terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A aventura dos Le Nain no Louvre

terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Pottery Sequence on Graph, capa de Meltzoff para a Scientific American

Stanley Meltzoff (1917-2006), judeu novaiorquino, nascido no Brooklin, havia se formado em artes no City College em 1937 e, pouco tempo depois, em 1940, obteve o título de Mestre em Artes na New York University, onde foi orientado por Walter Friedlaender (em português há deste último o insubstituível De David a Delacroix) e auxiliado por Meyer Schapiro. Durante a Guerra colaborou, como ilustrador, com o jornal oficial das forças armadas americanas, Stars and Stripes, criado ainda durante a Guerra da Secessão, em 1861. A Guerra acabou, como todos sabemos, em 7 de maio de 1945, e pouco mais de dois meses depois, em 14 de junho, Meltzoff está no norte da Itália, vistoriando o que sobrou do patrimônio histórico após os bombardeios dos aliados e dos nazistas. Ele não era o único, e a atuação dos aliados na salvaguarda da arte italiana mereceu, de resto, um volume inteiro de Ilaria Dagnini Brey, The Venus Fixers: the remarkable story of the allied soldiers who saved Italy’s Art during World War II.

S. Maria delle Grazie após o bombardeio

A parede com A Última Ceia protegida

Meltzoff, em Roma, escreve a seu amigo Creighton Gilbert, e o cenário que tem diante de si é desolador: “Ainda não há museus abertos, cada pintura removível digna de nota está escondida, [...] e muitos monumentos foram destruídos”. Meltzoff apresenta um balanço dos estragos que pôde verificar com os próprios olhos. Pouco sobrou, por exemplo, do San Giacomo de Mantegna – a destruição desse afresco situado na Capela Ovetari, em Pádua, haveria de se tornar uma espécie de exemplo máximo da tragédia que se abateu sobre as artes durante a Segunda Guerra, e não são poucos os livros posteriores de História da Arte que apresentam ao menos uma nota de rodapé destinada a recordar o ocorrido.

San Giacomo, de Mantegna: vítima da Guerra

Evidentemente Meltzoff entusiasmava-se quando podia dar uma boa notícia. É o que se observa quando constata que algo que facilmente poderia ter se perdido, como a Última Ceia, de Leonardo da Vinci, talvez por milagre tenha escapado ao aniquilamento:

“S. Maria delle Grazie, que acabara de ser restaurada por um milionário amante da arte, recebeu duas bombas, uma das quais demoliu a asa esquerda e danificou toda a nave, enquanto a outra destruiu o claustro e o refeitório com o Leonardo. Surpreendentemente tanto A Última Ceia como a Crucificação de Montorfano, na parede oposta, as únicas duas paredes que permaneceram em pé, estão intocadas” (tradução minha).

A Última Ceia, de Da Vinci, e a Crucificação, de Montorfano: sobreviventes

Muito pouco tempo antes, em 1942, Meltzoff publicou no The Art Bulletin um artigo baseado em seu trabalho de mestrado, The revival of the Le Nains. Talvez ainda não fossem tão presentes para ele, naquele momento, os perigos reais que a arte europeia iria enfrentar dentro em breve e a corrida para abrigá-la em porões, arquivos e vagões de trem. Meltzoff gasta, assim, em meio à Guerra, sua energia na tentativa de recuperar um peculiar episódio da história da arte francesa, a “redescoberta”, no acervo do Louvre, das obras dos irmãos Le Nain, na esteira do movimento realista.


Meltzoff, Autorretrato, Nova York

Defensor da ideia de que “O estudo das mudanças no gosto é um corretivo para a ilusão de que a grande arte tem valores eternos” (tradução minha, mais uma vez), Meltzoff mostra como o revival dos irmãos Le Nain (atuantes no século XVII e praticamente esquecidos no século XVIII) é um entre vários outros que ocorrem no século XIX: os românticos revivem o Rococó; em reação, Chardin é relembrado por críticos republicanos, Rembrandt merece um capítulo à parte e, depois dos Le Nain, Vermeer será cultuado por Thoré-Bürger, um crítico de arte francês que também há de merecer um texto próprio.

Desde pelo menos a Revolução Francesa a esquerda francesa estava em busca de uma arte que retratasse suas
teses, que, de uma maneira enérgica, exibisse temas cotidianos e as camadas sociais que passam, em um ambiente democrático (mesmo que apenas existente no plano ideal), a dispor do direito de cidadania. As obras dos irmãos Le Nain, que foram tidos como holandeses durante muito tempo, começaram a chamar a atenção de críticos republicanos tais quais Charles Blanc já em 1845. Champfleury, e depois Courbet, irão ficar muito entusiasmados diante de quadros como A Forja, de Louis Le Nain (1593-1648), o mais famoso dos irmãos (os outros, a propósito, são Antoine e Mathieu). O quadro, exposto no Louvre, mostra homens do povo não idealizados, ou pelo menos era essa a leitura feita pelos revolucionários de 1848, alimentados pela redescoberta do popular na literatura romântica e pela “realidade crua” apresentada pelo daguerreótipo (há discussões hoje sobre o anacronismo de tal leitura; é pouco provável que os Le Nain se considerassem, na época em que atuaram, engajados em uma causa popular que usasse a pintura como arma). Responsáveis diretos pela exibição das obras dos Le Nain no Louvre, em 1848, foram os intelectuais, liderados por Clément de Ris, que no começo daquele ano reivindicaram a recuperação de obras esquecidas no acervo, e o novo diretor do Louvre, Jeanron, simpático à causa republicana, que ordenou que essas obras deixassem o depósito e fossem suspensas nas paredes.

A Forja, Louis Le Nain, 1640, Louvre

Da elaboração da teoria e da narrativa histórica que justificasse a importância dos Le Nain para o patrimônio artístico francês e para o movimento de vanguarda nas artes – o realismo – Champfleury iria se encarregar: pelos próximos anos entre os vários textos que dedicou aos artistas, destacam-se Essai sur la vie et l’oeuvre des Le Nain, peintres laonnois (1850), e o alentado Les peintres de la réalité sous Louis XIII, les frères Le Nain (1862). Champfleury organizaria ainda, em 1883, uma grande exposição com obras dos Le Nain em Laon, cidade natal dele e dos artistas. O revival dos Le Nain inicia-se na década de 1840 e prossegue com força pelo menos até a década de 1860. Meltzoff em seu artigo explica também as características de cada uma dessas décadas que, a seu ver, teriam instigado o revival, e analisa em minúcia a “rede realista” com a qual Champfleury envolve os Le Nain. Mas não me deterei nisso agora, pois tenho em mente uma "digressão conclusiva".

Meltzoff, que, como vimos, na década de quarenta se preocupava, em diferentes níveis, com a arte que fora recuperada (a dos Le Nain) e com aquela que talvez não mais pudesse sê-lo (o patrimônio artístico italiano destroçado pelas bombas), teve um destino sui generis: dividido entre o evidente talento como historiador e também como artista, optou por esse último caminho (ainda que publicasse na década de 1970 artigos eruditos sobre sua teoria da Retórica Visual) e acabou por se tornar o maior pintor de temas marinhos e submarinos dos Estados Unidos. Muito mais do que os Le Nain, Meltzoff se tornou, em certo sentido,um artista verdadeiramente “popular”: além de incontáveis capas de revistas como a Scientific American, foi o autor da capa do Guia Telefônico distribuído pela AT&T, em 1976, em comemoração aos 200 anos da Independência dos Estados Unidos, a nada menos do que 187 milhões de assinantes.




Battle scene jumping for cover, de Meltzoff