Granger: Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann (1776-1822)
A
partir dos 14 anos comecei a registrar todas as minhas leituras em cadernos. Eu
copiava as referências completas do livro, o sumário, os melhores trechos,
identificados por página, e acrescentava ainda uma seção chamada “Minhas
opiniões”, na qual comentava o que havia achado da leitura. Fazia isso por
vários motivos: sempre considerei minha memória ruim, e esse método me pareceu
um bom recurso mnemônico, que permitiria que associasse mais facilmente, como
se diz, o nome à pessoa, que identificasse o autor e sua obra; eu gostava (e
continuo gostando) de escrever; enfim, geralmente lia livros de biblioteca ou
emprestados por amigos ou professores, pois não tinha dinheiro para comprá-los,
e copiar meus trechos favoritos era, de certa forma, manter o melhor dos livros
comigo. Consultei um desses cadernos hoje, o número 6 (sim, eles são numerados
e têm sumário), atrás de minhas impressões de leitura a respeito das obras do
Hoffmann. Quando fui bolsista de iniciação científica, por incentivo da
professora Icleia Cattani eu e meus companheiros de bolsa lemos Das Unheimlich (1919),
o clássico ensaio de Freud. Ali Hoffmann é apresentado, e usarei agora as
palavras do próprio Freud, como o “inigualável mestre do inquietante na
literatura”. Freud analisa o conto O
homem de areia, e ainda o romance O
elixir do diabo. Em O homem de areia percebe a manifestação do complexo
infantil da castração no protagonista, Natanael, e em O elixir do diabo investiga o tema do duplo ou do sósia. Foi por
causa de Freud que me tornei leitora de Hoffmann, sem dúvida (eu e outros
tantos leitores). Eu li os Contos
fantásticos de Hoffmann, edição da Imago, usando a lente de Freud, como se
percebe nesse meu comentário extraído do caderno, de abril de 1999: “O melhor
do livrinho é mesmo O Homem de Areia”.
Dos outros dois contos da edição, na época, não gostei tanto: O Vaso de Ouro me pareceu por vezes “cansativo”
(ainda que eu tenha admirado a honestidade do narrador ao apresentar também os
defeitos das personagens femininas descritas como belas), e n’Os Autômatos me aborreci com o que então
chamei de “chatíssima discussão sobre teorias musicais românticas”, empreendida
por dois personagens do livro, Ludwig e Ferdinando (o que seria da vida sem amargos
arrependimentos – hoje essa é uma das partes do conto que mais me interessa,
tanto que em uma leitura bem mais recente uma das frases que destaquei foi
essa: “...toda a minha alma, todo o meu espírito eram apenas ouvidos”).
Disse
há pouco que li Hoffmann com a lente de Freud, o que significa que nele
procurei, antes de mais nada, o estranho e perturbador. Uma das passagens
perturbadoras do Homem de areia que
copiei em meu caderno foi esta (tradução de Claudia Cavalcanti), uma cena em
que Natanael fala e sua amada Olímpia, talvez uma autômata, escuta:
“Das
profundezas de sua escrivaninha, Natanael tirava tudo o que já escrevera.
Poemas, fantasias, visões, romances, histórias, tudo diariamente acrescido de
toda sorte de sonetos, estâncias, cantigas, que ele lia para Olímpia durante
horas a fio, incansavelmente. Nunca tivera uma ouvinte tão encantadora, pois
não bordava nem tricotava, não olhava pela janela, não dava comida aos pássaros
e não brincava com cãezinhos ou gatinhos graciosos. Não amassava papeizinhos ou
se distraía com qualquer coisa nas mãos, nem precisava conter um bocejo ou um
leve pigarro. Em suma, fitava o amado durante horas sem se mexer ou se ajeitar,
e esse olhar tornava-se cada vez mais ardente e mais vivo. Apenas quando Natanael
se levantava no fim e lhe beijava a mão e até mesmo a boca, ela dizia: ‘Ah, ah!
Boa noite, meu querido’”.
Já
professora comecei a trabalhar com Hoffmann na disciplina de História da
Cultura, pedindo que os alunos lessem O
pequeno Zacarias, em especial aquela parte em que os iluministas tentam
acabar com o reino das fadas. Também vi algo sobre autômatos, ao trabalhar com Real spaces, de David Summers, na
disciplina de Ciências da Arte: Espaço e Tempo,
integrante do currículo do curso de Artes Visuais. Summers apresenta ali os
autômatos de Pierre Jaquet-Droz (1768-1774), que tanto sucesso faziam na Europa
(abaixo podemos ver um deles, o autômato-desenhista e o desenho que elaborava quando estava em funcionamento).
