sábado, 27 de outubro de 2012

O fantástico Hoffmann

sábado, 27 de outubro de 2012



Granger: Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822)

A partir dos 14 anos comecei a registrar todas as minhas leituras em cadernos. Eu copiava as referências completas do livro, o sumário, os melhores trechos, identificados por página, e acrescentava ainda uma seção chamada “Minhas opiniões”, na qual comentava o que havia achado da leitura. Fazia isso por vários motivos: sempre considerei minha memória ruim, e esse método me pareceu um bom recurso mnemônico, que permitiria que associasse mais facilmente, como se diz, o nome à pessoa, que identificasse o autor e sua obra; eu gostava (e continuo gostando) de escrever; enfim, geralmente lia livros de biblioteca ou emprestados por amigos ou professores, pois não tinha dinheiro para comprá-los, e copiar meus trechos favoritos era, de certa forma, manter o melhor dos livros comigo. Consultei um desses cadernos hoje, o número 6 (sim, eles são numerados e têm sumário), atrás de minhas impressões de leitura a respeito das obras do Hoffmann. Quando fui bolsista de iniciação científica, por incentivo da professora Icleia Cattani eu e meus companheiros de bolsa lemos Das Unheimlich (1919), o clássico ensaio de Freud. Ali Hoffmann é apresentado, e usarei agora as palavras do próprio Freud, como o “inigualável mestre do inquietante na literatura”. Freud analisa o conto O homem de areia, e ainda o romance O elixir do diabo. Em O homem de areia percebe a manifestação do complexo infantil da castração no protagonista, Natanael, e em O elixir do diabo investiga o tema do duplo ou do sósia. Foi por causa de Freud que me tornei leitora de Hoffmann, sem dúvida (eu e outros tantos leitores). Eu li os Contos fantásticos de Hoffmann, edição da Imago, usando a lente de Freud, como se percebe nesse meu comentário extraído do caderno, de abril de 1999: “O melhor do livrinho é mesmo O Homem de Areia”. Dos outros dois contos da edição, na época, não gostei tanto: O Vaso de Ouro me pareceu por vezes “cansativo” (ainda que eu tenha admirado a honestidade do narrador ao apresentar também os defeitos das personagens femininas descritas como belas), e n’Os Autômatos me aborreci com o que então chamei de “chatíssima discussão sobre teorias musicais românticas”, empreendida por dois personagens do livro, Ludwig e Ferdinando (o que seria da vida sem amargos arrependimentos – hoje essa é uma das partes do conto que mais me interessa, tanto que em uma leitura bem mais recente uma das frases que destaquei foi essa: “...toda a minha alma, todo o meu espírito eram apenas ouvidos”).
Disse há pouco que li Hoffmann com a lente de Freud, o que significa que nele procurei, antes de mais nada, o estranho e perturbador. Uma das passagens perturbadoras do Homem de areia que copiei em meu caderno foi esta (tradução de Claudia Cavalcanti), uma cena em que Natanael fala e sua amada Olímpia, talvez uma autômata, escuta:

“Das profundezas de sua escrivaninha, Natanael tirava tudo o que já escrevera. Poemas, fantasias, visões, romances, histórias, tudo diariamente acrescido de toda sorte de sonetos, estâncias, cantigas, que ele lia para Olímpia durante horas a fio, incansavelmente. Nunca tivera uma ouvinte tão encantadora, pois não bordava nem tricotava, não olhava pela janela, não dava comida aos pássaros e não brincava com cãezinhos ou gatinhos graciosos. Não amassava papeizinhos ou se distraía com qualquer coisa nas mãos, nem precisava conter um bocejo ou um leve pigarro. Em suma, fitava o amado durante horas sem se mexer ou se ajeitar, e esse olhar tornava-se cada vez mais ardente e mais vivo. Apenas quando Natanael se levantava no fim e lhe beijava a mão e até mesmo a boca, ela dizia: ‘Ah, ah! Boa noite, meu querido’”.

Já professora comecei a trabalhar com Hoffmann na disciplina de História da Cultura, pedindo que os alunos lessem O pequeno Zacarias, em especial aquela parte em que os iluministas tentam acabar com o reino das fadas. Também vi algo sobre autômatos, ao trabalhar com Real spaces, de David Summers, na disciplina de Ciências da Arte: Espaço e Tempo, integrante do currículo do curso de Artes Visuais. Summers apresenta ali os autômatos de Pierre Jaquet-Droz (1768-1774), que tanto sucesso faziam na Europa (abaixo podemos ver um deles, o autômato-desenhista e o desenho que elaborava quando estava em funcionamento).


