terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Almeida Júnior antes e depois da Europa

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Almeida Júnior: Retrato de moça, 1871

Tudo começou quando eu, folheando o catálogo das Pinacotecas Aldo Locatelli e Ruben Berta (obra de 2008 organizada por Ana Luz Pettini e Flávio Krawczyk), situadas aqui em Porto Alegre, me deparei com duas obras de Almeida Júnior. A primeira, Retrato de Moça, de 1871, e a segunda, Auto-Retrato, de 1878. Ambas pertencem hoje ao acervo da Pinacoteca Ruben Berta, e não são, nem de longe, as obras mais famosas de Almeida Júnior. Ainda assim, quando as vi lado a lado, na mesma página, e quando reparei nas datas de composição de cada uma delas, fiquei impactada: de 1871 a 1878, ou seja, no curto espaço de sete anos, Almeida Júnior passou, em sua pintura, do século XVIII ao século XIX.


A moça de Almeida Júnior e a Pompadour de Boucher...


Explico: logo que vi o Retrato de Moça, me lembrei de François Boucher (1703-1770). Vamos analisar o tão famoso retrato de Madame de Pompadour, de 1759 – reproduzo aqui um detalhe. Prestemos atenção no tratamento da pele, no formato do rosto, nas convenções de representação dos lábios e dos olhos, no brilho característico dos olhos claros. Essas mulheres (a moça e Pompadour) podem não ser idênticas, mas, em minha opinião, pertencem à mesma família estilística. Teria Almeida Júnior entrado em contato com essas convenções na Academia Imperial de Belas Artes, onde ingressara em 1869? E esse estilo Ancien Régime, teria chegado aqui com a Missão Francesa e se mantido “em conserva”, ou teria vindo em várias remessas, em várias viagens de artistas brasileiros que estudaram no exterior ou de artistas estrangeiros que passaram por ou se fixaram no Brasil?

Almeida Júnior: Auto-retrato, 1878


Outro universo pictórico é aquele que se faz sentir no Auto-retrato, datado de 1878, época em que Almeida Júnior já vivia em Paris, como pensionista do Imperador, há dois anos, e em que ingressa como aluno na École des Beaux Arts. Aqui Boucher é substituído, conforme o coro da crítica especializada em Almeida Júnior, por Courbet. Na verdade, podemos ir além: nessa obra há muito do amor à pintura espanhola que tomou conta dos artistas de vanguarda franceses pelo menos desde a década de 1840, e ainda à pintura holandesa (que dizer do tratamento da pincelada no traje de Almeida Júnior?). Também Courbet foi profundamente influenciado por essas tradições alternativas, que podia estudar no Louvre ou na Galerie Espagnole, em funcionamento entre 1838 e 1853.


Intrigada com essa passagem de uma tradição a outra na pintura do então jovem artista, fui atrás de um texto clássico a seu respeito, Almeida Júnior – sua técnica, sua obra, de Alfredo Galvão, escrito em 1950 e felizmente disponibilizado on-line pela equipe do site DezenoveVinte. Talvez não salte aos olhos imediatamente, mas a estrutura narrativa utilizada pelo autor para tratar da viagem de Almeida Júnior à Europa deve algo aos contos de fada. Recorro a algumas das funções das personagens apresentadas por Vladimir Propp em seu Morfologia do Conto Maravilhoso para amparar minha modesta linha de argumentação:


a) Falta alguma coisa a um membro da família: a Almeida Júnior falta o contato em primeira mão com a tradição da arte europeia e com o ensino das grandes escolas de arte, o que é necessário para fazer progredir sua carreira de artista.

b) O herói deixa a casa: Almeida Júnior parte para a Europa como pensionista do Imperador.

c) O herói é submetido a uma prova: aluno da École des Beaux Arts, em vários momentos Almeida Júnior têm de testar seu talento.