Um dos autômatos de Jaquet-Droz e seus desenhos
Além
disso, agora que posso comprar livros a Internet é uma realidade, há muito não
faço cadernos, e minha pequena coleção de Hoffmanns cresce, sendo minha última
aquisição a edição francesa de Le chat
murr (1819-1821), que ainda não consegui terminar de ler. Essa tradução
para o francês foi realizada por Albert Béguin (1901-1957) e publicada
originalmente em 1943. No prefácio o tradutor logo chama a atenção para o que
considera uma imagem tendenciosa de Hoffman criada na França por seus primeiros
tradutores. Diz ele: “O verdadeiro Hoffmann é muito diferente do fantastiqueur no qual se inspiraram
Petrus Borel, Gozlan, Balzac e tantos de nossos românticos. Fazemos hoje, entre
sua obra, uma escolha diferente daquela feita pelo público de 1830 [...]”
(tradução minha). Béguin se refere aqui às primeiras traduções de Hoffman que
aparecem na França da primeira metade do século XIX. Ele propõe, no século XX, a
tradução integral de um texto que no século XIX não havia chamado a atenção dos
tradutores franceses do autor alemão.
Como
vimos, esse prefácio é de 1943. Décadas e décadas antes, antes de Béguin e
antes ainda de Freud, Jules Champfleury (1820-1889) também tentou desfazer, ou
ao menoa relativizar, a imagem de Hoffmann como um fantastiqueur. O movimento romântico francês ainda não havia
esfriado quando publicou, em 1856, os Contes
posthumes d’Hoffmann, por ele traduzidos. O volume é dedicado a Courbet,
então seu amigo, e o reconhecimento da influência de Hoffmann sobre sua
carreira de escritor é apresentado já no prefácio, em tradução minha: “Terei
sempre um vivo reconhecimento pelos homens que me ensinaram alguma coisa ou que
me proporcionaram vivas sensações. De que serviria esconder as fontes em que
bebemos com tanta delícia na juventude? Assim jamais irei negar a influência
que sobre mim exerceram Diderot, Balzac e Hoffmann mais particularmente”.
Diderot
estava sendo redescoberto pela crítica de arte francesa quando Champfleury era
jovem. Balzac, por sua vez, foi ele mesmo leitor de Hoffmann. Champfleury
oferece, como introdução aos contos menos conhecidos de Hoffmann que acabara de
traduzir, um mapeamento de vários aspectos da vida e da obra do artista: o modo
como suas obras foram traduzidas na França e como era visto por seus amigos; as
notas que escreveu pouco antes da morte, seu testamento, suas habilidades como
desenhista e músico, suas cartas aos amigos.
Ao
discorrer sobre as traduções, Champfleury registra o ano de 1823 como marco da
introdução de Hoffmann na França, mediante a tradução de Olivier Brusson, que,
no entanto, não traz o nome do autor, do próprio Hoffmann. Os Contos de Hoffmann traduzidos por Loëve-Weymar
são publicados em 1830, obtendo estrondoso sucesso junto à geração romântica. Champfleury
explica que foi com essa edição que Hoffmann começou a ser visto, na França,
como “fantástico”:
“Nessa
mesma editora apareceram as obras completas de Hoffmann em vinte volumes in-12.
O sr. Loëve-Weymar chama a primeira série de contos fantásticos, e desde essa
época fantástico permaneceu e permanecerá, ainda por muito tempo, mesmo que
jamais a palavra fantástico tenha sido empregada pelo contista alemão. É
verdade que o maravilhoso desempenha um papel suficientemente grande na obra de
Hoffmann para justificar o epíteto de fantástico; é verdade igualmente que os
contos estavam na moda, e que cada autor torturava o cérebro para encontrar
outra coisa além de contos marrons, contos rosas, contos de todas as cores
[...]. Esses motivos justificam um pouco o fato do Sr. Loëve-Weymar ter dado o
título de fantástico a obras onde a realidade se combina tão naturalmente à
pintura do estado particular de uma natureza atormentada” (tradução minha).
