Lavinia Fontana, Autorretrato, 1577
Lendo imagem: uma
história de amor e ódio, de Alberto Manguel,
é um dos tantos livros cujos ensaios aproveitei amplamente em minhas aulas de história
da arte. Dentre todos eles, meu preferido é Lavinia
Fontana: a imagem como compreensão, ao qual recorria quando precisava
mostrar as mulheres artistas italianas do século XVI, de Properzia de Rossi (c. 1490–1530), a única mulher
biografada por Vasari nas Vite, a
Marietta Robusti (1560? – 1590),
a brilhante filha de Tintoretto. Nesse capítulo Manguel argumenta que Lavinia
Fontana (1552-1614), ela mesma uma exceção, por ser pintora em um mundo de
pintores, retratou com sensibilidade a pequena Tognina Gonsalvus (1580-?), que,
como o pai, sofria de hypertrichosis
universalis congenita, ou seja, apresentava o rosto todo coberto de pelos. A
menina segura, em uma das mãos, uma folha de papel em que se lê, conforme a
tradução que tomo de empréstimo ao livro de Manguel,
Das ilhas Canárias fui trazida
Para o Soberano Henrique II [?] da
França
Don Pietro, o selvagem.
De lá se estabeleceu na corte
Do duque de Parma, como eu, [...]
Antonietta, e agora estou
No lar da Signora Donna
Isabella Pallavicina, marquesa de
Soragna [...].
Lavinia Fontana: Retrato de Tognina Gonsalvus, c. 1583
Se
em outros retratos Tognina aparece como uma pequena loba, como um animal
curioso, Lavinia Fontana nos mostra a menina, a criança de olhos expressivos e
modos delicados. Evoco esse exemplo porque estou pensando hoje na figura da
criança na história da arte, em como ela se constrói, em quando começa a
corresponder à imagem que temos agora da infância, um período cheio de
possibilidades, marcado pela espontaneidade, pela liberdade de movimentos, pela
alegria. A pequena Tognina aparece estática no quadro de Lavinia, com a pose
estruturada pelo pesado vestido. A infanta espanhola (Infanta Margarida Teresa em um vestido azul, de 1659), retratada
por Velázquez, que tive a oportunidade de ver esse ano, às pressas, na Gemäldegalerie
do Kunsthistorisches Museum, em Viena, reforça a ideia de criança como pequeno
adulto, contida pela postura e pelo traje, que tem como zona restrita de
liberdade no retrato, por opção do pintor, apenas o olhar, algo melancólico. Lembro
que Philippe Ariès explorou profusamente a vida infantil desses pequenos
adultos nobres em História social da
criança e da família, que li já faz muitos anos.
Velázquez: Infanta Margarida Teresa em um vestido azul (1659)
Crianças
em poses menos rígidas, no entanto, começam a ser visíveis em pinturas também dos
séculos XVI e XVII (excluindo a multidão de anjinhos, por favor). Desconfio que
queira dizer algo o fato de me ocorrer agora, para reforçar esse argumento,
apenas um retrato de menino, uma vez que até aqui me referi unicamente a poses
de meninas. Eu já estava há algumas horas no Louvre, já havia passado pela
Vitória da Samotrácia (que os turistas fotografam de frente, para obter o mesmo
ângulo das imagens que aparecem nos livros) e pela superpovoada Monalisa (a
moça que a vigiava estava conversando com um colega, indiferentes ambos à
sublimidade que os turistas à sua volta pareciam conferir à obra). Eu já havia
percorrido quase toda a Aile Denon, já havia passado por muitas, muitas salas
cobertas por pinturas até o teto, quando, no fundo de uma delas, bem ao final
de meu percurso, reconheço o menino retratado em Le Pied-bot (1642), de Jusepe de Ribera (1591-1652). O menino estava
sorrindo para mim, e tinha um ar tão vivaz que me fez sorrir também. Como
Tognina, ele segura, em uma das mãos, uma folha de papel com a frase, em latim,
“Me dê uma esmola, pelo amor de Deus”. Esse menino de pés tortos, mendigo e
anão, de acordo com Jonathan Brown em Pintura
na Espanha 1500-1700, foi pintado para a coleção de Anna Carafa, princesa
de Stigliano (informação que o site do Louvre corrige, pois se sabe agora que a
obra se destinava a um mercador flamengo, dado que no meu pequeno Guide do Louvre simplesmente não aparece).
Para Brown se trata de um “emblema realista do valor de se realizar obras de
caridade como um meio de assegurar a salvação”. Para mim confesso que o que
menos chamou a atenção no menino foram os pés, ou a pobreza, ou a pequena
estatura.