d) O antagonista é vencido: Almeida Júnior vence as provações artísticas e afasta o “antagonista”, qual seja, o fantasma do fracasso no exterior ao conquistar, segundo Galvão, “prêmios de alta distinção”, como o prêmio em concurso de desenho de ornamento (é verdade, não exatamente o mais prestigiado) e a menção honrosa (em um curso de anatomia; a especificação dessas premiações pode ser encontrada em autores como Paula Frias, em sua dissertação de mestrado Almeida Júnior, uma alma brasileira?), e participar dos Salons de 1879 (com Portrait de M. J. M...), 1880 (com Défricheur brésilien e Le remords de Judas), 1881 (com La fuite en Egypte) e 1882 (com Pendant le repos).

e) o dano inicial é reparado: a carência na formação artística de Almeida Júnior é reparada pelo sucesso na Europa, e o artista passa, assim, da condição de provinciano para a de cosmopolita.

f) regresso do herói: Almeida Júnior volta ao Brasil em 1884, trazendo na bagagem as telas pintadas na Europa e um repertório artístico “atualizado”.

g) o herói se casa e sobe ao trono: ainda em 1884 Almeida Júnior participa da Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes, uma de suas obras é doada pelo imperador à Academia e, no ano seguinte, o artista recebe o título de “Cavaleiro da Ordem da Rosa”.


Desenho de Almeida Júnior a partir de sua tela Repouso do modelo, publicado no Catálogo da Exposição Artística, Rio de Janeiro, 1884


O esquema mostrado acima é bem simples e conhecido de todos. Ainda assim, muito da história da arte que conhecemos foi moldada em estruturas narrativas como essa. Não vou dizer que nunca “cometi” essa estrutura, ela tem seus méritos pelo impacto retórico e pela fácil empatia que desperta junto ao leitor, mas é possível fazer mais, especialmente quando se trata de um artista como Almeida Júnior.


Há um cenário bem mais enredado por trás da permanência do artista na Europa do que as biografias populares de Almeida Júnior deixam entrever. Eu folheei os catálogos do Salon de Paris aos quais tive acesso digital, o de 1879, 1880 e 1882. Almeida Júnior começa a participar do Salon justamente no ano em que sai o primeiro catálogo ilustrado da exposição. Seu nome aparece em ordem alfabética, logo na primeira página. Mas não há destaque algum. Contextualizemos: são 3040 artistas a expor no Salon naquele ano; desses, uma minúscula fração merece a honra de ter uma obra reproduzida no catálogo. Desnecessário dizer que as obras de Almeida Júnior nunca são reproduzidas, nem nesse, nem nos catálogos seguintes.

Almeida Júnior: Défricheur Brésilien, 1880

Grandes revistas de arte, como a Gazette des Beaux Arts, também silenciam sobre Almeida Júnior. Na edição de maio de 1880, o Marquis de Chennevières publica Le Salon de 1880, e começa criticando o excesso de quadros expostos, a multidão de artistas “inúteis”, “medíocres” ou “insignificantes”. Teria ele sequer prestado atenção ao Défricheur brésilien, exposto naquele ano? Se prestou, não disse Trata até longamente de Cabanel e de seus discípulos (Humbert, Cormon, Thirion, Dupain, etc.). Mas Almeida Júnior, também ele discípulo de Cabanel, não é lembrado. Que pensaria Chennevières das pinturas de Almeida Júnior? Que pensariam outros críticos como ele? O que significaria, na época, o artista não causar repercussão na imprensa com sua obra? Que ligação há entre esse silêncio crítico e o fato de se tratar de um jovem artista estrangeiro expondo em Paris? Que ligação há entre esse mesmo silêncio e o mérito artístico de Almeida Júnior?

Francisco Laso: O habitante da Cordilheira do Peru, 1855

Caricatura de Charles-Albert D'Arnould Bertall, publicada no Journal pour rire (1855),
a propósito da tela de Laso
Abaixo se lê o seguinte:
"Por que esse habitante carrega uma caixa de dinheiro?
Sem dúvida é para indicar o quanto sua pátria é rica em dinheiro.
Isso é verdade; mas para a pintura, não é o Peru" (tradução minha).

