Vez
que outra os pesquisadores das várias áreas das Humanidades deixam escapar por
qual razão elegeram seu objeto de estudo. “É lindo”, “é instigante”, “há pouca
pesquisa sobre isso”, etc. Desde 2013
tenho escrito sistematicamente sobre Hanna Levy, e o que me atraiu em seus
textos, em um primeiro momento, devo admitir, foi o sarcasmo. Já havia lido
vários de seus textos muito, muito antes de começar a pesquisá-la. Lembro bem:
eu era aluna de graduação no Instituto de Artes da UFRGS e consegui uma bolsa
na Biblioteca Central. Quando sobrava um tempo, mexia nos exemplares das revistas
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O texto de Hanna Levy
sobre os modelos coloniais sem dúvida me impressionou, me fez ver a História da
Arte sob todo um outro ângulo, mas o que realmente me pegou foi A propósito de três teorias sobre o Barroco,
em que ela critica abertamente Heinrich Wölfflin. Aquilo, quando li, me deixou
intrigada. Quem era ela, vivendo no Brasil, para “ousar” criticar uma
autoridade como Wölfflin? Aquilo exigia coragem, e me deu argumentos para
repensar um autor que todos tínhamos de ler na graduação. Ao mesmo tempo Hanna
Levy tinha uma irritação teórica elegante e muito produtiva, o que sinceramente
me encantava. Uma das passagens deliciosas desse artigo, que exemplifica bem
essa “irritação” (reparem nos termos “insustentável”, “aniquila” e “anula”,
magistralmente escolhidos) é esta aqui:
Wolfflin
aplica os conceitos estilísticos por ele estabelecidos para uma época histórica
determinada a outras épocas inteiramente diferentes. Não falando da concepção
abstrata insustentável da história que revela esse proceder, queremos apenas
constatar que, dessa maneira, Wölfflin aniquila toda possibilidade de apreender
as características particulares que distinguem uma época histórica de outra e
que ele anula igualmente a possibilidade de reconhecer, dentro do caracter
estilístico geral duma dada época, a existência da variedade mais ou menos rica
de estilos particulares (individuais, locais, tradicionais, etc.) (LEVY, A propósito de três teorias
sobre o Barroco, 1941, p. 265).
Quando
Hanna Levy escreve sobre o público da arte moderna, aliás, costuma ser
particularmente malvada. Em um artigo de 1940, Algumas
reflexões sobre a competência em matéria de arte, Hanna Levy não apresenta
uma visão muito abonadora do público que em geral vai a exposições:
Pode-se sustentar sem medo que a maioria do público que visita as
exposições, percorre os museus, assiste aos concertos e às premières
literárias, não possue a menor idéia do trabalho do artista. Ou, se eles têm
disso alguma idéa, é grotescamente falsificada, e mesmo pueril. (LEVY, Algumas reflexões sobre a competência em matéria
de arte, 1940, p. 38).
Essa visão sarcástica sobre o
público se repete, agora com um exemplo pontual, em um artigo de jornal que
publicou em 1945, Pior que Portinari! (reparem
no “delicada”):
Foi na exposição de “Arte condenada pelo 3. Reich”, realizada sob o
patrocínio da Casa do Estudante do Brasil, que ouvi de repente esta delicada
apreciação: “Realmente, isto aqui é pior que Portinari”.
É sempre reconfortante, nos tempos atuais, ouvir alguém manifestar uma
opinião absolutamente sincera. E Portinari pode ficar contente: por julgamento
insuspeito foi assim proclamado superior a Liebermann, Slevogt, Kokoschka,
Kollwitz e tantos outros artistas, mortos ou vivos, de fama internacional. É
verdade que o desconhecido crítico escolheu a forma sutil da expressão negativa
para lhe fazer o cumprimento. Mas pouco importa – o fato é incontestável. Se
todos aqueles artistas, de cujas obras originais a mostra da Galeria Askanasy
reúne exemplos, são “piores” que Portinari, este, logicamente, lhes deve ser
superior. Mas mesmo assim duvido muito que ele tenha agradado mais a Hitler do
que seus colegas condenados por este especialista em “pintura” (LEVY, Pior que Portinari, 1945, p. 2).
Além de criticar repetidamente o
público de arte moderna, como acabamos de ver, sobrou também para os colegas,
os historiadores da arte brasileiros. É o que aparece muito bem em um artigo
que Hanna Levy publica em 1947, em espanhol, Problemas en torno a la
Historia del Arte Brasileño:
Isso conduzia à tendência, que se pode
de fato observar em trabalhos de muitos historiadores da arte brasileiros, de
atribuir a priori um elevado valor artístico a qualquer obra com aspectos ingênuos,
populares, primitivos [...]. E os que insistem em comparar tais obras rústicas
e medíocres com as obras-primas da arte mundial prestam, a nosso ver, um
péssimo serviço à arte brasileira” (LEVY, Problemas
en torno a la Historia del Arte Brasileño, 1947, p. 140).
Procurei mostrar, por meio dessa pequena
seleção de exemplos, que Hanna Levy, em suma, nos deixou uma lição maravilhosa:
História da Arte também se escreve com sangue no olho. Considerando que essa
mulher, ainda por cima, era marxista, só me resta terminar com uma conclusão
bastante batida, mas que representa com exatidão o que eu penso: Hanna Levy, como
não amá-la?