sábado, 20 de outubro de 2012

De Lavinia Fontana a Rodolphe Töpffer: notas sobre a invenção da infância na História da Arte

sábado, 20 de outubro de 2012


Lavinia Fontana, Autorretrato, 1577

Lendo imagem: uma história de amor e ódio, de Alberto Manguel, é um dos tantos livros cujos ensaios aproveitei amplamente em minhas aulas de história da arte. Dentre todos eles, meu preferido é Lavinia Fontana: a imagem como compreensão, ao qual recorria quando precisava mostrar as mulheres artistas italianas do século XVI, de Properzia de Rossi (c. 1490–1530), a única mulher biografada por Vasari nas Vite, a Marietta Robusti (1560? – 1590), a brilhante filha de Tintoretto. Nesse capítulo Manguel argumenta que Lavinia Fontana (1552-1614), ela mesma uma exceção, por ser pintora em um mundo de pintores, retratou com sensibilidade a pequena Tognina Gonsalvus (1580-?), que, como o pai, sofria de hypertrichosis universalis congenita, ou seja, apresentava o rosto todo coberto de pelos. A menina segura, em uma das mãos, uma folha de papel em que se lê, conforme a tradução que tomo de empréstimo ao livro de Manguel,

Das ilhas Canárias fui trazida
Para o Soberano Henrique II [?] da França
Don Pietro, o selvagem.
De lá se estabeleceu na corte
Do duque de Parma, como eu, [...]
Antonietta, e agora estou
No lar da Signora Donna
Isabella Pallavicina, marquesa de Soragna [...].



Lavinia Fontana: Retrato de Tognina Gonsalvus, c. 1583

Se em outros retratos Tognina aparece como uma pequena loba, como um animal curioso, Lavinia Fontana nos mostra a menina, a criança de olhos expressivos e modos delicados. Evoco esse exemplo porque estou pensando hoje na figura da criança na história da arte, em como ela se constrói, em quando começa a corresponder à imagem que temos agora da infância, um período cheio de possibilidades, marcado pela espontaneidade, pela liberdade de movimentos, pela alegria. A pequena Tognina aparece estática no quadro de Lavinia, com a pose estruturada pelo pesado vestido. A infanta espanhola (Infanta Margarida Teresa em um vestido azul, de 1659), retratada por Velázquez, que tive a oportunidade de ver esse ano, às pressas, na Gemäldegalerie do Kunsthistorisches Museum, em Viena, reforça a ideia de criança como pequeno adulto, contida pela postura e pelo traje, que tem como zona restrita de liberdade no retrato, por opção do pintor, apenas o olhar, algo melancólico. Lembro que Philippe Ariès explorou profusamente a vida infantil desses pequenos adultos nobres em História social da criança e da família, que li já faz muitos anos.


Velázquez: Infanta Margarida Teresa em um vestido azul (1659)

Crianças em poses menos rígidas, no entanto, começam a ser visíveis em pinturas também dos séculos XVI e XVII (excluindo a multidão de anjinhos, por favor). Desconfio que queira dizer algo o fato de me ocorrer agora, para reforçar esse argumento, apenas um retrato de menino, uma vez que até aqui me referi unicamente a poses de meninas. Eu já estava há algumas horas no Louvre, já havia passado pela Vitória da Samotrácia (que os turistas fotografam de frente, para obter o mesmo ângulo das imagens que aparecem nos livros) e pela superpovoada Monalisa (a moça que a vigiava estava conversando com um colega, indiferentes ambos à sublimidade que os turistas à sua volta pareciam conferir à obra). Eu já havia percorrido quase toda a Aile Denon, já havia passado por muitas, muitas salas cobertas por pinturas até o teto, quando, no fundo de uma delas, bem ao final de meu percurso, reconheço o menino retratado em Le Pied-bot (1642), de Jusepe de Ribera (1591-1652). O menino estava sorrindo para mim, e tinha um ar tão vivaz que me fez sorrir também. Como Tognina, ele segura, em uma das mãos, uma folha de papel com a frase, em latim, “Me dê uma esmola, pelo amor de Deus”. Esse menino de pés tortos, mendigo e anão, de acordo com Jonathan Brown em Pintura na Espanha 1500-1700, foi pintado para a coleção de Anna Carafa, princesa de Stigliano (informação que o site do Louvre corrige, pois se sabe agora que a obra se destinava a um mercador flamengo, dado que no meu pequeno Guide do Louvre simplesmente não aparece). Para Brown se trata de um “emblema realista do valor de se realizar obras de caridade como um meio de assegurar a salvação”. Para mim confesso que o que menos chamou a atenção no menino foram os pés, ou a pobreza, ou a pequena estatura.


