Sobre
um tênis da Nike, uma paisagem de Naysmith,
Parataxe
e Hipotaxe
Tênis Nike Converse com tecido Harris
Tweed
Um
dos pré-socráticos dos quais apenas nos restam fragmentos, Empédocles (c.
490–430 a.C.), em Sobre a Natureza,
concluiu que tudo o que há no universo resulta da combinação de quatro
elementos, a saber, fogo, água, ar e terra, movidos por duas forças básicas, o
amor, que os une, e o ódio, que os separa. Mais tarde, referindo-se apenas ao
comportamento humano, Freud chamaria de Eros a força que une, e de Thanatos a
força que separa ou destrói. União e desunião, seja nos componentes do
universo, seja no comportamento das pessoas, comportam, respectivamente,
diferentes estados, mais estreitos ou mais afastados.
Nada
nos impede de pensar, ainda metaforicamente, nesses "estados" de
união (proximidade) e desunião (afastamento), em termos de composição
artística, em termos de abertura ou densidade das tramas. Nesse sentido podemos
recorrer à noção de hipotaxe para analisar obras e discursos de “trama fechada”,
“unida pelo amor”, por exemplo, com alto grau de subordinação das ideias ou
conceitos. No caso do discurso hipotático, uma frase explicaria e iria se ligar
fortemente à seguinte, do início ao fim, com a intenção de que se diminua a
possibilidade de leituras ambíguas, como se vê nos textos legais e nas ordens.
A
“força contrária”, a “separação pelo ódio”, encontraríamos na parataxe quando
usada na estruturação de informações em estado bruto, descrições e imagens. É
ao leitor ou observador que cabe “amarrar” todas elas e definir um sentido
final. Trata-se de trama muito aberta, de procedimento muito subjetivo, com
possibilidades de leitura mais amplas e variadas. Tal é o procedimento estruturante
que podemos identificar, por sua vez, em textos literários como o Ulisses, de
James Joyce, e mesmo no discurso de posse de Barack Obama, de 2009, que foi considerado,
aliás, paratático pelo crítico Stanley Fish.
A
parataxe brilha, sobretudo, na poesia. O crítico Theodor Adorno foi o
responsável pela transformação desse conceito gramatical em conceito de análise
filosófica em seu famoso ensaio Parataxis, dedicado ao poeta romântico
alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843). Neste ensaio Adorno destaca que
Hölderlin, ao contrário de muitos poetas de sua geração, transforma a parataxe
em um recurso não conformista de construção de texto; isto é, ao invés de
procurar construir um discurso hipotático harmonioso, que bem se ajuste ao
realismo burguês (não nos esqueçamos que Adorno era marxista), Hölderlin
privilegia a parataxe, impedindo assim que o sentido “descole” da base estética
– na parataxe, forma e conteúdo são uma coisa só.
Mas,
como já adiantei, podemos pensar a parataxe em termos imagéticos. Os habitantes
de algumas ilhas escocesas (mais especificamente das ilhas de Harris, Lewis,
Barra e Uist) há muito tempo fabricam um tecido de lã, o Harris Tweed. Outrora
um tecido de luxo, rústico e bem estruturado, atingiu o auge da popularidade
nos anos sessenta; no entanto, com a ascensão dos tecidos sintéticos, mais
confortáveis, várias tecelagens das ilhas fecharam, e a indústria começou a se
recuperar apenas quando a Nike, em 2004, decidiu fabricar uma linha de tênis
empregando esse tecido. O que chama a atenção na trama desse tecido é que as
cores são selecionadas pelos fabricantes a partir da paisagem local no momento
em que ele é fabricado. Temos, assim, tecidos que resultam, respectivamente, da
combinação de cores das paisagens escocesas de verão, outono, inverno e
primavera. Em outras palavras, podemos pensar o Harris Tweed como uma paisagem
composta de modo radicalmente paratático, pois há ali elementos da paisagem,
dispostos de maneira muito aberta, com grande margem de interpretação.
Amostra
de Harris Tweed, séc. XX
Para
contrastar, ao lado da amostra de tecido podemos colocar o quadro de um dos
maiores paisagistas escoceses do século XIX, Alexander Naysmith (1758-1840).
Temos ali a mesma forma de representar a paisagem que se encontra no tecido? Evidentemente
não. Quando comparadas, a paisagem de Naysmith se situa, sem dúvida, no pólo
hipotático, pois a paisagem é apresentada em termos sinedóticos, de maneira
realista e descritiva.
Alexander Naysmith: Paisagem
da Highland com Figuras
Poderíamos
concluir, apressadamente, a partir dessa consideração, que a hipotaxe visual se
presta melhor à representação realista, enquanto a parataxe visual seria mais
adequada à abstração. Na verdade, ambas podem funcionar, indistintamente, em
convenções realistas ou abstratas. Vejamos os exemplos a seguir.
Comecemos
com uma obra de Joseph Beuys (1921-1986).
Fat Battery, uma bateria construída a partir de feltro e gordura, pode
perfeitamente ser entendida em uma concepção hiperrealista (ou sinedótica) de
vanguarda (ainda que outros tropos estejam envolvidos aqui, como a metonímia),
na medida em que materiais brutos, concretos, e não a representação dos mesmos,
têm suas qualidades destacadas e compõem o trabalho. E a obra de Beuys é
organizada, evidentemente, segundo a lógica paratática.
Joseph Beuys,
Fat battery, 1963, Tate
Por
outro lado, a fotografia a seguir, tomada por John Reekie (1829-?), um dos
tantos fotógrafos pouco conhecidos da Guerra Civil americana, igualmente
realista, foi realizada dentro da lógica hipotática: a narrativa representada
pela cena é bastante clara, quando vista pelos observadores da época: soldados
negros recolhem as ossadas de vítimas no campo de batalha.
John Reekie: African Americans Collecting Bones of
Soldiers Killed in the Battle, Cold Harbor, VA, April 1865
Isto
posto, concluo reforçando que parataxe e hipotaxe, como formas de estruturação,
e não como “índices de realidade”, podem ser, sem dúvida, conceitos muito úteis
não apenas para pensarmos textos, como quis Adorno, mas também para pensarmos literalmente
a “trama” das imagens.