralelos e associações para os que amam, muito especialmente, Pierre Bayle. Logo no começo Winckelmann diz a que veio: nada de enfileirar biografias de artistas (uma não tão sutil agulhada em Vasari?), mas sim estudar algo muito superior, a própria natureza da arte.


Winckelmann, nos parágrafos seguintes de seu prefácio, declara guerra aos historiadores da arte de seu tempo, que redigiam seus livros amparados em textos tradicionais, e não na análise de monumentos. Ao fazer isso Winckelmann constrói bases teóricas para as práticas do antiquários. Mas escutemos o próprio Winckelmann, em traduções sempre minhas:

“Já apareceram algumas obras com o título de História da Arte. Elas não se parecem com isso a não ser no nome. Os autores que até aqui escreveram sobre arte, de modo algum estudaram a história nos monumentos, mas somente nos livros. Tomei um caminho oposto. Eles de modo algum estão familiarizados com a arte. Eles apenas puderam escrever aquilo que leram ou ouviram dizer; e eu, eu falei apenas do que vi. Nenhum desses escritores trata da natureza da arte ou do que a constitui intrinsecamente”.

Para Winckelmann, os historiadores da arte ou usam o texto para exibir erudição e tecer elogios a seus patronos, ou simplesmente “colam” sua obra em uma obra mais antiga e parafraseiam as informações ali contidas. A obra que mais oferece arrimo a esses historiadores é, sem dúvida, a História Natural de Plínio, o Velho (volumes 34 a 36), já explorada por Vasari nas Vidas.

Acusações genéricas não fazem o estilo de Winckelmann. É por isso que ele, como se diz popularmente, logo dá nome aos bois: os alvos de suas críticas são, por exemplo, a Histoire des Arts qui ont rapport au Dessein, de Pierre Monier (1698), a Histoire de la peinture ancienne, extraite de l’Histoire Naturelle de Pline..., de David Durand (1725), e o Treatise on Ancient Painting, de George Turnbull (1740). O pecado cometido por todos eles é o mesmo que já havia pouco antes anunciado: “Procuraremos em vão conhecimentos sólidos e bons julgamentos nas grandes e magníficas obras que apareceram até aqui, contendo descrições de estátuas antigas e de outras antiguidades”. Winckelmann desenvolve, em seguida, seu argumento:


“Mas onde estão as descrições que nos indicam as belezas reais de uma estátua? Que escritor as examinou com os olhos de um artista esclarecido? O que se escreveu em nossa época sobre esse gênero não vale mais do que as estátuas de Callistrate: esse mísero sofista teria podido ainda oferecer outras descrições de estátuas sem ter visto nenhuma”.


Antes de continuarmos a ler as acaloradas críticas de Winckelmann, vejamos quem eram esses três historiadores da arte mencionados por ele, e o que exatamente escreviam. Não deixemos de observar, adianto, a heterogeneidade de suas formações e interesses.


Desenho de Monier, sem data: Moisés e as filhas de Jethro

Pierre Monier (1639-1703) era um bem-sucedido pintor da Academia Francesa que, em seu texto, defende diligentemente as regras acadêmicas de desenho (ele ganhou o Prix de Rome em 1663), e desenho, bem entendido, em sentido amplo, amplo o suficiente para incluir a gravura. Em sua Histoire des Arts Monier revela preocupação historiográfica quando enumera, em rodapé, no Prefácio, os principais pintores modernos que escreveram sobre pintura depois de Alberti e Da Vinci (Vasari, Armenini, Dürer, a lista é um tanto extensa). Ele, como vários outros na época, cita Plutarco, Tácito e, principalmente, Plínio o Velho. A genealogia das artes começa em Deus, o primeiro desenhista, e passa por assírios, egípcios, fenícios, gregos, israelitas, babilônios, persas, africanos, romanos, bárbaros, italianos modernos, sem esquecer, para minha surpresa, os índios do México, como se lê na seguinte passagem que tirei do Prefácio:

“Na descoberta da América se soube que o desenho era praticado, ainda que esses povos não tivessem nenhum conhecimento da escrita, e isso particularmente no Reino do México, onde as pessoas trabalhavam em pintura e em escultura. Porque entre vários ricos presentes que seu Rei Montezuma ofertou a Ferdinand Cortés, havia livros de figuras, no lugar de letras, que têm relação com os Hieróglifos dos egípcios [...]”.