Jusepe de Ribera: Le Pied-bot (1642)



Há um outro livro sobre a história da infância do qual gosto muito, Children and Childhood in western Society since 1500, de Hugh Cunningham, que dá destaque ao contexto associado ao estabelecimento da infância como “era da inocência” no século XVIII. Pude ver os manuscritos do Emílio (1762), de Rousseau (1712-1778), expostos no Panthéon esse ano, em Paris (Jean-Jacques Rousseau et les Arts) – a caligrafia miúda, uniforme, que iria abalar o modo como as crianças eram até então vistas e educadas. Enquanto Rousseau escrevia na França, a mortalidade de crianças pequenas diminuía sensivelmente na Inglaterra. Um pouco antes dele, já contando com o incipiente reinado infantil, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta sua Modesta proposta (1729), que choca justamente por propor a irônica canabalização da infância irlandesa pela Inglaterra. Na segunda metade do século XVIII lá também os livros infantis e as lojas de brinquedos abudam (não posso esquecer da adaptação infantil que foi feita, na época, do romance Charles Grandson, de Samuel Richardson [1689-1761], protagonizada por um pequeno Grandson que deseja ardentemente aprender a ser virtuoso), e crianças sonhadoras, delicadas, graciosas são retratadas com muita habilidade por Sir Joshua Reynolds (1723-1792), um dos fundadores da Royal Academy. Eu costumava mostrar em aula alguns desses retratos, como a encantadora Collina.



Joshua Reynolds: Collina (1779)

Uma vez estabelecido o novo reino da infância, o reino de onde mais tarde Peter Pan, como sabemos, nunca haverá de querer sair, o Romantismo abrirá brechas para que também a produção visual das crianças, seus rabiscos, desenhos e garatujas, passe a ser considerada com interesse. A porta pela qual o desenho infantil ingressa sorrateiramente na História da Arte é, mais uma vez, a caricatura. Costumo me deter em uma caricatura feita em 1792, por Gillray, caricaturista inglês implacável. O título é autoexplicativo, em uma tradução livre algo como “Uma pequena ceia à francesa”. 



A partir de água-forte de Gillray: Un petit souper à la Parisienne (1792)

Olhemos bem os elementos da imagem: não me interessam aqui nem as criancinhas, que devoram ou que são devoradas, nem os adultos, que se deliciam à mesa com uma cabeça humana. Interessam-se, isso sim, as garatujas desenhadas na parede, ao fundo, que simulam as figuras humanas elaboradas pelas crianças. Quase meio século seria necessário para que outro caricaturista, o suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846), passasse a elogiar a espontaneidade e a qualidade artística dos desenhos infantis, que corresponderiam melhor ao ideário romântico do que muito da arte acadêmica exibida nos Salões. 

Rodolphe Töpffer: Autorretrato (1840)

O trecho a seguir do seu Réflexions et menus propos d'un peintre genevois ou essai sur le beau dans les arts (1858, edição póstuma), que traduzi para utilizar em aula, apresenta uma boa síntese de seus principais argumentos:

 “De onde podemos ver por que o aprendiz de pintor é menos artista do que o menino que ainda não é aprendiz. [...] se pegarmos um desses meninos de colégio que rabisca às margens de seus cadernos homenzinhos já muito vivos e expressivos, e o obrigarmos a ir à escola de desenho para aperfeiçoar seu talento, logo, à medida em que faça progressos na arte do desenho, os novos homenzinhos que irá traçar com cuidado em uma folha branca de papel terão perdido, comparativamente àqueles que rabiscava ao acaso às margens de seus cadernos, a expressão, a vida e essa vivacidade de movimento ou de intenção que destacamos, ao mesmo tempo em que terão se tornado infinitamente superiores em verdade e em fidelidade de imitação”.

A imagem das crianças, e as características de seu desenho irão se tornar, assim, onipresentes na arte a partir do século XIX. Gillet Burgess (1866-1951), no impagável Os homens selvagens em Paris (1910), primeiro texto sobre os pintores fauvistas e cubistas franceses a ser divulgado nos Estados Unidos, e que traduzi para o português em 2011 (é possível conferi-lo em http://thor.sead.ufrgs.br/objetos/cubismo/burgess.php), ainda que de modo jocoso, detecta o interesse da vanguarda pela cultura visual infantil: 

“Se você pode imaginar o que uma menininha de oito anos, particularmente sanguinária, meio enlouquecida pelo gim, tem a ver com uma parede caiada, se deixada sozinha com uma caixa de lápis de cor, então você irá chegar perto de conceber com o que a maioria dessas obras se parecia”. 

Matisse usa cores vivas como as dos lápis de cor, Calder cria os seus circos animados e os seus móbiles, ver com olhos “novos” passa a ser a meta de um sem-número de artistas, e o resto, como também sabemos, é história.