Um dos autômatos de Jaquet-Droz e seus desenhos  


Além disso, agora que posso comprar livros a Internet é uma realidade, há muito não faço cadernos, e minha pequena coleção de Hoffmanns cresce, sendo minha última aquisição a edição francesa de Le chat murr (1819-1821), que ainda não consegui terminar de ler. Essa tradução para o francês foi realizada por Albert Béguin (1901-1957) e publicada originalmente em 1943. No prefácio o tradutor logo chama a atenção para o que considera uma imagem tendenciosa de Hoffman criada na França por seus primeiros tradutores. Diz ele: “O verdadeiro Hoffmann é muito diferente do fantastiqueur no qual se inspiraram Petrus Borel, Gozlan, Balzac e tantos de nossos românticos. Fazemos hoje, entre sua obra, uma escolha diferente daquela feita pelo público de 1830 [...]” (tradução minha). Béguin se refere aqui às primeiras traduções de Hoffman que aparecem na França da primeira metade do século XIX. Ele propõe, no século XX, a tradução integral de um texto que no século XIX não havia chamado a atenção dos tradutores franceses do autor alemão.
Como vimos, esse prefácio é de 1943. Décadas e décadas antes, antes de Béguin e antes ainda de Freud, Jules Champfleury (1820-1889) também tentou desfazer, ou ao menoa relativizar, a imagem de Hoffmann como um fantastiqueur. O movimento romântico francês ainda não havia esfriado quando publicou, em 1856, os Contes posthumes d’Hoffmann, por ele traduzidos. O volume é dedicado a Courbet, então seu amigo, e o reconhecimento da influência de Hoffmann sobre sua carreira de escritor é apresentado já no prefácio, em tradução minha: “Terei sempre um vivo reconhecimento pelos homens que me ensinaram alguma coisa ou que me proporcionaram vivas sensações. De que serviria esconder as fontes em que bebemos com tanta delícia na juventude? Assim jamais irei negar a influência que sobre mim exerceram Diderot, Balzac e Hoffmann mais particularmente”.
Diderot estava sendo redescoberto pela crítica de arte francesa quando Champfleury era jovem. Balzac, por sua vez, foi ele mesmo leitor de Hoffmann. Champfleury oferece, como introdução aos contos menos conhecidos de Hoffmann que acabara de traduzir, um mapeamento de vários aspectos da vida e da obra do artista: o modo como suas obras foram traduzidas na França e como era visto por seus amigos; as notas que escreveu pouco antes da morte, seu testamento, suas habilidades como desenhista e músico, suas cartas aos amigos.
Ao discorrer sobre as traduções, Champfleury registra o ano de 1823 como marco da introdução de Hoffmann na França, mediante a tradução de Olivier Brusson, que, no entanto, não traz o nome do autor, do próprio Hoffmann. Os Contos de Hoffmann traduzidos por Loëve-Weymar são publicados em 1830, obtendo estrondoso sucesso junto à geração romântica. Champfleury explica que foi com essa edição que Hoffmann começou a ser visto, na França, como “fantástico”:

“Nessa mesma editora apareceram as obras completas de Hoffmann em vinte volumes in-12. O sr. Loëve-Weymar chama a primeira série de contos fantásticos, e desde essa época fantástico permaneceu e permanecerá, ainda por muito tempo, mesmo que jamais a palavra fantástico tenha sido empregada pelo contista alemão. É verdade que o maravilhoso desempenha um papel suficientemente grande na obra de Hoffmann para justificar o epíteto de fantástico; é verdade igualmente que os contos estavam na moda, e que cada autor torturava o cérebro para encontrar outra coisa além de contos marrons, contos rosas, contos de todas as cores [...]. Esses motivos justificam um pouco o fato do Sr. Loëve-Weymar ter dado o título de fantástico a obras onde a realidade se combina tão naturalmente à pintura do estado particular de uma natureza atormentada” (tradução minha).