Sem
dúvida Champfleury não rejeita completamente a denominação de “fantástico”
aplicada a Hoffmann, pelo contrário, em alguns pontos a justifica. Por outro
lado, contudo, ao falar da “natureza atormentada” que também percebe na obra de
Hoffmann, abre caminho para que Freud, tempos depois, nela procure não o
fantástico, mas, como vimos, o estranho.
Champfleury
continua sua narrativa: segundo ele, Hoffmann, enquanto ainda vivia, era bem
menos admirado na Alemanha do que Schiller, muito mais engajado politicamente,
defensor do povo e crítico da elite. Na França sua recepção é consideravelmente
mais positiva, pois para os franceses o contista não precisava ser “republicano
ou monarquista, cético ou crente, materialista ou espiritualista”, bastava que,
nas palavras de Champfleury, “fosse romântico, isto é, que encontrasse formas
novas”.
São
divertidas as passagens em que Champfleury não esconde sua perplexidade diante
das escolhas artísticas de Hoffmann, que também era desenhista e compositor, passagens
como esta, em que acusa Hoffmann de haver conferido demasiado valor a Salvator
Rosa (1615-1673), pintor cuja popularidade iria declinar ao longo do século
XIX: “Hoffmann não é culpado de haver redourado a coroa de estuque de Salvator
Rosa, um pintor melodramático muito ruim cujo grande talento consiste em ter
vivido muito entre os bandidos?”
Salvator Rosa: Filosofia, 1640 (autorretrato). Tradução da inscrição latina:
"Fique em silêncio, a não ser que o que você tenha a dizer seja mais importante do que o silêncio"
Hoffmann
havia publicado em 1819 um conto chamado Signor
Formica, em que Rosa era o protagonista. O narrador do conto defende a
imagem de Salvator Rosa, apresentando-o como um homem dotado com “a exuberância
da vida e orgulhosa energia”, de caráter nobre e leal, um homem, como o próprio
Hoffmann, multifacetado: “Dificilmente preciso dizer que Salvator era não menos
renomado como poeta e músico do que como pintor. Seu gênio foi revelado em
raios lançados em muitas direções” (tradução minha). Talvez Freud pudesse ter
encontrado aqui ainda mais material para sua teoria do duplo...
Hoffmann,
bem se vê, tinha gosto artístico bastante diverso daquele de Champfleury. Em
uma carta ao amigo Hitzig, escrita em Berlim, em 15 de outubro de 1798, e
citada por Champfleury, Hoffmann se mostra extasiado com as obras de arte
italiana que estava podendo apreciar:
“...mas
hoje eu sou quase mimado pela galeria de Dresden, onde vi as obras-primas de
todas as escolas. Enchi-me de entusiasmo quando me dirigi à Sala dos Italianos;
imagine uma sala que é certamente uma vez mais extensa do que a casa de teu
tio, em Koenigsberg, cujas imensas paredes são cobertas de alto a baixo pelos
quadros de Rafael, de Correggio, de Ticiano, de Battoni, etc.; vendo tudo isso,
estou necessariamente convencido de que nada sei. Eu ali lancei as cores, e desenho
os estudos como um principiante: esta é minha resolução. É apenas na pintura
que acredito ter feito grande progresso; para te provar, certamente te enviarei
alguma coisa” (tradução minha).
Apesar
de pretender continuar progredindo na pintura, são os desenhos de Hoffmann que
terão vida mais longa. Champfleury reproduz em seu livro um dos autorretratos
feitos pelo escritor, particularmente bem-humorado. Em respeito à lei das compensações
universais, uma vez que na obra de Hoffmann já se leu tanto o fantástico como o
estranho, apesar de o próprio autor não haver apoiado esses conceitos, concluo então
meu pequeno texto com o mencionado autorretrato e as divertidas legendas
acrescentadas pelo autor. Deixemos que ele, ao ver a si mesmo, nos mostre seus
próprios conceitos.
"A –
O nariz
B –
A fronte
C –
Os olhos
D –
Bife. Vinho do Porto
E –
O traço irônico
F –
Queixo alongado, depois de comédia mal-sucedida
G –
Os cabelos cheios de visões demoníacas
H –
A gravata
I –
O colete de costume
K –
Manga de redingote com pregas arbitrárias
L – Favoritos,
ou pensamentos noturnos de um sonâmbulo
M –
O músculo de Mefistófeles, ou paixão por assassinato e vingança
N –
Olho
O –
Orelha, ou a carta de aprendizagem de Kreisler
P –
Etc."