Eu também, como André Toral em No limbo acadêmico: comentários sobre a exposição ‘Almeida Júnior – um criador de imaginários’, de 2008, gostaria de ler bem mais sobre as relações de artistas como Almeida Júnior com o ambiente artístico europeu, de preferência apresentadas com amparo em cuidadosa pesquisa de documentação de época, e em moldes que escapem um pouco ao triunfalismo dos esquemas narrativos do conto maravilhoso. As possibilidades para se fazer isso são muitas. Nesse sentido, considero inspirador o artigo de Natalia Majluf, “Ceci n’est pas Le Perou”, or, the failure of authenticity: marginal cosmopolitans at the Paris Universal Exhibition of 1855. Mafluf analisa o modo como a crítica parisiense recebe, por exemplo, o quadro O habitante da Cordilheira do Peru, exposto por Francisco Laso (1823-1869) na Exposição Universal de Paris de 1855. O quadro, para muitos, não era suficientemente costumbrista ou pitoresco, ou seja, não era suficientemente peruano... terrível pecado para um pintor não francês, segundo a visão de Majluf:

“Como Mantz, outros críticos desqualificavam a obra de cosmopolitas marginais por meio do destaque, em passant, de quais haviam sido seus professores, na maior parte franceses. Quando o estilo usado pelo cosmopolita marginal era identificado com uma fonte francesa, poderia apenas ser caracterizado como uma possessão ilegítima, como um roubo. Pois a autenticidade cultural não poderia ser tomada de empréstimo; ela era, de fato, propriedade cultural não transferível. De escolas nacionais se esperava que estivessem aptas a gerar, autonomamente, estilos distintivos que refletissem o ‘gênio’, o ‘espírito’ e o ‘caráter’ de seu povo. [...]. A imitação era em toda a parte rejeitada“ (tradução minha).


Uma ótica semelhante a essa não poderia renovar nosso modo de entender uma tela como Défricheur brésilien? A quem Almeida Júnior procurava atender com o trabalhador retratado em uma natureza tropical luxuriante, pintada de memória? Aos que ficaram no Brasil, à crítica francesa, sedenta de exotismo, a ambos? Houve estímulo externo para que pintasse essa tela? Por que essa única tela “regional” em meio às outras de temática “cosmopolita”, que apresentou nas demais edições do Salon? Galvão, ignorando esse impasse, escreveu o seguinte: “Outro ponto interessante do talento de Almeida Júnior é que, mesmo residindo em Paris durante seis anos, lá trabalhando muito e produzindo grande parte de sua numerosa obra, sempre pensou na pátria distante, incluindo em sua temática os assuntos nacionais, como o ‘Derrubador brasileiro’, ‘Caipiras negaceando’, etc”.
Já vi o “derrubador” de Almeida Júnior ser comparado, entre nós, aos camponeses de Milliet. Mas a natureza tropical enfatizada no quadro do artista brasileiro desvirtua um pouco essa possibilidade, a meu ver a preocupação com a representação do “característico” e local me parece mais acentuada do que a temática social, tão forte no artista francês.


Para concluir de modo digressivo, uma pequena amostra de como nossa relação histórica com as artes da Europa têm momentos embaraçosos e, talvez por isso mesmo, reveladores. A introdução do catálogo ilustrado do Salão de Paris de 1879 (aquela na qual Almeida Júnior estréia), assinada por F.-G. Dumas, conclui com a seguinte frase esperançosa, em tradução minha:

"O fim que desejamos alcançar é o de estabelecer um laço mais íntimo e mais durável entre o artista e o público. Oxalá tenhamos sucesso!"


Já a introdução escrita pelo galerista L. de Wilde para o catálogo da Exposição Artística de 1884, da qual também participa Almeida Júnior, agora com uma obra ilustrada, contém a certa altura o que se pode ler abaixo:

"Acreditamos, porém, que mesmo assim, contribuimos com pouco é verdade, mas em todo caso com boa vontade, para o preenchimento do nosso único fim: estabelecer um laço mais íntimo e duravel entre Artistas e Público [...]".


Alguma semelhança? Fica aqui o meu conselho: é preciso explorar mais as alegrias e as agruras de nosso cosmopolitismo artístico.