David Durand (1680-1763), por sua vez, em Histoire de la peinture ancienne, livro a que Winckelmann provavelmente se refere, apresenta nada mais do que uma edição bilíngue e anotada da onipresente parte da História Natural, de Plínio o Velho, que trata da história da arte antiga. Durand, huguenote francês radicado na Inglaterra desde 1707, foi grande amigo de Bayle (mundo pequeno...).

George Turnbull (1698-1748), enfim, escreveu sobre arte por uma questão contingencial: o que interessava a ele era analisar as repercussões éticas observáveis nesse campo. Turnbull era clérigo anglicano e figura relevante do chamado Iluminismo escocês.


Há outras vítimas de Winckelmann, e não posso deixar de rir diante da presença de espírito de seus comentários. Giovanni Pietro Pignaroli, autor de Antichitá di Roma (1709) e de Vestigi di Roma (1744), é uma delas, e Winckelmann o acusa de erro de “identificação”, uma crítica tipicamente bayleana (erros de datação, de atribuição de autoria de fatos, de localização geográfica, tudo isso deliciava Bayle):


“Duas estátuas que Pinaroli nos apresenta como aquela de Herfilie, esposa de Rômulo, e como uma Vênus, pertencem às cabeças de Lucrécia e de César, feitas ad vivum segundo o catálogo das estátuas do Conde de Pembroke e do gabinete do Cardeal de Polignac”.


O pintor Jonathan Richardson (1665-1745), mais uma vítima, publicou em 1722, junto com o filho, recém-chegado da Itália e também chamado Jonathan Richardson (1694-1771), An Account of Some of the Statues, Bas-Reliefs, Drawings, and Pictures in Italy. Winckelmann é especialmente cruel:

“Richardson nos deu uma descrição dos palácios e das casas de campanha de Roma, assim como das estátuas que ali se encontravam, como um homem que tivesse visto todas essas coisas em um sonho”.

Intrigada com o duro veredito, fui atrás da supracitada obra dos Richardson e selecionei uma passagem sobre a Villa Borghese, narrada por Richardson filho, que esteve mesmo diante da estátua, na verdade o contrário do subentendido no comentário de Winckelmann, que dá a entender serem seus comentários baseados em conhecimento de segunda mão:

“Sêneca na banheira, prodigiosa expressão de um ancião fraco! Perdeu tanto sangue que dificilmente se sustenta com as próprias pernas [...]. Seu ar é selvagem, e muito desagradável, pois se essa estátua tem algum defeito, penso que é o de que parece um criminoso por muito tempo mantido em um calabouço antes de sua execução; pois seu cabelo está emaranhado [...] e sua face, e toda a sua figura têm uma aparente falta de dignidade”.

Em outras palavras, Richardson seguiu o conselho máximo de Winckelmann e “viu” a obra – mais do que um problema acerca do ver e do ouvir, temos aqui um problema de modo de ver, nuance que passou despercebida ao historiador alemão. O que mais tarde será chamado de “impressionismo crítico”, travestido de história da arte, pode ser aplicado, quem diria, como nos mostra o trecho que acabamos de ler, mesmo a uma experiência real com os objetos artísticos.

O mais curioso nisso tudo é que Winckelmann critica essa tradição textual que se firma na história da arte recorrendo, ele mesmo, a uma discussão historiográfica e se apoiando em estratégias aprendidas na leitura atenta do Dicionário Histórico de Bayle, o mestre da crítica textual e da revisão da historiografia. Ou seja, Winckelmann, ao defender a consulta a documentos (ele não consulta catálogos de coleção?) e a elevação do monumento ao estatuto de documento que também pode ser “lido”, faz coro aos iluministas como Voltaire (que defende o estudo dos monumentos como fonte primária, por parte dos historiadores, em seu verbete História para a Encyclopédie), alimentados, todos eles, justamente pela leitura de Bayle. Irônico também é que Winckelmann, depois de morto, tenha deixado o posto de “acusador” e passado para o de “acusado”, pelo menos no que se refere ao crime inafiançável da falta para com a verdade na elaboração de uma obra de história da arte.

Sem perder nada disso de vista, concluamos, então, com a promessa de Winckelmann, que, mesmo não totalmente cumprida, ainda encanta pela energia:

“Tratei de evitar todos esses defeitos nessa História da Arte, e sobretudo de dizer apenas a verdade. Tive [...] as ocasiões mais favoráveis para examinar as produções da arte antiga; nada poupei para adquirir os conhecimentos necessários; e após muito estudo, pesquisas e observações acreditei que estivesse em condições de empreender uma obra dessa importância”.