quarta-feira, 28 de junho de 2017

quarta-feira, 28 de junho de 2017
Sobre um tênis da Nike, uma paisagem de Naysmith,
Parataxe e Hipotaxe



Tênis Nike Converse com tecido Harris Tweed

Um dos pré-socráticos dos quais apenas nos restam fragmentos, Empédocles (c. 490–430 a.C.), em Sobre a Natureza, concluiu que tudo o que há no universo resulta da combinação de quatro elementos, a saber, fogo, água, ar e terra, movidos por duas forças básicas, o amor, que os une, e o ódio, que os separa. Mais tarde, referindo-se apenas ao comportamento humano, Freud chamaria de Eros a força que une, e de Thanatos a força que separa ou destrói. União e desunião, seja nos componentes do universo, seja no comportamento das pessoas, comportam, respectivamente, diferentes estados, mais estreitos ou mais afastados.
Nada nos impede de pensar, ainda metaforicamente, nesses "estados" de união (proximidade) e desunião (afastamento), em termos de composição artística, em termos de abertura ou densidade das tramas. Nesse sentido podemos recorrer à noção de hipotaxe para analisar obras e discursos de “trama fechada”, “unida pelo amor”, por exemplo, com alto grau de subordinação das ideias ou conceitos. No caso do discurso hipotático, uma frase explicaria e iria se ligar fortemente à seguinte, do início ao fim, com a intenção de que se diminua a possibilidade de leituras ambíguas, como se vê nos textos legais e nas ordens.
A “força contrária”, a “separação pelo ódio”, encontraríamos na parataxe quando usada na estruturação de informações em estado bruto, descrições e imagens. É ao leitor ou observador que cabe “amarrar” todas elas e definir um sentido final. Trata-se de trama muito aberta, de procedimento muito subjetivo, com possibilidades de leitura mais amplas e variadas. Tal é o procedimento estruturante que podemos identificar, por sua vez, em textos literários como o Ulisses, de James Joyce, e mesmo no discurso de posse de Barack Obama, de 2009, que foi considerado, aliás, paratático pelo crítico Stanley Fish.
A parataxe brilha, sobretudo, na poesia. O crítico Theodor Adorno foi o responsável pela transformação desse conceito gramatical em conceito de análise filosófica em seu famoso ensaio Parataxis, dedicado ao poeta romântico alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843). Neste ensaio Adorno destaca que Hölderlin, ao contrário de muitos poetas de sua geração, transforma a parataxe em um recurso não conformista de construção de texto; isto é, ao invés de procurar construir um discurso hipotático harmonioso, que bem se ajuste ao realismo burguês (não nos esqueçamos que Adorno era marxista), Hölderlin privilegia a parataxe, impedindo assim que o sentido “descole” da base estética – na parataxe, forma e conteúdo são uma coisa só.
Mas, como já adiantei, podemos pensar a parataxe em termos imagéticos. Os habitantes de algumas ilhas escocesas (mais especificamente das ilhas de Harris, Lewis, Barra e Uist) há muito tempo fabricam um tecido de lã, o Harris Tweed. Outrora um tecido de luxo, rústico e bem estruturado, atingiu o auge da popularidade nos anos sessenta; no entanto, com a ascensão dos tecidos sintéticos, mais confortáveis, várias tecelagens das ilhas fecharam, e a indústria começou a se recuperar apenas quando a Nike, em 2004, decidiu fabricar uma linha de tênis empregando esse tecido. O que chama a atenção na trama desse tecido é que as cores são selecionadas pelos fabricantes a partir da paisagem local no momento em que ele é fabricado. Temos, assim, tecidos que resultam, respectivamente, da combinação de cores das paisagens escocesas de verão, outono, inverno e primavera. Em outras palavras, podemos pensar o Harris Tweed como uma paisagem composta de modo radicalmente paratático, pois há ali elementos da paisagem, dispostos de maneira muito aberta, com grande margem de interpretação.

Amostra de Harris Tweed, séc. XX

Para contrastar, ao lado da amostra de tecido podemos colocar o quadro de um dos maiores paisagistas escoceses do século XIX, Alexander Naysmith (1758-1840). Temos ali a mesma forma de representar a paisagem que se encontra no tecido? Evidentemente não. Quando comparadas, a paisagem de Naysmith se situa, sem dúvida, no pólo hipotático, pois a paisagem é apresentada em termos sinedóticos, de maneira realista e descritiva.


Alexander Naysmith: Paisagem da Highland com Figuras

Poderíamos concluir, apressadamente, a partir dessa consideração, que a hipotaxe visual se presta melhor à representação realista, enquanto a parataxe visual seria mais adequada à abstração. Na verdade, ambas podem funcionar, indistintamente, em convenções realistas ou abstratas. Vejamos os exemplos a seguir.
Comecemos com uma obra de Joseph Beuys (1921-1986). Fat Battery, uma bateria construída a partir de feltro e gordura, pode perfeitamente ser entendida em uma concepção hiperrealista (ou sinedótica) de vanguarda (ainda que outros tropos estejam envolvidos aqui, como a metonímia), na medida em que materiais brutos, concretos, e não a representação dos mesmos, têm suas qualidades destacadas e compõem o trabalho. E a obra de Beuys é organizada, evidentemente, segundo a lógica paratática.


Joseph Beuys, Fat battery, 1963, Tate

Por outro lado, a fotografia a seguir, tomada por John Reekie (1829-?), um dos tantos fotógrafos pouco conhecidos da Guerra Civil americana, igualmente realista, foi realizada dentro da lógica hipotática: a narrativa representada pela cena é bastante clara, quando vista pelos observadores da época: soldados negros recolhem as ossadas de vítimas no campo de batalha.
John Reekie: African Americans Collecting Bones of Soldiers Killed in the Battle, Cold Harbor, VA, April 1865

Isto posto, concluo reforçando que parataxe e hipotaxe, como formas de estruturação, e não como “índices de realidade”, podem ser, sem dúvida, conceitos muito úteis não apenas para pensarmos textos, como quis Adorno, mas também para pensarmos literalmente a “trama” das imagens.