Sem dúvida Champfleury não rejeita completamente a denominação de “fantástico” aplicada a Hoffmann, pelo contrário, em alguns pontos a justifica. Por outro lado, contudo, ao falar da “natureza atormentada” que também percebe na obra de Hoffmann, abre caminho para que Freud, tempos depois, nela procure não o fantástico, mas, como vimos, o estranho.
Champfleury continua sua narrativa: segundo ele, Hoffmann, enquanto ainda vivia, era bem menos admirado na Alemanha do que Schiller, muito mais engajado politicamente, defensor do povo e crítico da elite. Na França sua recepção é consideravelmente mais positiva, pois para os franceses o contista não precisava ser “republicano ou monarquista, cético ou crente, materialista ou espiritualista”, bastava que, nas palavras de Champfleury, “fosse romântico, isto é, que encontrasse formas novas”.
São divertidas as passagens em que Champfleury não esconde sua perplexidade diante das escolhas artísticas de Hoffmann, que também era desenhista e compositor, passagens como esta, em que acusa Hoffmann de haver conferido demasiado valor a Salvator Rosa (1615-1673), pintor cuja popularidade iria declinar ao longo do século XIX: “Hoffmann não é culpado de haver redourado a coroa de estuque de Salvator Rosa, um pintor melodramático muito ruim cujo grande talento consiste em ter vivido muito entre os bandidos?” 


Salvator Rosa: Filosofia, 1640 (autorretrato). Tradução da inscrição latina:  
"Fique em silêncio, a não ser que o que você tenha a dizer seja mais importante do que o silêncio"


Hoffmann havia publicado em 1819 um conto chamado Signor Formica, em que Rosa era o protagonista. O narrador do conto defende a imagem de Salvator Rosa, apresentando-o como um homem dotado com “a exuberância da vida e orgulhosa energia”, de caráter nobre e leal, um homem, como o próprio Hoffmann, multifacetado: “Dificilmente preciso dizer que Salvator era não menos renomado como poeta e músico do que como pintor. Seu gênio foi revelado em raios lançados em muitas direções” (tradução minha). Talvez Freud pudesse ter encontrado aqui ainda mais material para sua teoria do duplo...
Hoffmann, bem se vê, tinha gosto artístico bastante diverso daquele de Champfleury. Em uma carta ao amigo Hitzig, escrita em Berlim, em 15 de outubro de 1798, e citada por Champfleury, Hoffmann se mostra extasiado com as obras de arte italiana que estava podendo apreciar:

“...mas hoje eu sou quase mimado pela galeria de Dresden, onde vi as obras-primas de todas as escolas. Enchi-me de entusiasmo quando me dirigi à Sala dos Italianos; imagine uma sala que é certamente uma vez mais extensa do que a casa de teu tio, em Koenigsberg, cujas imensas paredes são cobertas de alto a baixo pelos quadros de Rafael, de Correggio, de Ticiano, de Battoni, etc.; vendo tudo isso, estou necessariamente convencido de que nada sei. Eu ali lancei as cores, e desenho os estudos como um principiante: esta é minha resolução. É apenas na pintura que acredito ter feito grande progresso; para te provar, certamente te enviarei alguma coisa” (tradução minha).

Apesar de pretender continuar progredindo na pintura, são os desenhos de Hoffmann que terão vida mais longa. Champfleury reproduz em seu livro um dos autorretratos feitos pelo escritor, particularmente bem-humorado. Em respeito à lei das compensações universais, uma vez que na obra de Hoffmann já se leu tanto o fantástico como o estranho, apesar de o próprio autor não haver apoiado esses conceitos, concluo então meu pequeno texto com o mencionado autorretrato e as divertidas legendas acrescentadas pelo autor. Deixemos que ele, ao ver a si mesmo, nos mostre seus próprios conceitos.


"A – O nariz
B – A fronte
C – Os olhos
D – Bife. Vinho do Porto
E – O traço irônico
F – Queixo alongado, depois de comédia mal-sucedida
G – Os cabelos cheios de visões demoníacas
H – A gravata
I – O colete de costume
K – Manga de redingote com pregas arbitrárias
L – Favoritos, ou pensamentos noturnos de um sonâmbulo
M – O músculo de Mefistófeles, ou paixão por assassinato e vingança
N – Olho
O – Orelha, ou a carta de aprendizagem de Kreisler
P – Etc."