terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Rabelaismania

terça-feira, 11 de janeiro de 2011
A água prestes a invadir o refúgio dos heróis de Tangled

Fui com minha filha dia desses assistir a mais uma animação Disney, Tangled (Enrolados, em português), a releitura da história de Rapunzel. Em certo momento do enredo Rapunzel e seu amado, perseguidos pelos inimigos, ficam presos em uma galeria de pedra, que rapidamente se enche de água. Eles estão quase completamente imersos na água quando a salvação que aguardamos (afinal, quantas vezes não vimos personagens procurando uma saída para a água que não cessa de subir em um ambiente claustrofóbico?), enfim, aparece, e eles conseguem escapar sãos e salvos. Giordano Bruno recomendava as mais extravagantes associações aos que compravam seus livros sobre a arte mnemônica, logo, estou confortável ao afirmar que, quando penso em determinados escritores do século XVI, que viveram o surgimento da Contra-Reforma, logo me vem à mente justamente essa imagem de alguém preso em um recinto fechado, que se enche de água, aparentemente sem escapatória. Rabelais, como veremos aqui, para mim estava lá, com a água até a cintura; Cardano também, com a água (posso ver com nitidez) até o pescoço, e Giordano Bruno, bom, em definitivo estava lá, mas como não tinha os cabelos mágicos que salvaram Rapunzel, não pôde impedir que a água cumprisse o seu destino de encher a sala, e todos sabemos o que acabou acontecendo com ele. Sobre Cardano e Bruno irei escrever em outra oportunidade. Hoje o meu assunto, como o título deixa bem claro, é Rabelais.

Ilustração de De Umbris Idearum (A sombra das ideias), livro publicado por Giordano Bruno em 1582, um exemplo de associação entre imagens e letras como recurso mnemônico

François Rabelais (1483/84-1543) era religioso, admirador de Erasmo e de Boccaccio, e protegido pela estimulante corte de Francisco I e de sua irmã, Margarida de Navarra. Em 1532 Rabelais publica Pantagruel, livro considerado obsceno pela Sorbonne já no ano seguinte. A própria Margarida de Navarra, que escreveria o Heptameron inspirada por sua leitura de Boccaccio, teve também um livro censurado pela Sorbonne. Se na corte de Francisco I vários ideiais do humanismo renascentista eram acalentados, a Sorbonne, por outro lado, se apresentava como um bastião da defesa do catolicismo contra o crescente perigo huguenote na França. Choques entre essas posturas se fizeram sentir em mais de um momento.

Em 1534 Rabelais publica a história de Gargantua, pai de Pantagruel. A obra, como a anterior, faz sucesso, e a Sorbonne coloca ambas na lista dos livros censurados entre 1543 e 1544.

A água, pelo menos para mim, começa a subir no inexpugnável cubículo de Rabelais em 1546, quando ele publica o chamado III Livro, continuação das aventuras dos renomados gigantes. Nesse mesmo ano é aberto o Concílio de Trento, que discutiria estratégias para combater os movimentos reformistas religiosos que se alastram pela Europa. Desgraçadamente, para Rabelais, Francisco I morre apenas um ano depois, em 1547. O escritor, ainda assim, mesmo com a água já pelos joelhos, consegue encontrar protetores. O clima é cada vez mais adverso: de 1550 em diante vejo a água na altura de seu peito, subindo sempre, na medida em que é cada vez mais insistentemente acusado de libertinagem, não apenas por católicos (para os quais ele era um reformista), mas também por protestantes (para os quais ele era, muitas vezes, um perigoso ateu – o próprio Calvino o retrata como um ateu materialista em De scandalis, de
1550).

A análise detalhada das diversas acusações que Rabelais recebe ainda em vida pode ser encontrada no hoje clássico O problema da incredulidade no século XVI – a religião de Rabelais, de Lucien Febvre. O que posso dizer, para concluir essa parte sobre o impacto do Rabelais vivo, é que em 1552, com a água começando a tocar seu queixo, Rabelais publica o Livro IV (guardemos esse livro, pois retornarei a ele). Um ano depois, prudentemente, morre.

Se eu dissesse que a recepção da obra de Rabelais, nos séculos seguintes, foi homogênea e pacata, estaria mentindo. Os padres da Sorbonne continuam no seu encalço. Entre esses, um dos mais ferozes foi o jesuíta François Garasse (1585-1631). Vejamos minha tradução, a seguir, do parágrafo final da hoje divertida Doctrine curieuse des beaux esprits de ce temps ou pretendus tels... (1623). Poucas vezes vi exemplo mais bem acabado da crítica do tipo “não li, não gostei”:

“Além e acima dessas três ordens de livros, os Libertinos têm nas mãos Rabelais, como o Enchiridion da Libertinagem. Esse vagabundo não merece nem mesmo que falemos dele: digo somente que para bem qualificá-lo é preciso dizer dele que é a peste e a gangrena da devoção, é impossível ler uma página sua sem perigo de ofender Deus mortalmente, digo mesmo que isso não seria de modo algum permitido pelas censuras eclesiásticas. Protesto em consciência que jamais li dele sequer quatro linhas seguidas, mas conforme o que reportou sobre ele as Obras do Mestre Estienne Pasquier, as quais folheei de modo assaz diligente, estimo que Rabelais seja um escritor muito maldito e pernicioso, que suga pouco a pouco o espírito da piedade, que rouba insensivelmente o homem de si mesmo, que aniquila o sentimento de religião [...]. E nossos Ateístas, se não cortarmos suas raízes, [...], estão a ponto de nos fazer ver estranhas e horríveis desgraças”.

