terça-feira, 20 de junho de 2017

O sarcasmo de Hanna Levy

terça-feira, 20 de junho de 2017

Vez que outra os pesquisadores das várias áreas das Humanidades deixam escapar por qual razão elegeram seu objeto de estudo. “É lindo”, “é instigante”, “há pouca pesquisa sobre isso”, etc.  Desde 2013 tenho escrito sistematicamente sobre Hanna Levy, e o que me atraiu em seus textos, em um primeiro momento, devo admitir, foi o sarcasmo. Já havia lido vários de seus textos muito, muito antes de começar a pesquisá-la. Lembro bem: eu era aluna de graduação no Instituto de Artes da UFRGS e consegui uma bolsa na Biblioteca Central. Quando sobrava um tempo, mexia nos exemplares das revistas do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O texto de Hanna Levy sobre os modelos coloniais sem dúvida me impressionou, me fez ver a História da Arte sob todo um outro ângulo, mas o que realmente me pegou foi A propósito de três teorias sobre o Barroco, em que ela critica abertamente Heinrich Wölfflin. Aquilo, quando li, me deixou intrigada. Quem era ela, vivendo no Brasil, para “ousar” criticar uma autoridade como Wölfflin? Aquilo exigia coragem, e me deu argumentos para repensar um autor que todos tínhamos de ler na graduação. Ao mesmo tempo Hanna Levy tinha uma irritação teórica elegante e muito produtiva, o que sinceramente me encantava. Uma das passagens deliciosas desse artigo, que exemplifica bem essa “irritação” (reparem nos termos “insustentável”, “aniquila” e “anula”, magistralmente escolhidos) é esta aqui:

Wolfflin aplica os conceitos estilísticos por ele estabelecidos para uma época histórica determinada a outras épocas inteiramente diferentes. Não falando da concepção abstrata insustentável da história que revela esse proceder, queremos apenas constatar que, dessa maneira, Wölfflin aniquila toda possibilidade de apreender as características particulares que distinguem uma época histórica de outra e que ele anula igualmente a possibilidade de reconhecer, dentro do caracter estilístico geral duma dada época, a existência da variedade mais ou menos rica de estilos particulares (individuais, locais, tradicionais, etc.) (LEVY, A propósito de três teorias sobre o Barroco, 1941, p. 265).

Quando Hanna Levy escreve sobre o público da arte moderna, aliás, costuma ser particularmente malvada. Em um artigo de 1940, Algumas reflexões sobre a competência em matéria de arte, Hanna Levy não apresenta uma visão muito abonadora do público que em geral vai a exposições:

Pode-se sustentar sem medo que a maioria do público que visita as exposições, percorre os museus, assiste aos concertos e às premières literárias, não possue a menor idéia do trabalho do artista. Ou, se eles têm disso alguma idéa, é grotescamente falsificada, e mesmo pueril. (LEVY, Algumas reflexões sobre a competência em matéria de arte, 1940, p. 38).

Essa visão sarcástica sobre o público se repete, agora com um exemplo pontual, em um artigo de jornal que publicou em 1945, Pior que Portinari! (reparem no “delicada”):

Foi na exposição de “Arte condenada pelo 3. Reich”, realizada sob o patrocínio da Casa do Estudante do Brasil, que ouvi de repente esta delicada apreciação: “Realmente, isto aqui é pior que Portinari”.
É sempre reconfortante, nos tempos atuais, ouvir alguém manifestar uma opinião absolutamente sincera. E Portinari pode ficar contente: por julgamento insuspeito foi assim proclamado superior a Liebermann, Slevogt, Kokoschka, Kollwitz e tantos outros artistas, mortos ou vivos, de fama internacional. É verdade que o desconhecido crítico escolheu a forma sutil da expressão negativa para lhe fazer o cumprimento. Mas pouco importa – o fato é incontestável. Se todos aqueles artistas, de cujas obras originais a mostra da Galeria Askanasy reúne exemplos, são “piores” que Portinari, este, logicamente, lhes deve ser superior. Mas mesmo assim duvido muito que ele tenha agradado mais a Hitler do que seus colegas condenados por este especialista em “pintura” (LEVY, Pior que Portinari, 1945, p. 2).

Além de criticar repetidamente o público de arte moderna, como acabamos de ver, sobrou também para os colegas, os historiadores da arte brasileiros. É o que aparece muito bem em um artigo que Hanna Levy publica em 1947, em espanhol, Problemas en torno a la Historia del Arte Brasileño:

Isso conduzia à tendência, que se pode de fato observar em trabalhos de muitos historiadores da arte brasileiros, de atribuir a priori um elevado valor artístico a qualquer obra com aspectos ingênuos, populares, primitivos [...]. E os que insistem em comparar tais obras rústicas e medíocres com as obras-primas da arte mundial prestam, a nosso ver, um péssimo serviço à arte brasileira” (LEVY, Problemas en torno a la Historia del Arte Brasileño, 1947, p. 140).

Procurei mostrar, por meio dessa pequena seleção de exemplos, que Hanna Levy, em suma, nos deixou uma lição maravilhosa: História da Arte também se escreve com sangue no olho. Considerando que essa mulher, ainda por cima, era marxista, só me resta terminar com uma conclusão bastante batida, mas que representa com exatidão o que eu penso: Hanna Levy, como não amá-la?