Jusepe de Ribera: Le Pied-bot (1642)
Há um outro livro sobre a
história da infância do qual gosto muito, Children
and Childhood in western Society since 1500, de Hugh Cunningham, que dá
destaque ao contexto associado ao estabelecimento da infância como “era da
inocência” no século XVIII. Pude ver os manuscritos do Emílio (1762), de Rousseau (1712-1778), expostos no Panthéon esse
ano, em Paris (Jean-Jacques
Rousseau et les Arts) – a caligrafia
miúda, uniforme, que iria abalar o modo como as crianças eram até então vistas
e educadas. Enquanto Rousseau escrevia na França, a mortalidade de crianças
pequenas diminuía sensivelmente na Inglaterra. Um pouco antes dele, já contando com
o incipiente reinado infantil, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta sua Modesta proposta (1729), que choca justamente
por propor a irônica canabalização da infância irlandesa pela Inglaterra. Na
segunda metade do século XVIII lá também os livros infantis e as lojas de
brinquedos abudam (não posso esquecer da adaptação infantil que foi feita, na
época, do romance Charles Grandson, de Samuel Richardson [1689-1761],
protagonizada por um pequeno Grandson que deseja ardentemente aprender a ser
virtuoso), e crianças sonhadoras, delicadas, graciosas são retratadas com muita
habilidade por Sir Joshua Reynolds
(1723-1792), um dos fundadores da Royal Academy. Eu costumava
mostrar em aula alguns desses retratos, como a encantadora Collina.
Joshua Reynolds: Collina (1779)
Uma
vez estabelecido o novo reino da infância, o reino de onde mais tarde Peter Pan,
como sabemos, nunca haverá de querer sair, o Romantismo abrirá brechas para que
também a produção visual das crianças, seus rabiscos, desenhos e garatujas,
passe a ser considerada com interesse. A porta pela qual o desenho infantil
ingressa sorrateiramente na História da Arte é, mais uma vez, a caricatura. Costumo
me deter em uma caricatura feita em 1792, por Gillray, caricaturista inglês
implacável. O título é autoexplicativo, em uma tradução livre algo como “Uma
pequena ceia à francesa”.
A partir de água-forte de Gillray: Un petit souper à la Parisienne (1792)
Olhemos bem os elementos da imagem: não me interessam
aqui nem as criancinhas, que devoram ou que são devoradas, nem os adultos, que
se deliciam à mesa com uma cabeça humana. Interessam-se, isso sim, as garatujas
desenhadas na parede, ao fundo, que simulam as figuras humanas elaboradas pelas
crianças. Quase meio século seria necessário para que outro caricaturista, o
suíço Rodolphe Töpffer
(1799-1846),
passasse a elogiar a espontaneidade e a qualidade artística dos desenhos
infantis, que corresponderiam melhor ao ideário romântico do que muito da arte
acadêmica exibida nos Salões.
Rodolphe Töpffer: Autorretrato (1840)
O trecho a seguir do seu Réflexions et menus
propos d'un peintre genevois ou essai sur le beau dans les arts (1858, edição póstuma), que traduzi para
utilizar em aula, apresenta uma boa síntese de seus principais argumentos:
“De onde podemos ver por que o aprendiz de
pintor é menos artista do que o menino que ainda não é aprendiz. [...] se
pegarmos um desses meninos de colégio que rabisca às margens de seus cadernos
homenzinhos já muito vivos e expressivos, e o obrigarmos a ir à escola de
desenho para aperfeiçoar seu talento, logo, à medida em que faça progressos na
arte do desenho, os novos homenzinhos que irá traçar com cuidado em uma folha
branca de papel terão perdido, comparativamente àqueles que rabiscava ao acaso
às margens de seus cadernos, a expressão, a vida e essa vivacidade de movimento
ou de intenção que destacamos, ao mesmo tempo em que terão se tornado
infinitamente superiores em verdade e em fidelidade de imitação”.
A
imagem das crianças, e as características de seu desenho irão se tornar, assim,
onipresentes na arte a partir do século XIX. Gillet Burgess (1866-1951), no
impagável Os homens selvagens em Paris (1910),
primeiro texto sobre os pintores fauvistas e cubistas franceses a ser divulgado
nos Estados Unidos, e que traduzi para o português em 2011 (é possível
conferi-lo em http://thor.sead.ufrgs.br/objetos/cubismo/burgess.php),
ainda que de modo jocoso, detecta o interesse da vanguarda pela cultura visual
infantil:
“Se você pode imaginar o que uma menininha de oito anos,
particularmente sanguinária, meio enlouquecida pelo gim, tem a ver com uma
parede caiada, se deixada sozinha com uma caixa de lápis de cor, então você irá
chegar perto de conceber com o que a maioria dessas obras se parecia”.
Matisse
usa cores vivas como as dos lápis de cor, Calder cria os seus circos animados e
os seus móbiles, ver com olhos “novos” passa a ser a meta de um sem-número de
artistas, e o resto, como também sabemos, é história.