Seria injusta se dissesse que antes do século XVIII Rabelais não contava com alguns defensores de peso. Montaigne, por exemplo, em seu ensaio Des Livres (1580), defendia que a leitura de Rabelais era tão agradável quanto a de Boccaccio.

No entanto, é do século XVIII em diante que Rabelais terá muito melhor sorte, com a instauração do que podemos, tranquilamente, chamar de Rabelaismania. Fiquemos apenas em dois exemplos iluministas, Laurence Sterne e Voltaire, meus velhos amigos. Sterne escreveu dois pequenos capítulos que constituem o
Fragmento à maneira de Rabelais, publicado postumamente (consultei uma edição de 1776). Alguns personagens de Rabelais (como Panúrgio) e outros inventados por Sterne (Longinus Rabelaicus, a "sutileza" do nome me encanta...) discutem a elaboração da Kerukopaedia (definida como “a arte de fazer ‘em”, o que quer que venha a ser isso). É apresentado, ainda, o impressionante efeito das lágrimas de Homenas (um dos personagens descritos) sobre sua alma – elas caem líquidas, se refrigeram, se precipitam e temperam seu discurso, resultando em um solilóquio.

Já Voltaire publicou em 1768 as Lettres sur Rabelais (na realidade a primeira é sobre Rabelais e as outras sobre outros autores). Em seu texto, pouco morde e muito assopra, como veremos adiante. Rabelais é obsceno, tudo bem, mas o significado político de sua obra é ocultado pelos intérpretes tradicionais:

“Seu livro na verdade é um amontoado do mais impertinente e do mais grosseiro lixo que um Monge bêbado pudesse vomitar; mas é preciso também confessar que é uma Sátira muito curiosa do Papa, da Igreja, e de todos os eventos de seu tempo; ele quis se proteger sob a máscara da Loucura [...]” (tradução minha).

Cabe ao arguto Voltaire, em sua própria opinião, reestabelecer a leitura correta de Rabelais, afinal

“Jamais esse livro foi defendido na França; porque nele tudo foi escondido sob uma pilha de extravagâncias que jamais deram a oportunidade de destrinchar a verdadeira finalidade do autor” (tradução minha).


Rabelais é crescentemente politizado no século XIX. Precursor dos ateus, dos rebeldes políticos, dos republicanos, dos democratas de toda ordem, Rabelais é um herói moderno. Canso só de pensar no número de seus fãs: Chateaubriand, Balzac (ainda não li os Conte Drolatiques, escritos em uma linguagem rabelaiseana, com direito a francês antigo e tudo o mais), Victor Hugo... Lucien Febvre, no livro já citado, procurou apontar o anacronismo de boa parte dessas leituras de Rabelais. O parágrafo que escolhi, da tradução para o português que saiu pela Companhia das Letras, é enfático:

“[...] a incredulidade dos homens do século XVI, na medida em que foi realidade – é absurdo, e pueril, supor que ela foi, por pouco que seja, comparável à nossa. Absurdo e anacrônico. E fazer de Rabelais o primeiro da lista de uma série linear, no fim da qual inscreveríamos os ‘livre-pensadores’ do século XX [...] é uma clamorosa loucura. Todo este livro o mostrou, ou então não vale nada”.

Rabelais aparece escrevendo Pantagruel em xilogravura da primeira página do Livro IV, edição de 1548

Muito falei do Rabelais alheio, mas agora vou falar do meu Rabelais, pois também padeço de rabelaismania. Por enquanto (nunca se sabe o dia de amanhã...) ele é o do Livro IV (eu disse que retornaria a ele), e meus capítulos preferidos são De como, em alto mar, Pantagruel ouviu diversas palavras degeladas, e De como, entre as palavras geladas, Pantagruel encontrou palavrões. Como não gostar desses capítulos, eu me pergunto? E a minha passagem favorita, não mereceria ser copiada em um diamante? A tradução é de David Jardim Júnior:

“Então nos lançou ao convés punhados e punhados de palavras geladas peroladas de diversas cores. Vimos ali palavras de goles, palavras de sinopla, palavras de blau, palavras de sable, palavras douradas. As quais, quando um pouco aquecidas em nossas mãos, derretiam como neve, e as ouvíamos realmente; mas não entendíamos. Pois era uma língua bárbara. Exceto uma bem grande, a qual tendo Frei Jean esquentado com as mãos, produziu um som tal como fazem as castanhas lançadas na brasa sem serem cortadas, quando arrebentam, e nos fez todos estremecer. ‘Foi, disse Frei Jean, em seu tempo, um tiro de falcão’”.

Sterne de fato não passou incólume por esse livro, nem por esses capítulos. Ele percebeu que alterar o estado físico da água pode ser um grande recurso literário (as palavras que congelam e se libertam ao derreter, para Rabelais; as lágrimas que se precipitam e alteram o discurso de quem as derrama, para Sterne), que pode equivaler, e agora volto à minha técnica mnemônica, por estranha que pareça, aos cabelos mágicos da Rapunzel da Disney, capazes de abrir um pequeno furo na parede para que a água vaze. Pela política ou pela forma, sob o preço do anacronismo (que quase todo o le
gado do passado, sejamos realistas, em algum momento paga) Rabelais, como Rapunzel, escapou, até na pós-eternidade, do afogamento.